Capítulo 04 – Silêncio no Beco

1509 Words
Anna Não sei quando aprendi a medir o perigo pelo som. Antes do estampido, vem um silêncio particular, como se a viela prendesse o fôlego. O rádio do mototáxi para de chiar, o vendedor do pastel corta a gordura no meio, as crianças somem por trás dos portões semiabertos. O morro sabe avisar; quem quer viver, escuta. Eu escutei. Desci do ônibus com a mochila pesando nos ombros e decidi cortar caminho pelo beco da bica. O céu estava de cimento, a luz engolida por nuvens pesadas. A primeira gota de chuva caiu no meu queixo quando percebi que os passos à frente diminuíram — dois homens parados, bonés baixos, atenção espalhada como lâmina. Fiz o movimento de recuar, mas atrás de mim outro grupo já preenchia a saída. A viela se fechou como garganta em pânico. — Vai por onde, doutora? — perguntou um deles, com um meio sorriso que não alcançou os olhos. — Pela minha casa — respondi, erguendo o queixo o suficiente para não me curvar. — Só quero passar. O silêncio entre eles denunciou a troca de sinais. Não era assalto comum. Era algo maior, coordenado, feito de códigos que eu não falava. A respiração ficou curta. Lembrei do conselho de Kadu: “Se te travarem o caminho, fala que vai pelo bar do Seu Neném e cita meu nome.” O nome dele pesou na minha língua como dívida antecipada. — Eu vou pelo bar do Seu Neném — arrisquei, firme. — Kadu disse que abrem. O meio sorriso caiu. O que estava à frente me mediu de cima a baixo, indeciso entre rir de mim e me usar. O que estava atrás levantou o rádio na altura da boca. O estalo metálico do transmissor foi o prólogo. O morro suspirou fundo e, em seguida, o som que eu temia veio rasgando o ar: um tiro, dois, três, em cascata. O grito de alguém estourou, reflexo e dor. Corpos colaram à parede, mãos puxaram colarinhos, pés arrastaram pressa. Eu não tive tempo de escolher. Fui puxada por um braço duro e empurrada contra o tijolo nu. Um corpo mais alto se colocou à minha frente, cobrindo minha visão do corredor. O cheiro de chuva recém-nascida se misturou a pólvora e suor. O coração pulou na boca antes que a voz dele confirmasse o que meus sentidos já sabiam. — Fica atrás de mim, Anna. Kadu. As mãos dele foram objetivas, sem licença para delicadeza: uma na minha nuca, outra guiando meu ombro para o canto onde o muro fazia um abrigo miserável. Senti a parede fria e o calor dele ao mesmo tempo. A presença era um peso antigo, desses que organizam o caos e o ampliam de uma vez só. Eu queria respirar, mas a viela só oferecia o ar picado dos tiros. — Abaixada — ele ordenou, sem elevar a voz. — Olhos em mim, não no beco. Obedeci. Não porque reconheço reis, mas porque meu corpo entendeu intuitivamente onde estava a vida por alguns segundos. Os olhos dele eram duas sentinelas negras, atentos ao que eu não via. Pelo rádio preso ao colete, vieram palavras como peças de tabuleiro: “Direita segura”, “Esquerda avançou”, “Moto vindo pelo alto”. Kadu respondeu sem pausa, como quem mexe em cordas invisíveis. — Barreiro, fecha a bica. Dinho, dois passos e recua. Sem heroísmo. — Um intervalo curto. — A mulher fica comigo. Outro estampido estourou perto, e eu encolhi por reflexo. Kadu curvou-se por cima de mim, o antebraço encostando na parede acima da minha cabeça, o corpo criando sombra e pausa. Eu podia ouvir o batimento dele, constante, mais lento que o meu, como se habitasse um tempo próprio. Não era carinho. Era proteção pensada como estratégia. Mesmo assim, a proximidade me carregou para um lugar de sentimentos confusos: gratidão, raiva de precisar, medo do que ele representa, um fio de alívio que eu não queria nomear. — Olha pra mim — repetiu. — Me escuta. — Eu estou — respondi, a voz mais fina do que eu gostaria. — Respiração curta te faz erro. Inspira pelo nariz, segura, solta devagar. — Demonstrou com a própria boca, paciente no meio da tempestade. — Boa. Segui, teimosa, o comando. Senti o oxigênio voltar, mesmo com a garganta em chamas. A chuva engrossou, a água desenhando veias no chão irregular. Mais dois tiros, desta vez respondidos de modo seco, quase clínico. Gritos. Um berro de “parou!” atravessou o beco. Kadu não tirou o olhar de mim, mas eu via pelos ombros dele a dança dos segundos: sombras correndo, o clarão breve de um cano, um corpo que caiu, outro que arrastou o próprio medo para trás do poste. — Vão tentar vir por cima — disse ele no rádio. — Subida da laje da Jô. Manda recado pra cortar energia no poste 12. — Já foi — a voz de Dinho estourou, confiante. — Poste apagando em três… dois… um. A viela mergulhou num escuro repentino, salvo pelo céu chumbo. Foi como se o morro fechasse as cortinas para proteger sua peça. O som de passos se multiplicou. Eu me agarrei à alça da mochila, ancinho de quem quer cavar segurança no ar. Kadu inclinou o rosto para mim, a boca tão perto que eu senti o calor da fala. — Confia em mim por dez minutos. — Dez eu aguento — murmurei, tentando transformar o medo em matemática. Surgiu alguém na curva da bica, correndo. O brilho molhado do cano do revólver piscou. Kadu virou meio corpo, sacou como se fosse extensão do braço, não do bolso. Um estalo seco. O homem gritou, caiu de joelhos, largou a arma, praguejou com a raiva dos que falam alto para não ouvir a própria dor. Kadu não celebrou acerto; apenas protegeu o corredor com o corpo, medindo ângulos que eu não via. — Leva o ferido — ele mandou, quando dois dos seus apareceram. — Ninguém morre aqui por falta de pressa. A frase bateu diferente em mim. Ninguém morre aqui por falta de pressa. Entre a violência e a ordem, havia ética dura, própria. Não sei se era consolo ou aviso. O tiroteio diminuiu como chuva cansada. O rádio avisou que o alto da laje estava limpo, a rua principal retomando vultos de vida. Alguém chorou ao longe, som de mãe, de quem se lembra tarde de que o perigo sempre cobra. Kadu aliviou a tensão dos ombros, mas não me soltou de imediato. O braço dele ainda fazia o teto do meu respiro. — Terminou? — perguntei, a voz firme de quem decidiu não tremer mais. — Nunca termina — ele disse, sincero. — Mas agora dá pra te tirar daqui. — Eu não preciso que me tirem — respondi, consciente do fio de orgulho na minha fala. — Preciso que abram o caminho. Ele deu um meio sorriso que não era deboche. Mais reconhecimento do que aprovação. — Abro. Quando nos movemos, senti a ausência do corpo dele como quem sai debaixo de um toldo no meio da chuva. Ele foi à frente, dois passos, e a viela voltou a existir: portas entreabertas, olhos de gente empilhados no escuro, o cheiro forte de terra molhada e óleo. Passamos pelo homem ferido sendo levado num improviso de maca, por uma senhora rezando com as mãos trêmulas, por um menino que me olhou como se perguntasse se foi minha culpa. Eu sustentei o olhar dele até que a pergunta murchasse. No final do beco, Kadu parou. O mundo fazia outra vez barulho: rádio, trocas, o bar do Seu Neném levantando a porta metálica como quem diz “acabou”. Eu ajeitei a mochila, tentei recuperar a figura da mulher que caminha sem pedir licença à guerra. A presença dele, no entanto, ficava, como marca d’água. — Obrigada — falei, simples, sem adornos. — O morro cuida de quem cuida — ele repetiu, como se me devolvesse uma linha do nosso primeiro encontro. Depois, mais baixo: — E eu cuido do que passa pelo meu caminho. A declaração me atingiu em dois lugares: o seguro e o perigoso. Eu quis dizer que não pertencia ao caminho de ninguém. Mas a verdade é que, naquele beco, eu pertenci à sombra dele por uns minutos, e isso me salvou. O medo não virou gratidão cega, nem a proteção virou romance. Era mais ambíguo, mais vivo. — Não quero ficar devendo favor, Kadu. — Não me deve. — Ele inclinou a cabeça, quase reverência. — Só não ignora o silêncio do beco quando ele falar de novo. Dei um passo, depois outro. A chuva afinou até virar poeira fria. Atrás de mim, sua presença ainda intimidava o ar. Foi estranho admitir, mesmo só para mim: a intimidação dessa vez não me encolheu; organizou meu caos. E, enquanto subia as escadas rumo à rua dos Ipês, entendi que as vielas têm suas gramáticas secretas. Em algumas, o silêncio avisa. Em outras, o nome de um rei abre passagem.
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