Kadu
Eu conheço cada curva deste morro como quem conhece as linhas da própria mão. Há ruas que obedecem, becos que mentem e sombras que protegem; tudo circula no meu campo de visão, mesmo quando eu não estou presente. No fim da tarde, o céu se fecha em um azul profundo, e a luz dos postes briga com o fiapo de sol que ainda teima em escorrer pelas lajes. Eu caminho devagar, ouvindo o chiado dos rádios, o assobio de aviso no alto e o sinal dos fogos que anunciam a normalidade. Normalidade aqui é sempre uma mesa posta para o imprevisto.
Foi nesse cenário que a vi pela primeira vez.
Ela vinha subindo a viela com passo de quem não se entrega ao medo. Uma mochila no ombro, o cabelo preso em um coque apressado, a testa brilhando de suor que a brisa não dava conta de secar. Não era daqui — não do meu reino, pelo menos — e, ao mesmo tempo, parecia pertencer a tudo. Havia uma força discreta no jeito como mantinha os olhos erguidos, mesmo quando dois dos meus olheiros a observaram do canto. Não desviou, não acelerou, não fingiu que não viu. Apenas mediu a distância, calculou o trajeto e seguiu.
— Quem é? — perguntei, em voz baixa.
Dinho, sempre atento à minha direita, inclinou o queixo sem disfarçar a curiosidade.
— A gente viu ela ontem também. Desce e sobe nessa mesma hora. Dizem que estuda lá embaixo, na federal. Fica no ponto da lotação, passa pelo bar do Seu Neném e sobe por aqui. — Deu de ombros. — Não mexe com ninguém.
O rádio chiou no meu ouvido. Pedi calma. Não queria ruído que interferisse no que meu olhar já tinha decidido: havia algo ali que quebrava um padrão. A menina — mulher, corrigi mentalmente, porque os olhos dela não tinham nada de menina — trazia vulnerabilidade grudada na pele, mas segurava a própria fragilidade com a mão firme de quem aprendeu cedo a não esperar salvadores.
Ela parou na esquina onde a viela bifurca para o campo improvisado. Uma senhora tentava equilibrar duas sacolas de feira e um neto pequeno que insistia em se soltar. A mulher de mochila agachou, falou com a criança, sorriu. O sorriso não era daqueles fabricados para parecer gentil; era curto, funcional, um remédio em dose certa. Pegou as sacolas, ajustou o peso, ofereceu o braço à idosa. Assim, simples, como quem respira.
Eu poderia ter virado as costas. Tenho inimigos para mapear, contas para fechar, acordos para selar. Mas algo em mim, talvez o mesmo instinto que me fez dono deste topo, decidiu que aquela cena me dizia respeito.
— Segue comigo — avisei a Dinho.
Descemos a viela com o cuidado de quem conhece as pedras soltas. Não precisava que me anunciassem. A maioria me conhece e, quem não conhece, aprende rápido que meu silêncio costuma anteceder minhas ordens. Quando cheguei ao lado do trio improvisado, a criança já ria de alguma bobagem dita por ela. A senhora, ofegante, assentiu para mim numa reverência tímida.
— Boa tarde — disse a mulher de mochila.
— Tá tarde, mas tá boa — respondi, testando o som da voz dela, a maneira como o peito dela absorveria meu nome quando ele chegasse até ela.
— A senhora mora em qual rua? — perguntei, voltando-me à idosa.
— Na dos Ipês, meu filho. Essa menina apareceu pra me ajudar. Deus manda gente assim, né?
A mulher devolveu as sacolas, ajeitou o próprio fôlego, e apenas então encarou o meu olhar de frente. Nem desafio, nem submissão. Avaliação.
— Tem um atalho pela esquerda que evita a escadaria — informei. — Menos degrau, mais sombra.
— Obrigada. — Ela segurou a alça da mochila. — Eu vou por ali.
— Qual o seu nome? — perguntei, antes que se virasse.
— Anna.
O nome pousou sobre mim com uma familiaridade inesperada. Coisa estranha: algumas sílabas parecem acender memórias que não existiam cinco segundos antes.
— Kadu — apresentei-me, sem título, sem cercas.
Ela não reagiu como a maioria reage. Não recuou, não quis agradar. Apenas registrou, guardou, e fez um gesto com a cabeça que, vindo de outro, seria desrespeito; na boca dela, era a forma exata de uma educação que não se curva mais do que o necessário.
O rádio subitamente explodiu com o código de sempre: dois fogos em sequência, um rastro mais longo, sinal de viatura sondando a avenida lá embaixo. O morro respirou mais curto. A senhora tremeu no lugar. A criança, sem entender, apertou o braço da avó. Anna apenas buscou com os olhos o que precisava ser feito.
— Entra aqui — falei, abrindo o portão de um terraço baixo. — Até passar.
— Eu tô bem — respondeu, com firmeza branda.
A sirene ainda distante comeu pedaços de fala. O vento trouxe o cheiro de gordura do pastel da esquina misturado com o ozônio promissor de uma chuva que não vinha. Eu poderia obrigá-la a ficar. Bastava um gesto meu para que dois caras a escoltassem. Mas havia também o risco no excesso de zelo: o morro tem avidez por boatos; nome meu, nome dela, a ilusão de uma proximidade que eu nem tinha decidido se queria.
— Não precisa coragem pra ficar — acrescentei, mais baixo. — Só prudência.
Ela pesou minhas palavras, como quem pesa medicamento na balança. Por um segundo, notei um tremor no canto da boca: não era medo de mim, era cálculo do mundo. Aceitou a sombra do terraço. Entrou levando a criança pela mão, enquanto eu ajudei a idosa a sentar no degrau.
— Respira fundo, dona. — Anna tirou da mochila uma garrafinha. — Bebe devagar.
— Você estuda o quê? — perguntei, sem tirar o olho da viela.
— Cuidados. — Ela sorriu de leve, sem graça. — Quer dizer… saúde.
A resposta me cortou por dentro, simples e certeira. O morro conhece pouco dessa palavra, e quando conhece, ela vem cara, tardia, ou acompanhada de promessas vazias. Anna vinha com ela nas mãos como se fosse comum.
— Tá limpo por enquanto — Dinho avisou pelo rádio. — A viatura virou no posto e desceu.
— Liberou — falei, abrindo o portão.
A idosa agradeceu mil vezes, a criança se agarrou na perna dela, e Anna preparou-se para ir. Eu deveria deixá-la partir sem nada. Seria o mais correto, talvez. Só que eu já tinha aceitado a armadilha silenciosa daquele primeiro olhar.
— Tem áreas aqui que mudam de humor de uma hora pra outra — comentei. — Se um dia alguém te travar o caminho, fala que vai pelo Bar do Seu Neném e cita meu nome. Abrem.
Ela franziu leve a testa.
— Não quero dever favores, Kadu.
Sorri com a naturalidade de quem está sempre disposto a negociar.
— Não é favor. É protocolo.
— Entendido. — Parou mais um instante. — Obrigada pelo abrigo.
— Agradece ao morro — respondi. — Ele cuida de quem cuida.
Anna se afastou, o passo medido, a cabeça erguida. Eu segui com o olhar até desaparecer atrás do muro com grafites que contam histórias que não cabem no papel. Dinho arriscou um comentário:
— Diferente, né?
— É — confirmei, sem esconder o interesse. — Diferente.
O rádio voltou a sibilar, agora com notícias sobre um menino que correra com um celular roubado no beco da bica. Dei ordens rápidas. O mundo retomou a marcha: dinheiro que entra, gente que sai, promessas que precisam de lastro. Mas o nome dela costurou-se em algum músculo que não obedece à razão.
Caminhei até a laje mais alta. Dali, vejo as telhas cheias de improviso, as caixas d’água, as antenas tortas, as roupas no varal como bandeiras de uma paz provisória. O morro é meu, e todo poder que carrego cobra seu preço em noites insones, decisões cruéis e um silêncio que ninguém escuta. Eu aceito o pacto, inteiro. Ainda assim, naquele fim de tarde, senti que o território, por um segundo, tinha aberto espaço para algo que não cabia no mapa.
Força em meio à vulnerabilidade. Um olhar que não pedia desculpas por existir. Uma mulher que caminha sem optar pela guerra, mas também sem se dobrar a ela.
Não sei quanto tempo fiquei ali, o vento batendo na camisa, a cidade lá embaixo feito um animal cansado. Quando desci, já estava decidido: queria saber de onde Anna vinha, para onde voltava, quem eram as pessoas que ela protegia sem alarde. Não por controle — ainda que controle seja o idioma que eu falo —, mas porque certas presenças exigem nome, contexto, história.
Esta favela reconhece seus reis. E eu, que não costumo dividir o trono com ninguém, descobri que às vezes o reinado começa em silêncio, no intervalo de uma viela, no gesto de segurar a sacola de uma senhora, no ato banal de oferecer água.
Primeiro olhar é sentença. A minha, naquele dia, foi clara: Anna atravessou meu território; o território, por dentro, atravessou Anna. E eu, que não fujo, decidi pertencer ao que viesse desse encontro — sem pressa, sem aviso, mas com a certeza de que, nas leis invisíveis do morro, nada acontece por acaso.