O MORRO E EU
O meu nome é Samanta, tenho 19 anos e, se eu fosse contar a minha vida em poucas palavras, diria que nasci no morro e cresci tentando não deixar o morro nascer dentro de mim. Parece estranho falar assim, mas é exatamente o que sinto. O Morro do Horizonte, lugar onde moro desde que me entendo por gente, é cheio de contradições: de dia, o sol bate nas lajes e tudo parece simples, quase bonito; de noite, a escuridão toma conta e a gente aprende a ouvir passos, barulhos de moto e estalos de tiro como se fosse música de fundo da vida.
Minha mãe sempre diz que eu fui um presente de Deus em meio à tempestade. Ela me criou sozinha, depois que meu pai desapareceu no mundo. Nunca tive coragem de perguntar se ele foi covarde demais para assumir a responsabilidade ou escolheu-se outro caminho. A verdade é que não sinto falta, porque nunca soube o que é ter um pai. Foi minha mãe quem me deu tudo que eu precisava: amor, cuidado e, acima de tudo, valores. Ela sempre repete que caráter é a única riqueza que ninguém pode roubar da gente.
A vida aqui nunca foi fácil. Nosso barraco fica quase no topo do morro, e cada dia é uma luta pra subir as escadarias carregando sacolas de mercado. Mas eu gosto de olhar lá de cima e ver o Rio inteiro aos meus pés: os prédios distantes, o mar cintilando ao longe, a mistura de beleza e desigualdade que só quem mora aqui entende. É como se o horizonte tivesse sido colocado ali só pra me lembrar que existe algo maior, algo além das vielas apertadas onde cresci.
Desde pequena, aprendi a conviver com duas realidades. A primeira é a da comunidade em si: os vizinhos que viram família, as crianças correndo descalças pelos becos, o cheiro de feijão no fogo vindo de várias casas ao mesmo tempo. É a parte boa, a que mantém a gente de pé. A segunda realidade é a do poder paralelo, dos homens armados que controlam o morro. Eles são presença constante, figuras que a gente aprende a respeitar mais pelo medo do que por qualquer outra coisa. Cresci sabendo onde podia ir e onde não podia, o que podia falar e o que era melhor calar.
Mesmo assim, nunca deixei de sonhar. Sempre fui boa na escola, adorava escrever redações e ouvir a professora dizer que eu tinha futuro. Talvez fosse o jeito dela me dar força, mas eu acreditava. Ainda acredito. Quero estudar, entrar na faculdade e arrumar um emprego digno. Quero comprar uma casa de verdade pra minha mãe, com piso que não machuque os pés e um quarto só dela, onde ela possa descansar sem ouvir os barulhos da rua.
Minha mãe se chama Dona Helena, e é a mulher mais forte que eu conheço. Trabalha como diarista desde muito nova e nunca reclamou, mesmo chegando em casa com as mãos calejadas e o corpo cansado. “O cansaço passa, filha, mas a dignidade fica”, ela costuma dizer. Acho que foi daí que herdei essa vontade de lutar, mesmo quando tudo parece contra a gente.
A infância no morro tem suas próprias cores. Lembro dos banhos de mangueira na laje nos dias quentes, do cheiro de pipoca na festa junina da associação de moradores, dos jogos de futebol improvisados no campinho de terra. Mas lembro também de noites em que minha mãe me fazia deitar cedo porque havia tiroteio, e o barulho das balas ecoava como trovão. Eu tapava os ouvidos e rezava baixinho, pedindo que aquilo acabasse logo.
Com o tempo, fui entendendo que o morro tem suas próprias leis. Vi meninos da minha idade, que brincavam comigo de esconde-esconde, se perderem para o crime. Uns morreram cedo demais, outros ainda andam por aí, com olhar duro e armas nas mãos. Eu sempre soube que esse não era o meu caminho. Talvez porque minha mãe nunca cansou de me lembrar que eu era feita pra coisas maiores, ou talvez porque dentro de mim sempre ardeu essa chama de esperança que eu não sei explicar.
Agora, aos dezenove, sinto que estou num ponto de virada. Consegui terminar o ensino médio, mesmo com todas as dificuldades, e penso em prestar vestibular. Sei que vai ser difícil, que dinheiro não sobra e que o mundo lá fora nem sempre abre as portas pra quem vem do morro, mas eu tenho fé. Fé e vontade.
Às vezes, fico deitada na laje à noite, olhando as luzes da cidade. Penso em como o Rio é contraditório: enquanto aqui em cima a gente aprende a se esquivar de bala perdida, lá embaixo tem gente bebendo chope gelado à beira da praia. É injusto, mas também é um lembrete. Um dia quero estar lá embaixo, vivendo sem medo, mas sem esquecer de onde vim.
Não vou mentir: também sinto medo. Medo de que, em meio a tanto sonho, a realidade me engula. Aqui, basta estar no lugar errado na hora errada para a vida mudar de uma vez. Já vi vizinhos perderem filhos inocentes, já vi mães chorarem por meninos que escolheram o caminho mais curto e mais perigoso. Às vezes, a violência parece maior do que a esperança. Mas é justamente nesses momentos que lembro das palavras da minha mãe: “Quem não desiste sempre chega mais longe, filha.”
Meu dia a dia é simples. Acordo cedo, ajudo minha mãe com as tarefas, corro atrás de um bico quando aparece e passo horas estudando com os livros que consegui pegar emprestado. Também gosto de escrever, de anotar meus pensamentos num caderno velho que guardo como um tesouro. É a minha forma de conversar com o mundo, de colocar pra fora as coisas que guardo no peito.
No Morro do Horizonte, cada canto guarda uma lembrança. O bar do Seu Jorge, onde os homens passam horas falando alto e rindo de piadas que só eles acham graça. A pracinha, onde as crianças brincam até tarde e as mães ficam de olho, fingindo que não estão preocupadas com o barulho dos tiros ao longe. O escadão principal, onde todos se cruzam: trabalhadores descendo pra enfrentar a cidade, jovens subindo com mochilas pesadas demais pro corpo, mas leves demais pro futuro.
E eu? Eu sou só mais uma nessa multidão. Mas dentro de mim, sinto que não sou apenas isso. Tenho sonhos maiores, tenho um coração que insiste em acreditar que é possível ser diferente.
Às vezes, penso no destino. Será que ele já está escrito, como dizem alguns, ou será que a gente pode escrever a própria história? Quero acreditar na segunda opção. Quero acreditar que, mesmo sendo filha do morro, eu posso escolher não ser refém dele.
O problema é que aqui nada é simples. O morro é feito de regras invisíveis, de alianças e traições, de olhares que dizem mais do que palavras. É um lugar onde se aprende cedo a não confiar em todo mundo, onde a amizade pode virar inimiga da noite pro dia. E é nesse cenário que vivo todos os dias, tentando ser fiel aos meus valores sem me perder no caminho.
Eu sou a Samanta. Uma jovem de 19 anos, moradora do Morro do Horizonte, filha da Dona Helena. Uma menina que sonha com um futuro melhor, mas que carrega nas costas o peso da realidade.
Ainda não sei o que o destino me reserva. Mas sei de uma coisa: não vou desistir. Nem do meu futuro, nem dos meus sonhos. Porque, mesmo no meio da pobreza e da violência, eu acredito que existe algo maior me esperando. E enquanto eu tiver fé, esperança e coragem, vou lutar por isso.
E talvez — só talvez — o Morro do Horizonte seja apenas o começo da minha história.