O meu nome é Erik, tenho 27 anos, e a rua foi quem me criou. Cresci no Morro do Horizonte, e desde moleque entendi que aqui ninguém sobrevive de inocência. Quem tenta ser puro demais acaba virando estatística, mais um corpo jogado no chão, mais uma mãe chorando com a camisa ensanguentada do filho nas mãos. A rua é escola, mas também é cemitério. Eu aprendi isso cedo demais.
Meu pai? Nem lembro do rosto. O homem sumiu antes mesmo de me dar um nome decente. O que restou foi minha mãe, mas ela também não ficou por muito tempo. O vício levou embora a mulher que poderia ter me ensinado o que era colo de verdade. No começo, eu não entendia. Só via a minha mãe sair e voltar diferente, olhos vermelhos, corpo frágil, alma perdida. Depois, aprendi a chamar aquilo pelo nome: d***a. E entendi que eu nunca poderia contar com ela.
Foram muitas noites sozinho, muitas vezes com fome. Lembro do cheiro de comida vindo da casa dos vizinhos enquanto eu, sentado no canto da sala, tentava enganar o estômago vazio. Lembro de olhar pela janela e ver moleques correndo, brincando, rindo alto, enquanto eu esperava a minha mãe voltar — e cada vez ela voltava mais ausente, mais distante. Até que um dia não voltou mais.
A rua não perguntou se eu estava pronto. Me engoliu. Eu era só um moleque, mas já sabia que, se quisesse viver, tinha que aprender rápido. Comecei pequeno, fazendo recado, levando um pacote aqui, outro ali. Quem vive no morro sabe: todo menino que se mete nos corres começa assim, sendo invisível, passando despercebido. O problema é que eu nunca aceitei ser invisível. Eu queria ser visto.
Aos poucos, fui subindo. Ganhei confiança dos homens, conquistei espaço, provei que não tinha medo. A primeira vez que peguei numa arma, as minhas mãos tremiam. Mas não deixei ninguém perceber. Aqui, mostrar fraqueza é assinar sentença de morte. Eu tinha medo, claro que tinha. Mas aprendi a engolir o medo e cuspir coragem.
A vida me bateu tanto que virei pedra. Foi assim que conquistei respeito. Cada cicatriz no meu corpo é um lembrete: sobrevivi. E a rua, que poderia ter me engolido, acabou me coroando. Hoje sou o patrão do Morro do Horizonte. O homem que todos conhecem, alguns reverenciam, outros odeiam. O nome que ecoa nas vielas, o rosto que ninguém ousa desafiar de frente.
Mas ser patrão não é vitória, é peso. A coroa que carrego não é de ouro, é de ferro e sangue. Quem olha de fora pode achar que tenho tudo: dinheiro no bolso, mulherada, carro importado subindo o morro como se fosse meu quintal. Mas o que ninguém vê é a solidão que me acompanha. O medo constante de ser traído. A paranoia que me faz dormir com a mão no gatilho e acordar no meio da noite suando frio, ouvindo barulhos que talvez nem existam.
No Morro do Horizonte, o respeito anda de mãos dadas com o medo. Quando caminho pelo escadão e vejo as pessoas se afastarem, sei que não é só respeito. É pavor. As mães puxam os filhos pro lado, os homens abaixam a cabeça, as mulheres me olham de canto de olho. Sou o patrão, mas também sou o monstro nas histórias que eles contam em voz baixa.
E isso cansa.
Cansa ter que ser duro o tempo todo. Cansa fingir que nada me atinge, que o sangue derramado não pesa na minha consciência. Eu carrego nos ombros cada vida que se perdeu por minha ordem, cada moleque que entrou no crime porque me viu como exemplo. Não adianta mentir: eu sei que sou responsável por muita dor. Mas também sei que esse foi o único jeito que encontrei de sobreviver.
No fundo, eu ainda lembro do menino que eu fui. O menino que sonhava em ter uma família de verdade, que queria só um prato cheio e um colo pra descansar. Esse menino nunca morreu dentro de mim, só ficou enterrado sob camadas de frieza. Às vezes, quando o silêncio me cerca, eu ainda escuto a voz dele gritando, pedindo pra ser resgatado. Mas eu não sei como fazer isso.
Minha rotina hoje é marcada por guerra. Guerra com rivais, guerra com a polícia, guerra interna pra manter o controle. Todo dia é uma prova de força, um teste de lealdade. E lealdade, aqui, é coisa rara. Quem hoje jura que morreria por mim, amanhã pode estar vendendo meu nome em troca de um pedaço de poder. Já aprendi a não confiar em ninguém.
E mesmo assim, existem momentos em que eu me permito sentir. Quando subo na laje e olho pro Rio lá embaixo, vejo as luzes brilhando, o mar ao longe, a cidade que parece tão distante e tão próxima ao mesmo tempo. Me pergunto: e se minha vida tivesse sido diferente? E se eu tivesse tido uma chance de verdade? Será que eu estaria lá embaixo agora, sentado num bar, rindo com amigos, sem medo de levar um tiro pelas costas?
Talvez seja ilusão, mas eu invejo essa vida simples. Não a riqueza, não os luxos. Só a paz. Dormir sem precisar esconder uma pistola embaixo do travesseiro. Andar sem precisar olhar pra trás a cada passo. Viver sem medo.
Mas não tem volta. As minhas mãos estão sujas, e eu sei disso. Não adianta tentar lavar, o sangue gruda, o passado não perdoa. Talvez o meu destino seja esse mesmo: viver e morrer como patrão. No fim das contas, a rua não dá segunda chance.
Mesmo assim, há algo dentro de mim que insiste em acreditar que pode haver outro caminho. Um pedaço de mim que não se apagou, que ainda sonha com algo diferente. Não sei o que é. Talvez amor, talvez redenção, talvez só uma miragem. Mas esse pedaço existe, e eu não consigo matá-lo.
Eu sei que muita gente me olha como se eu fosse só mais um criminoso, e talvez eu seja. Mas por trás da arma e do título de patrão, ainda existe um homem. Um homem cansado, solitário, tentando entender se ainda há espaço pra esperança dentro dele.
Eu sou o Erik. O patrão do Morro do Horizonte. O homem que carrega uma coroa de ferro na cabeça e um coração em guerra no peito.
E mesmo sem acreditar muito, eu sinto que algo grande ainda vai cruzar o meu caminho. Talvez seja a vida me cobrando o preço de cada escolha. Ou talvez seja uma chance — a última — de me encontrar de verdade.