Acordei com o barulho das vozes na rua. No Morro do Horizonte, o silêncio nunca dura muito. Ainda eram seis horas da manhã, mas já tinha gente gritando pela janela, moto subindo a ladeira com o escapamento estourado e o som de um funk vindo de algum barraco. Eu me virei na cama, puxei o lençol e por um instante pensei em dormir mais. Mas não dava. A minha vida sempre foi de correr atrás, e quem sonha grande não pode se dar ao luxo de perder tempo.
Levantei, arrumei a cama e logo senti o cheiro de café vindo da cozinha. Minha mãe já estava de pé, como sempre. Ela parecia carregar uma energia que eu ainda não entendia de onde vinha, porque trabalhava tanto, chegava tarde, mas nunca deixava de preparar o café da manhã para mim.
— Bom dia, mãe — disse, entrando na cozinha e beijando o rosto dela.
— Bom dia, filha. Dormiu bem?: ela respondeu, sorrindo, mesmo com as olheiras marcadas.
Assenti e me sentei à mesa. Enquanto passava manteiga no pão, pensei no dia cheio que me esperava: escola pela manhã, curso técnico de enfermagem à tarde e ainda a catequese na igreja à noite, onde eu ajudava as crianças.
Muita gente me perguntava como eu conseguia fazer tanta coisa. Eu mesma não sabia explicar direito. Só sabia que precisava ocupar o meu tempo com coisas boas, porque aqui no morro a linha entre o certo e o errado é muito fina. Bastava um passo em falso para cair no lado de lá, e eu não queria isso para mim.
Na escola, eu sempre me dedicava. Não porque fosse a melhor aluna tinha dias que o cansaço me pegava, tinha matérias que me davam dor de cabeça — mas porque acreditava que estudar era a única chave capaz de abrir a porta que me tiraria dali. Gostava mesmo de português e de literatura. Tinha um professor que vivia dizendo:
— Samanta, você escreve bonito. Um dia ainda quero ver um livro seu publicado.
Eu ria, meio sem acreditar. Mas no fundo, aquela ideia me aquecia. Talvez fosse por isso que eu carregava sempre um caderno, escrevendo pequenos textos, poesias, frases soltas sobre a vida no morro, sobre a fé, sobre os sonhos. Era meu jeito de transformar em beleza aquilo que muitas vezes só parecia dor.
No curso técnico, o clima era outro. Ali eu me sentia ainda mais próxima do que queria ser: alguém que ajuda os outros. Desde pequena, tinha esse desejo de cuidar. Talvez porque eu via tanta gente sofrendo ao redor, tanta criança doente sem atendimento, tanta família desesperada quando a violência deixava mais uma vítima. Eu queria ser útil. Queria ser a mão estendida.
Não era fácil. O curso exigia muito: estágio em clínicas, matérias complicadas como anatomia, horas de leitura. Mas eu gostava de cada detalhe. Quando colocava aquele jaleco branco, mesmo sendo simples, sentia um orgulho imenso. Era como vestir o futuro que eu sonhava.
E não era só isso. Eu também ajudava na igreja, principalmente com as crianças da catequese. Aquelas carinhas curiosas, às vezes rebeldes, às vezes carentes de carinho, eram meu maior presente. Eu ensinava as orações, organizava brincadeiras, ajudava nas festinhas de Páscoa e Natal. Não recebia nada em troca além de abraços e sorrisos, mas isso era tudo o que eu precisava.
No fundo, eu acreditava que cada gesto de bondade era uma semente. Talvez nem todas brotassem, mas algumas poderiam crescer e mudar vidas.
Além disso, eu gostava de coisas simples. De caminhar pela laje à tarde, quando o vento soprava fresco e dava pra ver quase toda a cidade lá de cima. Gostava de ouvir música enquanto arrumava o quarto, de cantar baixinho para não incomodar os vizinhos. Gostava de cozinhar com a minha mãe, aprendendo os temperos que ela dizia ter herdado da minha avó.
Também gostava de ajudar os vizinhos quando podia. Se alguém precisava de um favor, eu estava lá. Já cuidei de crianças para uma vizinha que trabalhava à noite, já acompanhei uma senhora idosa até o posto de saúde, já emprestei cadernos para colegas que não tinham dinheiro para comprar. Para mim, isso era natural. Minha mãe me ensinou que a vida no morro só faz sentido quando a gente aprende a se apoiar uns nos outros.
Mas, claro, nem tudo era leve. Havia dias em que o medo batia forte. Como quando ouvíamos tiros no meio da madrugada e tínhamos que nos jogar no chão. Ou quando passávamos por uma viela e víamos jovens da nossa idade com fuzis nas mãos, olhos endurecidos demais para quem ainda deveria estar sonhando. Eu sempre pensava: “Poderia ser eu, se tivesse escolhido outro caminho”.
Às vezes, a tentação do dinheiro fácil aparecia bem perto. Já ouvi convites, já senti olhares insistentes. Mas cada vez que isso acontecia, eu lembrava das palavras da minha mãe:
— O errado pode até dar conforto por um tempo, filha. Mas nunca vai dar paz.
E era a paz que eu queria.
Naquela tarde, depois do curso, decidi passar na casa da minha amiga Janaína. Ela era meu oposto: falante, sonhadora, sempre com uma piada pronta. Estávamos juntas desde pequenas, e era com ela que eu dividia os meus medos e segredos.
— Samanta, você precisa viver um pouco, menina!: ela sempre dizia, rindo quando eu contava sobre os meus estudos e compromissos.
— Tá sempre ocupada demais.
Eu ria junto, mas, no fundo, sabia que a minha forma de viver era essa: lutar todos os dias para construir algo melhor.
Quando voltei para casa, já era noite. O morro estava mais silencioso, o que sempre me deixava com a pulga atrás da orelha. Normalmente, silêncio demais significava movimento estranho. Mas naquele dia, por sorte, nada aconteceu.
Jantei com a minha mãe, contei sobre o curso e sobre a catequese. Ela ouvia com atenção, como se cada detalhe fosse importante.
— Tenho orgulho de você, filha: ela disse, segurando a minha mão com carinho.
— Nunca esqueça: a luz que você carrega pode iluminar até os cantos mais escuros.
Deitei-me naquela noite com o coração cheio. Eu não tinha muito, mas tinha amor, fé e esperança. E isso já era muito mais do que muitos ao meu redor podiam sentir.
Eu só não sabia que, bem ali, entre as vielas do Morro do Horizonte, meu destino já estava se preparando para se cruzar com o de alguém que carregava justamente o oposto de tudo o que eu cultivava. Alguém que conhecia a escuridão de perto, alguém que era a própria face do perigo que minha mãe tanto me alertava.
Mas, até aquele momento, eu só era Samanta: a menina que sonhava, que estudava, que acreditava que o bem sempre encontrava um jeito de florescer, mesmo em meio ao concreto quebrado do morro.