ERIK

1043 Words
Acordei antes do sol nascer, como sempre. No morro, ser patrão significa nunca dormir de verdade. Mesmo quando fecho os olhos, minha cabeça continua ligada, atenta a qualquer barulho diferente, a qualquer passo fora do lugar. Já perdi muita gente por descuido, e não vou cometer o mesmo erro. Levantei da cama devagar, sem fazer barulho. O quarto era simples, apesar de todo o dinheiro que já passou pelas minhas mãos. Tinha televisão, uma cama grande e uma garrafa de uísque pela metade em cima da cômoda. Mas nada de luxo exagerado. Quem mostra demais, no morro, vira alvo rápido. Passei uma água no rosto, vesti a bermuda preta, a camiseta básica e calcei o chinelo. O fuzil já estava encostado na parede, como se fosse parte da mobília. Peguei a arma, chequei o pente, enfiei a pistola na cintura e subi para a laje. Lá de cima, vi o Morro do Horizonte acordando. O céu ainda estava escuro, com alguns tons alaranjados no horizonte, e a favela já se mexia: mulheres indo trabalhar, crianças chorando, moto subindo com pressa. Meus homens estavam espalhados pelas bocas, atentos. Dei um trago no cigarro e fiquei observando. — Bom dia, chefe — disse um dos rapazes, subindo com rádio na mão. — Movimento tranquilo até agora. Assenti. Movimento tranquilo era sempre relativo. Tranquilo até quando? Até a polícia aparecer? Até um rival tentar invadir? Até algum vacilão dentro da própria equipe querer testar meu poder? Ser patrão é isso: viver sabendo que a paz nunca passa de ilusão. Depois de rodar as bocas, desci para a casa da frente, onde os soldados estavam reunidos. Era hora da contagem. Dinheiro da noite passada estava sobre a mesa, dividido em maços, e cada gerente prestava conta. — Quarenta e cinco mil, chefe — disse um deles, colocando os pacotes de notas à minha frente. — Tudo certo. Olhei rápido, conferi. Eu já conhecia os números de cor. Sabia quando estava faltando, quando alguém tentava passar a perna. Eles sabiam também que eu não perdoava erro. No crime, confiança é moeda rara. — Tá certo. Mas fica de olho no movimento da rua de baixo. Ontem tinha polícia rondando. Não quero surpresa — falei, firme. Eles assentiram, sérios. Todos sabiam que comigo não tinha segunda chance. Cresci aprendendo a ser frio. Foi isso que me manteve vivo. Depois da contagem, sentei com meu braço direito, o Naldo. Ele me acompanhava desde moleque, quando a gente ainda fazia pequenos corre. Agora era meu homem de confiança, o único que podia falar comigo sem medo. — Tá ficando pesado, Erik. A polícia tá fechando o cerco — ele disse, olhando ao redor para garantir que ninguém escutava. — E os caras do outro morro tão de olho. Acendi outro cigarro e soltei a fumaça devagar. — Sempre foi pesado, Naldo. Só muda o nome dos inimigos. Ele não respondeu, apenas me encarou. Sabia que eu estava cansado, mesmo que eu não admitisse. O poder tem um preço alto, e eu já estava pagando há anos. Passei o resto da manhã circulando pelo morro. Cumprimentei alguns moradores, dei dinheiro para uma senhora comprar remédio, ajudei um moleque a carregar compras da escadaria. Não porque eu fosse santo, mas porque era necessário. Aqui, respeito não vem só do medo, vem também do que você devolve para a comunidade. E, no fundo, parte de mim gostava disso. Era como se, em meio ao sangue e à violência, eu ainda pudesse equilibrar a balança com pequenos gestos. Eu sabia que não apagava nada do que já tinha feito, mas pelo menos me fazia sentir um pouco mais humano. Na parte da tarde, desci para o barracão, onde os rapazes guardavam o armamento. Fiz questão de verificar tudo: pistolas, fuzis, munição. Organização era o que nos mantinha vivos. Enquanto passava os olhos pela pilha de armas, pensei no caminho que tinha me trazido até ali. Quando criança, eu não sonhava em ser patrão. Eu só queria ter o que comer, queria que minha mãe largasse as drogas, queria que meu pai estivesse presente. Mas nada disso aconteceu. Cresci sozinho, aprendendo que ou eu pegava na arma, ou seria mais um corpo estendido no chão. E eu escolhi viver. Escolhi vencer, mesmo que o preço fosse alto. No fim da tarde, subi novamente para a laje. O sol estava se pondo, tingindo o céu de laranja e vermelho. Aquela vista sempre me fazia pensar. A cidade brilhava lá embaixo, prédios luxuosos, carros caros. Aqui em cima, a gente vivia outra realidade, uma guerra constante que ninguém de fora queria enxergar. Foi nesse momento que vi Samanta passando pela rua de baixo. Não era a primeira vez que a notava. Sempre com a mochila nos ombros, passos rápidos, cabeça erguida. Diferente das outras meninas, ela não parava para olhar demais, não tentava chamar atenção. Andava como quem sabia para onde queria ir. Havia algo nela que me intrigava. Talvez fosse a pureza no jeito de caminhar, a determinação no olhar. Eu, que já tinha visto tanta maldade, me pegava pensando no que passava pela cabeça dela. Será que ela também sonhava em sair daqui? Ou será que acreditava que podia mudar o lugar onde nasceu? Balancei a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Eu não tinha tempo para isso. No meu mundo, sentimentos eram fraqueza. E fraqueza matava. A noite caiu, e o morro se transformou. O silêncio da tarde deu lugar ao barulho das motos, à música alta e aos gritos de comando. Eu estava no centro de tudo, organizando a movimentação, garantindo que o dinheiro fosse recolhido, que ninguém vacilasse. Mas, no fundo, a solidão batia. Eu estava cercado de homens, de armas, de dinheiro. Mas não tinha ninguém de verdade. Ninguém que conhecesse Erik, o homem, e não apenas o patrão. Deitei-me tarde, como sempre. A arma ao meu lado, o barulho do morro ainda ecoando lá fora. Fechei os olhos e tentei dormir. Mas a imagem de Samanta voltou à minha mente. E, por um instante, eu me permiti imaginar como seria viver um dia sem armas, sem sangue, sem medo. Um dia onde eu pudesse simplesmente ser… só um homem. Mas isso era sonho. E no Morro do Horizonte, sonhos não duram muito.
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