O OLHAR QUE MUDOU MEU DIA

1194 Words
O dia começou como qualquer outro no Morro do Horizonte: o sol despontando por entre os prédios amontoados, o cheiro de comida fresca escapando das casas, crianças correndo entre as escadas, cachorros latindo, o rádio de algum vizinho cantando funk. Eu acordei cedo, como sempre, preparando o café para mim e minha mãe. Nada fora do comum, nada que desse indícios de que hoje algo inesperado mudaria a minha rotina. Enquanto mexia na cozinha, os pensamentos voltaram para ontem. Aquela cena do carro preto ainda estava fresca na minha memória. Eu não sabia quem estava dentro, e nem por que o veículo havia parado ali, tão silencioso e imponente, como se tivesse surgido do nada. Meu coração ainda acelerava só de lembrar. Era estranho sentir essa mistura de curiosidade, medo e algo indefinido que me deixava inquieta. — Samanta, você tá aí? — chamou minha mãe, da sala. — Tô, mãe. Só terminando o café. — respondi, tentando afastar os pensamentos do carro e focar no presente. Depois do café, coloquei minha mochila nas costas e saí para a escola. Caminhar pelas ruas do morro é sempre um exercício de atenção: buracos, escadas irregulares, vizinhos apressados. Mas também é um passeio cheio de vida: crianças brincando de bola, senhoras sentadas conversando, vendedores chamando pelo nome de clientes habituais. Tudo isso me fazia sentir parte de algo maior, mesmo com todas as dificuldades. No caminho, revivi a imagem do carro preto e do breve momento em que alguém dentro dele me observou. Foi rápido, apenas alguns segundos, mas suficiente para que eu sentisse algo estranho, um arrepio que percorria meu corpo. Quem seria aquela pessoa? Por que parecia tão atento a mim? Por mais que tentasse racionalizar, a curiosidade insistia em voltar. Na escola, tentei me concentrar nas aulas, mas minha mente insistia em vagar. Matemática, português, ciências… tudo parecia distante quando meu pensamento retornava àqueles olhos que me espiaram. Tentei me convencer de que era apenas coincidência, que não havia mistério nenhum. Mas meu coração não aceitou isso. Algo em mim sabia que havia mais do que apenas um carro parado em uma rua do morro. Após as aulas, fui para o curso de informática comunitário. Adoro aprender coisas novas, sentir que cada conhecimento é um degrau a mais em direção a um futuro diferente. Enquanto digitava códigos e aprendia novas funções, pensei em como a vida poderia ser melhor se eu tivesse menos barreiras, menos medo, mais oportunidades. Carla, minha melhor amiga, sempre dizia que eu via o mundo de uma forma especial, enxergando possibilidades onde outros viam limites. No intervalo, sentei com ela no banco do pátio. — Sam, você tá estranha hoje. Alguma coisa aconteceu? — perguntou Carla, franzindo a testa. Suspirei, sem saber se deveria contar. — Ah… nada demais. Só pensando em algumas coisas. — disse, tentando parecer natural. Ela me olhou de um jeito que só os melhores amigos conseguem, com aquele olhar que parece enxergar a alma. — Hum… sei não. Tem algo aí, né? Pode me contar, amiga. Respirei fundo, sentindo que precisava dividir. — Ontem… eu vi um carro preto parado perto da rua principal do morro. Alguém dentro parecia me observar. Não sei quem era, nem por que estava lá. Foi rápido, mas… me deixou estranha. Carla arregalou os olhos. — Sério? Uau… isso é meio assustador, né? Mas também intrigante! — Exato. — murmurei, olhando para minhas mãos. — Não sei se é bom ou r**m, só sei que mexeu comigo de um jeito que não consigo explicar. Ela sorriu e deu um leve t**a no meu braço. — Ah, Samanta… sempre tão sensível. Mas não se preocupe. Pode ser qualquer coisa, ou qualquer pessoa… talvez até uma coincidência. — Talvez… — concordei, mas no fundo sabia que não era coincidência. Algo em mim dizia que aquele olhar tinha um propósito, mesmo que eu ainda não entendesse qual. Depois do curso, voltei para casa passando pelas ruas do morro. Cada passo me lembrava do que acontecia todos os dias: famílias tentando sobreviver, crianças brincando sem perceber o perigo, vizinhos correndo atrás do pão, das contas, da vida. Era um ambiente duro, mas cheio de pequenas belezas que muitos não notam. Chegando em casa, ajudei minha mãe a preparar o jantar. Ela percebeu minha inquietação, mas não insistiu. Sabia que eu tinha pensamentos próprios e respeitava meu silêncio. Sentamos à mesa, e cada garfada parecia um pequeno conforto em meio ao turbilhão de emoções que eu carregava. Depois do jantar, sentei na minha cama, abrindo o diário que sempre me acompanha. Peguei a caneta e comecei a escrever: "Hoje tudo pareceu normal, mas não está. Vi aquele carro preto novamente em minha memória, senti alguém me observando. Não sei quem é, não sei nada, mas a sensação é forte. É como se meu coração reconhecesse algo que minha mente ainda não compreende. Tento ignorar, racionalizar, mas não consigo." Enquanto escrevia, lembrei-me de todas as coisas boas que faço no morro: ajudar as crianças com tarefas escolares, organizar pequenas atividades no centro comunitário, levar cestas básicas para vizinhos que precisam. É a minha maneira de resistir, de mostrar que é possível viver com dignidade, mesmo aqui. O telefone tocou. Era Carla. — Sam! — disse ela, animada. — Não para de pensar na gente organizar aquele projeto para as crianças do morro? Podemos começar semana que vem! — Claro! — respondi, sorrindo. — Vai ser incrível, Carla. É bom ter algo positivo pra focar. A conversa com Carla me fez lembrar que, mesmo com o mistério do carro preto e a sensação estranha de ser observada, minha vida não podia parar. Eu tinha responsabilidades, sonhos, amigos, família. Eu tinha um caminho a seguir, e ele não podia ser interrompido por alguém desconhecido. Mesmo assim, enquanto desligava o telefone, não pude evitar sentir um arrepio ao imaginar aquele olhar desconhecido, o breve instante em que alguém de fora me notou no meio do meu mundo. Algo dentro de mim sabia que isso mudaria alguma coisa, mesmo sem que eu ainda pudesse nomear o que era. Antes de dormir, olhei pela janela do meu quarto. O morro estava silencioso, mas vivo. O vento passava pelas escadas, balançando varais e trazendo o cheiro das casas vizinhas. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos. A imagem do carro preto permaneceu, gravada na mente como uma pequena faísca de mistério, de promessa, de algo novo e desconhecido. E, naquele silêncio, senti algo que não acontecia há muito tempo: uma mistura de ansiedade e expectativa. Algo me dizia que a vida estava prestes a mudar, e que eu precisava estar pronta para o que viesse. Sem saber quem estava por trás daquele vidro, sem entender o que significava, apenas sentindo que algo maior me observava, e que talvez, de alguma forma, aquilo fosse importante. Fechei os olhos e dormi com o coração inquieto, sonhando com possibilidades, com mudanças, com um futuro que eu ainda não conseguia imaginar, mas que começava ali, no Morro do Horizonte, com o simples olhar de alguém desconhecido que havia cruzado meu caminho e deixado um rastro de curiosidade e fascínio no meu coração.
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