CAPÍTULO 12
BOY NARRANDO
Tem gente que nasce com escolha. Outros nascem com caminho marcado. Eu fui do segundo tipo.
Quando me chamam de braço direito do Deco, de sub do morro, acham que isso veio fácil. Que foi ambição, sede de poder, vontade de mandar. Não foi. Nunca foi. Eu entrei porque não tinha outra porta aberta — e porque, quando a vida te empurra pro abismo cedo demais, ou você aprende a cair em pé… ou não levanta mais.
Eu cresci aqui em cima. Laje quente, viela estreita, barulho de tiro misturado com risada de criança. Meu pai sumiu antes de eu aprender a escrever o nome. Minha mãe virou duas pessoas numa só: trabalhadora e doente. Trabalhava até o corpo pedir arrego, depois passava dias deitada, apagada, esperando força voltar. Eu aprendi cedo a cuidar dela e de mim.
Escola sempre foi luxo. Fome nunca foi novidade.
Com doze anos eu já fazia corre pequeno: entrega aqui, recado ali, vigia de esquina. Nada grande. Nada que chamasse atenção. Eu observava mais do que falava. Sempre fui assim. Quieto. Calculista. Enquanto os outros se exibiam, eu aprendia.
Foi assim que o morro me viu antes de eu ver o morro.
Quando fiz dezessete, a casa caiu de vez. Minha mãe precisou de remédio caro, exame, médico que não atendia pelo SUS. Eu fui atrás de tudo que era bico. Não deu. A conta não fechava. Nunca fecha pra quem é honesto demais num lugar que cobra caro pra sobreviver.
Foi aí que o nome do Deco começou a aparecer mais perto.
Na época ele ainda tava subindo, mas já era respeitado. Não gritava, não humilhava, não fazia cena. Mandava com postura. E isso, aqui, vale mais que arma.
Um dia me chamaram pra trocar ideia. Nada direto. Só observar. Testar. Ver se eu tinha cabeça. Aceitei. Depois outro teste. Passei de novo. Quando vi, já tava dentro. Não porque eu quisesse ser alguém — mas porque eu precisava manter alguém viva.
Minha mãe durou mais dois anos. Quando morreu, eu já era homem feito aos olhos do morro. Por dentro, só mais um moleque cansado.
A diferença é que eu não me perdi.
Nunca fui de beber em serviço. Nunca usei nada. Nunca vacilei. Nunca confundi poder com bagunça. Deco viu isso rápido. Ele precisa de gente assim do lado. Gente que pensa antes de agir. Gente que segura a bronca quando o caldo entorna.
Foi assim que virei sub.
E com o cargo veio tudo: responsabilidade, risco… e silêncio.
Porque braço direito não pode errar. Não pode sentir demais. Não pode querer o que não é permitido.
E foi aí que entrou a Diana.
Eu conheço a Diana desde moleque. Vi ela crescer, vi o luto nos olhos dela quando perdeu os pais cedo demais, vi o Deco virar muro em volta daquela menina. Sempre respeitei isso. Sempre. A Diana era território sagrado. Intocável. Proibida. Todo mundo sabia. E eu, mais que ninguém, porque eu devia lealdade ao cara que me deu espaço quando o mundo só me deu porta fechada.
Mas sentimento não pede permissão.
Ela sempre foi diferente. Não era só bonita — era viva. Presença. Daquelas pessoas que entram num lugar e mudam o ar sem fazer esforço. Inteligente, língua afiada, riso fácil, mas com uma força quieta que pouca gente percebe. E eu percebia. Sempre percebi.
Nunca cheguei perto. Nunca tentei nada. Nunca olhei além do permitido. Ou pelo menos achei que não.
Até a noite de hoje.
Eu tava na contenção quando vi ela chegar. Diana não anda. Ela desfila sem perceber. O povo olha. Sempre olhou. Meu radar ligou na hora. Não por ciúme — por cuidado. Ser irmã do Deco já coloca um alvo invisível nas costas. Eu sei como funciona. Sei como gente r**m pensa.
Ela tava com uma amiga que eu não conhecia. Isso me deixou em alerta. Gente nova sempre me deixa. Passei a visão pro Deco depois, mas naquela hora era observar.
O Frajola chegou junto. Moleque firme. Sempre foi. Eu mesmo já tinha falado com o Deco sobre ele, sobre a dedicação, o jeito sério. Não é qualquer um que eu indico. E mesmo assim, olho aberto. Sempre.
Passei a noite toda assim. Andando. Parando. Fingindo normalidade. Mas meus olhos voltavam pra ela sem eu querer. Cada riso. Cada gesto. Cada vez que alguém chegava perto demais.
Quando o Deco saiu do camarote com a Shirlei, a responsabilidade caiu mais ainda nas minhas costas. Eu virei o filtro entre o baile e qualquer problema que pudesse respingar nela.
Horas depois, o dia começou a amanhecer, e eu finalizei o baile. Gente indo embora, outros bêbados demais pra pensar. Foi quando eu vi a Diana saindo em direção ao carro. Segui de longe. Não por desconfiança — por instinto.
E foi aí que deu merda.
Pneu rasgado. Proposital. Quem fez sabia o que tava fazendo. Naquele segundo, meu corpo já entrou em modo alerta total. A Diana não pode ficar vulnerável ali. Nunca.
Pareei a moto do lado dela e falei como quem não quer nada. Ela bufando, irritada, linda até quando tá brava. Analisei rápido. O r***o era grande demais. Não ia rodar.
Trocar pneu ali era o mínimo que eu podia fazer. Tirei a camiseta pra não sujar, entreguei pra ela. Vi o olhar dela travar por um segundo e quase ri. Não de deboche. De nervoso. Porque eu senti. Sentia fazia tempo.
Mas controle sempre foi minha maior arma.
Quando vi que o parafuso não ia sair, a decisão foi automática: ela não ia ficar ali sozinha. Levei ela pra casa. Ponto.
No caminho, senti o peso do que tava fazendo. Sabia que ia dar falatório. Sabia que o Deco ia saber. Sabia que eu tava atravessando uma linha invisível. Mas eu também sabia que deixar ela ali não era opção.
Quando chegamos, o Deco já tava no portão. Aquele olhar que atravessa. Eu fiquei sem graça. Não por culpa — por respeito. Ele é meu patrão. Meu irmão de guerra. E acima de tudo… o irmão dela.
Ela tentou aliviar o clima. Agradeceu. Pediu pra eu ver o guincho depois. Eu confirmei e saí rápido. Não fiquei. Não provoquei. Não testei limite.
Mas enquanto descia o morro, meu peito tava apertado.
Porque a verdade é simples e c***l:
Eu sempre respeitei o Deco. Sempre. Dei minha vida por ele se precisasse. Ainda dou.
Mas sentimento não entende hierarquia.
E naquela noite, enquanto eu subia de novo pra casa dele pra resolver o resto das paradas do baile, eu sabia que algo tinha mudado. Não no mundo. Em mim.
Quando cheguei na porta da casa do Deco e vi ele sair com aquela expressão fechada, protetora, quase ameaçadora… eu entendi o tamanho do problema que eu tava criando sem querer.
Não tinha acontecido nada.
Mas tinha acontecido tudo.
E a partir dali, eu sabia: ou eu enterrava esse sentimento de vez…
ou ele ia me custar mais caro do que qualquer guerra que eu já enfrentei nesse morro.
Continua ....