NARRADO MIGUEL SANTANA
Aqui dentro, ninguém dorme de verdade.
No BOPE, a cabeça nunca desliga só descansa com um olho aberto e a arma ao lado.
A gente aprende a viver com o barulho do rádio, o cheiro de pólvora e o gosto metálico da tensão.
É rotina.
E rotina, pra mim, é sobrevivência.
Tem dia que eu acordo antes do sol, o corpo pedindo trégua, e penso:
“Vale mesmo a pena?”
Mas aí lembro do meu velho, lá na laje do Cruzeiro, olhando o horizonte com aquele cigarro entre os dedos e o orgulho no olhar.
Lembro da minha mãe, sempre dizendo que coragem não é não ter medo é ir mesmo tremendo.
E é isso que me levanta.
Sou filho dos dois: do homem que dominou um morro inteiro e da mulher que ensinou ele a abaixar a arma.
Nasci no meio do caos e aprendi cedo a andar no meio-fio entre o certo e o errado.
Hoje, eu sou o equilíbrio dessa linha.
Nem santo, nem bandido.
Só um homem tentando fazer o nome “Santana” significar algo limpo.
Aqui na base, os caras me respeitam.
Me chamam de “Santana”, mas não é por causa do BOPE é por causa da postura.
Aprendi com o meu pai que liderança não se impõe, se prova.
E com a minha mãe, que força de verdade é não perder o coração no meio do inferno.
Eu não sou o mais velho, nem o mais forte.
Mas sou o que segura o olhar quando o inferno abre o portão.
E isso, por aqui, é o que separa os vivos dos heróis mortos.
Minha ficha tá limpa.
Meu nome, pesado.
E minha vida, simples: base, missão, morro.
Voltar pra casa é raro.
Mas quando volto, o Cruzeiro ainda me reconhece.
Os moleques param, olham a farda e cochicham:
“Olha lá, o filho do Rey.”
E isso mexe comigo.
Porque o morro que antes abaixava a cabeça pro meu pai, agora levanta o queixo pra me cumprimentar.
Não por medo por respeito.
E é esse tipo de vitória que me move.
Relacionamento? Nenhum.
Nem tempo, nem paciência.
O único rolo que tive foi com a Ana Lívia, filha da tia Simone amiga da minha mãe.
A gente cresceu junto, brincou junto, e um dia, sem pensar, se beijou.
Foi rápido, curioso, sem amor nem história.
Coisa de dois adolescentes que não sabiam direito o que queriam.
E depois… cada um seguiu seu rumo.
Ela ficou no Cruzeiro, eu desci pro mundo.
Sem drama, sem promessa.
Desde então, eu não me envolvi com ninguém.
Mulher olha, sorri, provoca, mas eu não me iludo.
Quem veste essa farda não tem espaço pra sentimento.
Aqui, quem se distrai morre.
E eu ainda tenho muito o que fazer antes de descansar.
Às vezes me chamam de frio.
Talvez eu seja.
Mas é o preço que se paga pra continuar inteiro.
O mundo lá fora é bonito, mas o que eu vejo todo dia é o lado que ninguém quer encarar.
Gente implorando por milagre, criança no meio do fogo cruzado, e o sistema empurrando a culpa pra quem segura o gatilho.
Eu não me vejo como herói.
Herói é quem consegue voltar pra casa e dormir sem ouvir o eco dos tiros.
Eu só faço o que tem que ser feito.
Porque no fim, é o que meu velho sempre disse:
> “O nome Santana tem peso, filho.
A diferença é o que tu faz com ele.”
E é isso que me guia.
O nome, o sangue e a promessa.
O alojamento ficou em silêncio depois que o rádio parou de chiar.
Só o zumbido do ventilador e o estalo seco do metal esfriando.
A noite parecia calma, mas aqui dentro calma é só outra palavra pra fingimento.
Encostei o fuzil na parede e me joguei na cama.
A cabeça ainda rodava, o corpo pedindo descanso, mas o pensamento… o pensamento não cala.
O inferno da rua eu aprendi a dominar o que eu não aprendo é calar o que vem de dentro.
Fechei os olhos e a imagem dela veio nítida.
Cabelo loiro em cachos finos, bagunçados como se o vento brincasse neles.
Olhos verdes, vivos, risonhos os únicos que me fazem esquecer de onde vim.
Manuela.
A Manu.
Minha irmã.
Meu ponto fraco.
No meio da guerra, ela é o único lugar onde nada dói.
Quando eu lembro da risada dela, o barulho dos tiros some.
Quando ela fala meu nome, o peso do brasão fica leve.
E se um dia quiserem me quebrar, não precisam mirar em mim basta encostar um dedo nela.
Meu pai sempre disse que cada homem tem um calcanhar.
O dele e minha mãe.
O meu… é aquela menina.
O barulho da porta se abrindo me tirou do transe.
Touro entrou com aquele jeito dele espalhafatoso, rindo sozinho, mastigando alguma merda.
— “Amanhã, finalmente, folga, p***a!” — disse alto, jogando o colete no canto. — “Tu devia agradecer a Deus e ao sargento. Vamos pro bar novo do Centro. Dizem que tem mulher que faz até o BOPE pedir rendição.”
Nem abri os olhos.
— “Passo.”
Ele bufou, sentando na cama de baixo.
— “Santana, tu é o único cara que tem folga e prefere conversar com o próprio silêncio. A gente vai te perder pra solidão, irmão.”
Abri um olho, cansado.
— “Amanhã eu subo o morro.”
— “O Cruzeiro?” — ele perguntou, baixando o tom.
Assenti.
Touro era o único ali que sabia.
Sabia o que o nome Santana carregava.
Sabia que o “Rey do Cruzeiro” não era lenda era meu pai.
E sabia também que o morro que me viu nascer foi o mesmo que um dia meu pai governou no ferro e na fé.
Ele ficou em silêncio por um segundo, depois riu.
— “Eu vi teu celular outro dia. c*****o, irmão… tem mais foto daquela garotinha do que de operação. Juro que pensei que fosse tua filha.”
Olhei pra ele, sem graça e sem negar.
— “É minha irmã.”
— “Parece tua filha. Mesma cara, mesmo olho verde, sorriso igual. E vou te falar, moleque… é bonita, viu? A cara da tua mãe, só que em miniatura.”
— “É.” — falei baixo, mas firme. — “A cara e a alma.”
Touro acendeu um cigarro, tragou e soltou a fumaça, pensativo.
— “Falando em alma… com todo respeito, tua mãe não parece ser mãe de dois filhos já. Aquela mulher linda pra —”
Nem deixei ele terminar.
Abri os olhos e encarei ele de frente.
— “Se tu tivesse falado isso perto do meu pai, Touro, tu não acordava no dia seguinte.”
O silêncio pesou.
Duro, gelado.
Ele travou, piscou umas duas vezes e riu sem graça.
— “Tá tranquilo, parceiro. Falei no respeito. A dona Lívia parece ser gente de luz, só isso.”
Deitei de novo, sem quebrar o olhar.
— “Ela é mais que isso. É o que segura tudo de pé.”
Ele assentiu devagar, apagando o cigarro.
— “Agora entendi por que tu é do jeito que é. Lealdade é coisa que vem de berço, né?”
Dei um leve sorriso.
— “No meu caso, é coisa de sangue.”
O Touro riu de novo, mas agora mais baixo, mais sincero.
— “Tu fala pouco, Santana, mas quando fala… parece que o mundo presta atenção.”
Não respondi.
Peguei o celular no bolso e abri a galeria.
A última foto era da Manu no quintal de casa, cabelo todo embaraçado, rindo pro bolo que minha mãe tinha feito torto.
Tinha algo naquele sorriso que me desmontava.
Um pedaço de paz que eu não merecia, mas que ainda me escolhia pra voltar.
Desliguei o celular e fechei os olhos.
Se amanhã o mundo desabasse, que fosse depois de eu ver aquele sorriso de novo.
Porque, no fim, por mais que eu vista farda e segure arma…
a única coisa que realmente me desarma tem cinco anos e olhos verdes.
Manu.