Desde o bilhete, desde a parede pintada, desde o boneco pendurado…
eu já não confiava nem no silêncio.
Porque o silêncio também mente.
E eu sentia: tinha alguém aqui dentro me vendendo.
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— Gabriel, tem alguém passando informação pra fora.
— Não foi a Bruna que escreveu aquela frase na laje.
— Foi alguém daqui.
— Eu sei — ele respondeu. — E eu já tenho um nome.
— Quem?
— Rodrigo.
Fiquei em choque.
— O Rodrigo que ajudava na segurança?
— O que ficou do nosso lado na guerra?
— Ele mesmo.
— Mas depois que o irmão dele foi preso, ele ficou estranho.
— Isso não prova nada.
— Eu sei. Mas hoje à noite a gente testa ele.
— Como?
— Com uma armadilha.
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Naquela noite, Gabriel marcou uma “reunião falsa”.
Só ele, eu, Nando e Rodrigo sabiam.
Falamos que íamos nos encontrar num beco, pra tratar de segurança.
A ideia era simples: se alguém atacasse… o vazamento era ele.
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Fui pro encontro com o coração na garganta.
Rodrigo chegou primeiro.
Sorriu, como sempre.
— E aí, rainha. Tudo bem?
— Tudo, e você?
— De boa. Estranho esse lugar pra reunião, né?
— Segurança nova, né? A gente se adapta.
Ele deu uma risada.
Mas tinha algo nos olhos dele.
Insegurança. Ou culpa. Ou medo.
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Dez minutos depois, dois tiros foram disparados na entrada do beco.
A gente se jogou no chão.
Nando revidou, e Gabriel correu pra proteger a saída de trás.
— Fica aqui! — ele gritou.
Rodrigo parecia em choque.
— QUE ISSO, MANO? QUE TÁ ACONTECENDO?
— Boa pergunta — respondi.
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Depois de tudo, não pegamos ninguém.
Mas sabíamos o que era:
um aviso. Ou uma distração.
Naquela mesma madrugada, o mercadinho do Jorge foi assaltado.
Levaram comida, dinheiro… e deixaram outro bilhete.
> “A coroa pesa, e você tá ficando fraca pra carregar.”
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— É ele. — Gabriel disse no carro.
— É o Rodrigo.
— A coincidência é grande demais.
— Ele tá com medo agora.
— Ótimo. Porque quem tem medo… escorrega.
— E se a gente tiver errado?
— Então a gente pede desculpa.
— Mas antes disso… a gente vive.
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No dia seguinte, fui até a casa da mãe do Rodrigo.
Não como Amanda.
Mas como a Rainha do Norte.
— O Rodrigo tá?
— Saiu cedo. Por quê?
— Só queria conversar com ele.
— Sobre... lealdade.
A mãe dele me olhou estranho.
— Meu filho é bom, dona Amanda.
— Não se meta com ele.
— Diga isso pra quem o protege.
Ela fechou a porta na minha cara.
Sinal de que eu tava certa.
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À noite, Rodrigo não apareceu no ponto de encontro.
Nem no dia seguinte.
Nem no outro.
E então, descobrimos:
ele fugiu.
Deixou o barraco vazio.
Levou só uma mochila.
Sumiu do mapa.
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— Isso confirma tudo — Gabriel disse.
— Agora é oficial: temos traíra no nosso histórico.
— Ele não tava sozinho.
— Eu sei. Mas ele era o primeiro.
— E o próximo?
— Vai ser o pior.
— Porque o segundo traidor… sempre tenta ser mais inteligente que o primeiro.
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Naquela mesma semana, começaram as mensagens anônimas nas redes sociais:
> "A rainha do morro anda armada, mas o coração dela é de vidro."
> "Gabriel tá sendo traído por quem ele mais protege."
> "O fim do reinado começa por dentro."
As mensagens viralizaram.
Algumas páginas de fofoca começaram a postar sobre “a nova rainha da favela”.
E o que era medo… virou fofoca.
E fofoca destrói.
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— A gente precisa de ação, Gabriel.
— Mostrar que ainda manda.
— Já pensei nisso.
— E então?
— Vamos subir o morro amanhã.
— Vamos reunir o povo.
— Mostrar que a gente ainda tá aqui.
— Com sangue no olho… e arma na mão.
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Na manhã seguinte, o sol nem tinha nascido quando fomos pra quadra do campo.
Chamamos geral.
Moradores, vendedores, olheiros, parceiros, vizinhos.
Gabriel subiu no parlatório.
E eu, do lado dele, ergui a cabeça.
— Eu sei que tem gente aqui que queria ver a gente caindo.
— Eu sei que tem gente que sentiu saudade da Bruna.
— Mas deixa eu lembrar uma coisa pra vocês:
Ela perdeu.
E vocês tão vivos porque ela perdeu.
Silêncio.
Continuei:
— Quem estiver do meu lado… vai andar com a cabeça erguida.
— Quem for covarde… que fuja agora.
— Porque se eu descobrir quem tá passando informação…
— Não vai ter perdão.
O morro escutou.
E o recado foi dado.
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Depois disso, as mensagens sumiram por um tempo.
Mas o medo ficou.
E em mim… cresceu uma raiva diferente.
Silenciosa.
Sólida.
Calculada.
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Naquela noite, deitada ao lado do Gabriel, falei baixo:
— Eles acham que eu sou fraca porque amo você.
— E você é?
— Não.
— É porque eu amo que eu sou perigosa.
— Porque se tocarem em você… eu viro monstro.
Ele sorriu, com os olhos fechando de sono.
— Então me promete uma coisa.
— O quê?
— Se você virar monstro…
— Que seja comigo.
— E não contra mim.
— Prometo.
Mas, no fundo…
Eu não tinha certeza se conseguiria cumprir.
Porque no morro… até o amor é uma ameaça.