Capítulo 30 – Rainha Não Foge

735 Words
O mandado passou. A poeira não. Mesmo sem encontrarem nada, a desconfiança ficou no ar. E agora todo mundo olhava pra mim como se eu carregasse culpa no corpo. --- — Amanda, você tá bem? — Rosa perguntou. — Não sei. — Quer sumir um pouco? — Não posso. — Pode sim. Todo mundo pode. — Não eu. Porque rainha que foge vira história m*l contada. --- Nos dias seguintes, o morro silenciou. Nem apoio, nem ataque. Só observação. E isso doía mais que grito. --- Gabriel me chamou de lado: — Cê precisa descansar. — Eu durmo. — Não é sono. É a cabeça. Você tá no limite. — Eu passo do limite desde que nasci. — Mas agora tá diferente. Tem gente do alto te vigiando. E pior… tem gente de baixo querendo ver tua queda. — Que venham todos. --- Na sexta-feira, recebi um convite inesperado. Um podcast de ativistas da quebrada queria me entrevistar. — Querem me pintar de criminosa ao vivo? — Não — disse Rosa. — Querem ouvir você. De verdade. Pensei por horas. E depois respirei fundo: — Vou. --- Cheguei no estúdio improvisado com o coração batendo na garganta. Duas câmeras. Três microfones. Uma mesa de madeira. E três jovens pretos me olhando com olhos de quem… acredita. — Cê tá pronta, Amanda? — Sempre estive. — Pode falar o que quiser. Essa quebrada é sua. --- O episódio começou. A primeira pergunta veio com calma: — Quem é a Amanda por trás do título de rainha? Pausa. — Uma menina que nunca pôde escolher ser fraca. Uma mulher que teve que engolir medo e cuspir coragem. E que agora carrega nas costas uma coroa feita de dor e resistência. Silêncio na sala. Segunda pergunta: — Você cometeu crimes? — Cometi escolhas. Em lugares onde o certo nunca foi simples. E onde a justiça não chega sem farda. — E hoje? Você se arrepende? — Me arrependo de ter confiado em quem queria meu lugar. De ter amado demais quem não sabia dividir poder. Mas nunca… nunca me arrependi de ter sobrevivido. --- O episódio durou uma hora. Quando acabou, os três estavam em silêncio. — Cê sabe que isso vai dar o que falar, né? — Eu conto com isso. --- Postaram no dia seguinte. O vídeo bateu 100 mil visualizações em 24h. Nos comentários: mulheres da favela dizendo “eu te entendo”. Homens dizendo “ela é perigosa”. Mas o mais importante… Jovens dizendo: “ela me representa”. --- Na segunda, fui chamada a depor oficialmente. Gabriel ficou tenso. — E se te prenderem? — Que prendam. — Amanda… — Eu entrei nessa sabendo que não teria final feliz. Mas se for pra cair, vai ser com a cabeça erguida. --- Cheguei na delegacia com roupa simples. Trança no cabelo. Sem maquiagem. Mas com o olhar firme. O delegado me olhou como quem já tinha um veredito pronto. — Você sabe por que está aqui? — Pra responder por viver. — Sabe onde está Darlan? — Não. Mas se souber, aviso. Ele tem contas a pagar comigo também. — Por que tanta gente tem medo de você, Amanda? — Porque mulher que sobrevive sem pedir permissão assusta. E mulher preta, então… é pavor. Ele não respondeu. Apenas anotou. --- Duas horas de perguntas. Nada provado. Nada concreto. Na saída, uma repórter me esperava. — Amanda, como você se sente sendo chamada de criminosa? Olhei a câmera, depois pra ela. — Eu prefiro ser chamada de criminosa… do que de covarde. Porque quem só assiste a dor dos outros de camarote… é cúmplice. --- No dia seguinte, voltei ao morro. Diferente do que esperava, ninguém me virou o rosto. Ninguém me aplaudiu. Mas uma menina me olhou da calçada e disse: — Se um dia eu for metade do que você é, já vou ter vencido. E aquilo valeu mais que qualquer julgamento. --- Gabriel me esperava em casa. — Você encarou tudo. — E continuo viva. — Vai ser difícil daqui pra frente. — Sempre foi. — Mas agora… cê tem gente de fora ouvindo tua voz. — Então é agora que eu grito mais alto. --- E se algum dia o mundo tentar me apagar… que lembrem: eu fui a chama. Fui a dor. Mas fui também a revolução. E rainha que é rainha… não morre. Vira lenda.
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