O mandado passou.
A poeira não.
Mesmo sem encontrarem nada, a desconfiança ficou no ar.
E agora todo mundo olhava pra mim como se eu carregasse culpa no corpo.
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— Amanda, você tá bem? — Rosa perguntou.
— Não sei.
— Quer sumir um pouco?
— Não posso.
— Pode sim.
Todo mundo pode.
— Não eu.
Porque rainha que foge vira história m*l contada.
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Nos dias seguintes, o morro silenciou.
Nem apoio, nem ataque.
Só observação.
E isso doía mais que grito.
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Gabriel me chamou de lado:
— Cê precisa descansar.
— Eu durmo.
— Não é sono.
É a cabeça.
Você tá no limite.
— Eu passo do limite desde que nasci.
— Mas agora tá diferente.
Tem gente do alto te vigiando.
E pior… tem gente de baixo querendo ver tua queda.
— Que venham todos.
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Na sexta-feira, recebi um convite inesperado.
Um podcast de ativistas da quebrada queria me entrevistar.
— Querem me pintar de criminosa ao vivo?
— Não — disse Rosa.
— Querem ouvir você. De verdade.
Pensei por horas.
E depois respirei fundo:
— Vou.
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Cheguei no estúdio improvisado com o coração batendo na garganta.
Duas câmeras.
Três microfones.
Uma mesa de madeira.
E três jovens pretos me olhando com olhos de quem… acredita.
— Cê tá pronta, Amanda?
— Sempre estive.
— Pode falar o que quiser.
Essa quebrada é sua.
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O episódio começou.
A primeira pergunta veio com calma:
— Quem é a Amanda por trás do título de rainha?
Pausa.
— Uma menina que nunca pôde escolher ser fraca.
Uma mulher que teve que engolir medo e cuspir coragem.
E que agora carrega nas costas uma coroa feita de dor e resistência.
Silêncio na sala.
Segunda pergunta:
— Você cometeu crimes?
— Cometi escolhas.
Em lugares onde o certo nunca foi simples.
E onde a justiça não chega sem farda.
— E hoje?
Você se arrepende?
— Me arrependo de ter confiado em quem queria meu lugar.
De ter amado demais quem não sabia dividir poder.
Mas nunca…
nunca me arrependi de ter sobrevivido.
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O episódio durou uma hora.
Quando acabou, os três estavam em silêncio.
— Cê sabe que isso vai dar o que falar, né?
— Eu conto com isso.
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Postaram no dia seguinte.
O vídeo bateu 100 mil visualizações em 24h.
Nos comentários:
mulheres da favela dizendo “eu te entendo”.
Homens dizendo “ela é perigosa”.
Mas o mais importante…
Jovens dizendo: “ela me representa”.
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Na segunda, fui chamada a depor oficialmente.
Gabriel ficou tenso.
— E se te prenderem?
— Que prendam.
— Amanda…
— Eu entrei nessa sabendo que não teria final feliz.
Mas se for pra cair,
vai ser com a cabeça erguida.
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Cheguei na delegacia com roupa simples.
Trança no cabelo.
Sem maquiagem.
Mas com o olhar firme.
O delegado me olhou como quem já tinha um veredito pronto.
— Você sabe por que está aqui?
— Pra responder por viver.
— Sabe onde está Darlan?
— Não.
Mas se souber, aviso. Ele tem contas a pagar comigo também.
— Por que tanta gente tem medo de você, Amanda?
— Porque mulher que sobrevive sem pedir permissão assusta.
E mulher preta, então… é pavor.
Ele não respondeu.
Apenas anotou.
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Duas horas de perguntas.
Nada provado.
Nada concreto.
Na saída, uma repórter me esperava.
— Amanda, como você se sente sendo chamada de criminosa?
Olhei a câmera, depois pra ela.
— Eu prefiro ser chamada de criminosa…
do que de covarde.
Porque quem só assiste a dor dos outros de camarote…
é cúmplice.
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No dia seguinte, voltei ao morro.
Diferente do que esperava,
ninguém me virou o rosto.
Ninguém me aplaudiu.
Mas uma menina me olhou da calçada e disse:
— Se um dia eu for metade do que você é, já vou ter vencido.
E aquilo valeu mais que qualquer julgamento.
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Gabriel me esperava em casa.
— Você encarou tudo.
— E continuo viva.
— Vai ser difícil daqui pra frente.
— Sempre foi.
— Mas agora…
cê tem gente de fora ouvindo tua voz.
— Então é agora que eu grito mais alto.
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E se algum dia o mundo tentar me apagar…
que lembrem:
eu fui a chama.
Fui a dor.
Mas fui também a revolução.
E rainha que é rainha…
não morre.
Vira lenda.