Ser rainha do morro não é usar uma coroa.
É usar uma armadura por baixo do vestido.
É sorrir com os olhos enquanto observa tudo por trás dos cílios.
E eu aprendi isso rápido demais.
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Depois da corrente, depois da reunião, depois do respeito…
Veio o medo.
Não o meu.
Mas o dos outros.
As pessoas pararam de olhar nos meus olhos.
Começaram a me chamar de “dona”, “senhora”, “ela”.
E eu senti que tinha virado o que mais me assustava:
um nome sussurrado.
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— Isso te incomoda? — Gabriel perguntou.
— O quê?
— Esse silêncio respeitoso.
— Me incomoda mais o silêncio falso.
— Quem tá fingindo?
— Não sei ainda. Mas tem alguém perto demais… e verdadeiro de menos.
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Gabriel me encarou.
Sabia que eu tava falando sério.
— Eu vou descobrir quem é — ele prometeu.
— Não. Deixa que eu descubro.
— Amanda…
— Essa batalha é minha.
— Já invadiram meu espaço demais.
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Nos dias seguintes, comecei a observar.
Conversas cortadas quando eu chegava.
Olhares trocados entre vizinhas.
Movimentações estranhas perto da laje.
Mas o que mais me chamou atenção…
foi a nova faxineira do mercadinho.
Ela sempre me via.
Sempre sorria.
Sempre perguntava de mim mais do que devia.
— Você é a Amanda, né? A do chefe?
— Sou.
— Te acho tão forte.
— Dizem que você manda mais que muito homem.
— Dizem muita coisa por aí.
— Mas nem tudo é mentira.
— Nem tudo é verdade.
Ela riu.
Mas eu não.
Fui embora com a pulga atrás da orelha.
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Naquela noite, falei com Gabriel.
— Tem alguém observando demais.
— Quem?
— Uma mulher nova no mercadinho. Alta, cabelo loiro, brinco de argola. Se diz faxineira.
— Tem nome?
— Diz que é Rúbia.
— Vou pedir pro Nando puxar a ficha dela.
— Não precisa.
— Como assim?
— Amanhã eu vou tirar a máscara dela.
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No dia seguinte, voltei lá. Sozinha.
Fingi normalidade. Peguei pão, refrigerante, papel higiênico.
Na saída, Rúbia veio ajudar a carregar.
— Posso te ajudar com isso?
— Pode sim. Vem.
Andamos juntas até a esquina.
— Obrigada, viu? — ela disse.
— Imagina.
Antes dela sair, falei:
— E me manda um abraço pro chefe da zona sul.
Ela congelou.
— Como?
— Pode falar que a Amanda sabe que ele mandou uma falsa pra me estudar.
— E que a próxima tentativa de espionagem… vai terminar com mais que só um bilhete.
O rosto dela perdeu a cor.
— Eu não sei do que você tá…
— Ah, sabe sim.
— E me escuta bem: eu posso parecer fina, educada, mulher de “chefe”.
— Mas quem protege o que é meu… sou eu.
Ela recuou.
— Se você sumir agora, talvez nem precise se explicar pra ninguém.
Ela virou e correu.
Sumiu pelas vielas como se tivesse visto a morte.
E talvez… tivesse mesmo.
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À noite, contei tudo pra Gabriel.
Ele só riu.
— Cê tá virando meu maior medo, sabia?
— Por quê?
— Porque você não precisa mais de mim pra assustar ninguém.
— E isso é r**m?
— É a melhor coisa que podia acontecer.
— Porque agora… ninguém ousa te subestimar.
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No domingo, teve baile.
Gabriel fez questão de me levar.
— Hoje cê vai descer de salto.
— Vai mostrar que quem manda também dança.
Vesti um vestido preto, justo, com decote nas costas.
Cabelo preso, batom vinho.
E um olhar que já não era de quem tá perdida.
Era de quem manda no próprio nome.
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Chegamos com os seguranças abrindo caminho.
A música estourava nas caixas.
Os olhos vinham de todos os lados.
Alguns com respeito.
Outros com inveja.
E alguns… com ódio.
Vi a Bruna.
Sim, ela estava lá.
No fundo.
Encostada.
Com um copo na mão e veneno nos olhos.
Senti o sangue ferver.
Mas Gabriel segurou minha cintura.
— Ela tá aqui pra provocar.
— E eu tô aqui pra mostrar que não caio fácil.
— Então dança.
— O quê?
— Me dá tua mão e dança.
Ele me puxou pro meio da quadra.
E, ali, no centro do baile, dançamos como se o morro fosse nosso salão.
Os flashs dos celulares subiam.
As risadas vinham de longe.
Mas o que importava era: ninguém nos tocava.
E a Bruna?
Foi embora antes da música acabar.
Porque rainha não se rebaixa.
Ela reina.
E naquela noite, eu fui a própria coroa.