A rádio comunitária já funcionava.
O cursinho bombando.
As reuniões do conselho enchiam.
A biblioteca agora tinha mais livro que espaço.
A favela, pela primeira vez em muito tempo…
tinha respiro.
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Gabriel preparava café quando me perguntou:
— Tá sentindo?
— O quê?
— Paz.
Sorri.
— É estranho, né?
— Parece até… perigosa.
— Como se a calmaria fosse só o silêncio antes do tiro.
Ele assentiu, olhando pela janela.
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E tinha razão.
Porque foi naquela tarde, de céu limpo e vento leve,
que o rádio da comunidade estalou:
> — “Presença armada vista no acesso norte do morro.
Três motos.
Um carro preto.
Sem placa.”
Meu sangue gelou.
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— Volta pro portão — falei pra Gabriel.
— Você vai subir?
— Não posso fugir.
Subi correndo, os pés pesando o dobro.
Ao chegar na esquina do beco 5, lá estavam eles:
Três homens.
Todos armados.
Nenhum rosto familiar.
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— Amanda Rodrigues? — perguntou um deles.
— Quem quer saber?
— Um recado do passado.
— Que passado?
Ele sorriu.
— O que você tentou esquecer.
Meu coração disparou.
Era o que eu temia.
Darlan.
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— Ele mandou dizer que tá voltando.
— Voltando pra onde?
— Pro trono.
— Disse que você cuidou bem, mas a hora dele chegou.
— Ele tá louco.
— Louco tá quem achou que podia apagar a raiz da guerra com flor de paz.
O terceiro homem entregou um papel dobrado.
— Isso é só o começo.
E foram embora.
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Desdobrei a folha com as mãos tremendo.
Uma frase, escrita em letra torta:
> “Só existe um dono do morro.
E não é você.”
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Voltei pra casa muda.
Gabriel me olhou e entendeu tudo só pelo meu rosto.
— Ele mandou alguém?
Assenti.
— Amanda…
cê sabe que a favela mudou.
Cê sabe que o povo não quer mais ele.
— Mas medo é memória.
E ele ainda é lembrado com mais pavor do que respeito.
— E o que cê vai fazer?
— Reunir o conselho.
Agora.
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A reunião naquela noite foi diferente.
Ninguém brincava.
Ninguém desviava o olhar.
Todos sabiam: Darlan era sombra que o sol da paz não apagava fácil.
Rosa falou:
— Se ele voltar, o povo vai se dividir.
— Metade vai querer ele de volta — disse Nando.
— Pela força. Pela fama.
— E a outra metade vai fugir.
— E a gente?
Me levantei.
— A gente resiste.
— Com voz, com estratégia.
— E se precisar…
com guerra.
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Camila chorava calada no canto.
— Eu achei que a gente tava salvo.
— A gente tá — falei.
— Porque agora a gente tá junto.
— Ele pode ser nome antigo.
Mas nós…
somos futuro.
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Nos dias seguintes, as ruas ficaram tensas.
Olhares desconfiados.
Portas fechadas mais cedo.
Silêncio.
A paz era frágil.
E qualquer estalo, rachava.
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Gabriel fez ronda comigo nas madrugadas.
De uma viela à outra,
víamos pichações surgindo nos muros:
> “O dono voltou.”
> “Rainha traidora.”
> “O sangue vai descer.”
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Na rádio, Camila pediu a palavra.
Com voz firme, mesmo com medo:
— O morro não quer mais opressor.
— Nem com farda, nem com fuzil.
— Quem quiser tomar poder aqui…
vai ter que passar pelo povo.
A favela ouviu.
E aplaudiu.
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Na manhã seguinte, fui abordada por dois jovens:
— Amanda, a gente quer se alistar.
— Em quê?
— Na resistência.
— Isso não é exército.
— É construção.
— Mas se precisar derrubar parede,
a gente ajuda.
Olhei nos olhos deles.
— Promete que só levanta a mão se for pra proteger?
— Prometo.
— Então vocês já são parte.
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Na laje, à noite, Rosa me trouxe chá.
— E se ele invadir?
— Ele não vai invadir.
— Vai tentar contaminar.
— As pessoas mudam…
— Mas o medo faz elas esquecerem disso.
— E você?
Cê mudou?
— Eu não sou mais a Amanda que sangrava por tudo.
— E agora?
— Agora eu só sangro…
pelo que vale a pena.
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Gabriel apareceu com um pacote na mão.
— Trouxe isso do correio.
Abri com cuidado.
Um pendrive.
Nenhuma carta.
Só o nome:
Darlan.
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Conectamos no notebook.
Era um vídeo.
Darlan, de óculos escuros, num carro, rindo.
> — “Achou que podia apagar meu nome com discurso, Amanda?
Cê virou professora de moral agora?
O morro é meu.
Sempre foi.
E quando eu voltar, não vai ter conselho que segure o chão tremendo.”
Pausa.
> — “Guarda minha cadeira.
Porque quando eu sentar…
você não levanta mais.”
O vídeo cortou.
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Fechei o notebook com calma.
Gabriel esperava reação.
Mas eu só disse:
— Então é isso.
— O quê?
— A guerra…
começou.