Capítulo 34 – Quando o Barulho Volta

810 Words
A rádio comunitária já funcionava. O cursinho bombando. As reuniões do conselho enchiam. A biblioteca agora tinha mais livro que espaço. A favela, pela primeira vez em muito tempo… tinha respiro. --- Gabriel preparava café quando me perguntou: — Tá sentindo? — O quê? — Paz. Sorri. — É estranho, né? — Parece até… perigosa. — Como se a calmaria fosse só o silêncio antes do tiro. Ele assentiu, olhando pela janela. --- E tinha razão. Porque foi naquela tarde, de céu limpo e vento leve, que o rádio da comunidade estalou: > — “Presença armada vista no acesso norte do morro. Três motos. Um carro preto. Sem placa.” Meu sangue gelou. --- — Volta pro portão — falei pra Gabriel. — Você vai subir? — Não posso fugir. Subi correndo, os pés pesando o dobro. Ao chegar na esquina do beco 5, lá estavam eles: Três homens. Todos armados. Nenhum rosto familiar. --- — Amanda Rodrigues? — perguntou um deles. — Quem quer saber? — Um recado do passado. — Que passado? Ele sorriu. — O que você tentou esquecer. Meu coração disparou. Era o que eu temia. Darlan. --- — Ele mandou dizer que tá voltando. — Voltando pra onde? — Pro trono. — Disse que você cuidou bem, mas a hora dele chegou. — Ele tá louco. — Louco tá quem achou que podia apagar a raiz da guerra com flor de paz. O terceiro homem entregou um papel dobrado. — Isso é só o começo. E foram embora. --- Desdobrei a folha com as mãos tremendo. Uma frase, escrita em letra torta: > “Só existe um dono do morro. E não é você.” --- Voltei pra casa muda. Gabriel me olhou e entendeu tudo só pelo meu rosto. — Ele mandou alguém? Assenti. — Amanda… cê sabe que a favela mudou. Cê sabe que o povo não quer mais ele. — Mas medo é memória. E ele ainda é lembrado com mais pavor do que respeito. — E o que cê vai fazer? — Reunir o conselho. Agora. --- A reunião naquela noite foi diferente. Ninguém brincava. Ninguém desviava o olhar. Todos sabiam: Darlan era sombra que o sol da paz não apagava fácil. Rosa falou: — Se ele voltar, o povo vai se dividir. — Metade vai querer ele de volta — disse Nando. — Pela força. Pela fama. — E a outra metade vai fugir. — E a gente? Me levantei. — A gente resiste. — Com voz, com estratégia. — E se precisar… com guerra. --- Camila chorava calada no canto. — Eu achei que a gente tava salvo. — A gente tá — falei. — Porque agora a gente tá junto. — Ele pode ser nome antigo. Mas nós… somos futuro. --- Nos dias seguintes, as ruas ficaram tensas. Olhares desconfiados. Portas fechadas mais cedo. Silêncio. A paz era frágil. E qualquer estalo, rachava. --- Gabriel fez ronda comigo nas madrugadas. De uma viela à outra, víamos pichações surgindo nos muros: > “O dono voltou.” > “Rainha traidora.” > “O sangue vai descer.” --- Na rádio, Camila pediu a palavra. Com voz firme, mesmo com medo: — O morro não quer mais opressor. — Nem com farda, nem com fuzil. — Quem quiser tomar poder aqui… vai ter que passar pelo povo. A favela ouviu. E aplaudiu. --- Na manhã seguinte, fui abordada por dois jovens: — Amanda, a gente quer se alistar. — Em quê? — Na resistência. — Isso não é exército. — É construção. — Mas se precisar derrubar parede, a gente ajuda. Olhei nos olhos deles. — Promete que só levanta a mão se for pra proteger? — Prometo. — Então vocês já são parte. --- Na laje, à noite, Rosa me trouxe chá. — E se ele invadir? — Ele não vai invadir. — Vai tentar contaminar. — As pessoas mudam… — Mas o medo faz elas esquecerem disso. — E você? Cê mudou? — Eu não sou mais a Amanda que sangrava por tudo. — E agora? — Agora eu só sangro… pelo que vale a pena. --- Gabriel apareceu com um pacote na mão. — Trouxe isso do correio. Abri com cuidado. Um pendrive. Nenhuma carta. Só o nome: Darlan. --- Conectamos no notebook. Era um vídeo. Darlan, de óculos escuros, num carro, rindo. > — “Achou que podia apagar meu nome com discurso, Amanda? Cê virou professora de moral agora? O morro é meu. Sempre foi. E quando eu voltar, não vai ter conselho que segure o chão tremendo.” Pausa. > — “Guarda minha cadeira. Porque quando eu sentar… você não levanta mais.” O vídeo cortou. --- Fechei o notebook com calma. Gabriel esperava reação. Mas eu só disse: — Então é isso. — O quê? — A guerra… começou.
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