O vídeo do Darlan ecoava dentro de mim.
Não pela ameaça.
Mas pelo tom.
Ele ria.
Como quem já sabia onde ia atacar.
Como quem já tinha entrado sem ninguém notar.
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— Ele tá blefando — disse Gabriel.
— Darlan não blefa.
— Ele só avisa o que já começou.
— A gente vai fazer o quê?
— Reunir todo mundo.
Agora.
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Naquela noite, a quadra encheu.
O povo veio em silêncio.
Não precisava de grito.
O medo já falava alto.
Subi no palco de madeira e respirei fundo.
— O passado voltou.
— Mas agora a gente tem futuro.
— E eu não vou deixar ele ser apagado.
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Nando tomou a frente:
— Cês sabem que Darlan quer retomar com força, né?
— A gente sabe.
— Então precisa de proteção.
— De vigia, de estrutura.
— A gente tem estrutura — falei.
— Mas será que tem lealdade?
Silêncio.
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Foi ali que senti.
Tinha alguém com ele.
Alguém aqui.
Dentro.
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Mais tarde, Rosa me puxou num canto:
— O Anderson sumiu desde segunda.
— O da rádio?
— Ele mesmo.
— Ele tava com a gente no conselho…
— Pois é.
Mas a senha da rádio foi trocada ontem.
Engoli seco.
— Você acha que ele…?
— Eu acho que o inimigo não vem de farda.
Vem de boné torto e fala mansa.
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Na manhã seguinte, a rádio saiu do ar.
Tela preta.
Depois, um único som:
o riso do Darlan.
A favela ouviu.
O povo calou.
E o medo voltou a respirar alto.
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Gabriel estourou a porta do estúdio.
— Não tem nada aqui.
— Ele limpou tudo.
— Ou alguém limpou por ele.
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Subi no alto do morro sozinha.
Olhei a cidade.
O céu carregado.
As ruas em silêncio.
E minha mente…
um grito engasgado.
Fechei os olhos.
E pensei:
> "Se querem a guerra, que venham.
Mas eu não vou descer.
Eles que subam."
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Na noite seguinte, chegou uma carta sem remetente.
Dobradinha.
Sem assinatura.
Dentro, só uma frase:
> “Tem cobra no conselho.”
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Rosa sugeriu pausa nos encontros.
— A gente precisa saber quem tá com quem.
— Pausar é dar espaço pra eles.
— E continuar é abrir o coração pra faca.
— Então a gente vai usar colete.
Ela sorriu.
Mas era sorriso de nervoso.
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Convocamos nova reunião.
Mas dessa vez, sem aviso público.
Só os de confiança.
Ou os que a gente achava que eram.
Gabriel, Rosa, Nando, Camila.
E mais dois.
Anderson não apareceu.
Mas mandou mensagem.
> “Tô resolvendo problemas.
Tô com vocês.”
Mentira.
E doía aceitar isso.
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— Amanda, o que a gente faz se ele subir com tropa? — Camila perguntou.
— A gente não tem arma.
— Mas tem voz.
— Voz não para bala.
— Para sim.
Se for muitas.
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A decisão foi tomada:
abrir microfone.
Gritar antes que atirem.
Fazer o mundo ouvir.
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Montamos caixas de som nos postes.
Puxamos fio por fio.
Camila ligou o primeiro gravador.
— Vai ser a favela contra a mentira.
E o primeiro programa foi ao ar:
> “Aqui é Camila, filha da favela.
Não sou Amanda, mas sou cria dela.
E se Darlan acha que vai voltar mandando…
que tente subir.
A favela agora é nós.
E nós não se abaixa.”
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O vídeo viralizou.
E junto com ele, a resposta.
Na manhã seguinte, no muro da escola:
> “Camila vai pagar.”
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O clima pesou.
De novo.
Mas Amanda…
não era mais só Amanda.
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Chamei a imprensa.
A mídia chegou rápido.
Eles queriam o furo.
Eu dei.
— Vocês gostam de falar de favela como guerra, né?
Então agora falem da nossa paz sendo ameaçada.
— Darlan voltou?
— Ele nunca foi.
Só tava esperando a gente se distrair com progresso.
— E agora?
— Agora a favela tá acordada.
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A matéria saiu no dia seguinte.
Primeira página.
> “Comunidade organizada resiste a tentativa de retomada criminosa.”
E o melhor:
sem sensacionalismo.
Sem distorção.
Sem sangue.
Só o retrato de um povo…
se unindo.
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Gabriel veio até mim com lágrimas nos olhos.
— Você virou referência.
— Eu virei o alvo.
— Mas também virou escudo.
— E eu aguento.
— Até quando?
— Até todos estarem prontos pra reinar sozinhos.
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À noite, sentei no mesmo canto da laje de sempre.
O céu nublado.
As luzes da cidade piscando.
E pensei:
> “Eles querem que eu caia.
Mas esquecem…
que eu não sou torre.
Sou fundação.”