Naquela noite, subi no alto da laje com o microfone velho na mão.
Caixas de som ligadas.
Fios improvisados.
Coração acelerado.
E o povo, lá embaixo, olhando.
Esperando.
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— Amanda, cê tem certeza disso? — Gabriel perguntou.
— Tenho.
— Eles ameaçaram você.
Com arma.
— Então eles que mirem direito.
Porque eu não vou sair daqui escondida.
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Acenei pro pessoal abaixo.
Camila gravava.
Rosa chorava.
Nando observava calado, com os punhos fechados.
E eu…
eu falava.
— Tentaram me matar com silêncio.
Agora eu devolvo com grito.
— Tentaram me enterrar.
Esqueceram que eu sou semente.
— Se eles querem guerra, vão ter que ouvir primeiro:
a gente não tem mais medo.
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A voz ecoou pelo morro.
Nas janelas.
Nos becos.
Nos telhados.
Ninguém piscava.
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Cinco minutos depois, a luz caiu.
Toda.
O morro inteiro.
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Silêncio.
Respiração pesada.
E então… um tiro.
Seco.
No alto.
Perto.
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Gabriel me puxou pela cintura.
Me jogou no chão.
Outro tiro.
E outro.
Mas não pra matar.
Pra assustar.
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— Amanda, desce agora!
— Não.
— Vai morrer à toa!
— Morrer escondida é pior.
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Liguei a lanterna do celular e acendi no rosto.
— Tô aqui!
— Amanda Rodrigues!
— Rainha, sim!
— Mas do povo.
— E quem atirar em mim…
atira em todos eles!
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Silêncio.
E então, um grito do povo:
> — “NINGUÉM MEXE COM A NOSSA!”
Outro:
> — “SE ENCOSTAR NA RAINHA, ENCOSTA NA FAVELA!”
Mais e mais.
Até virar um coro.
E os tiros…
pararam.
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Gabriel me olhava sem piscar.
— Você é louca.
— Eu sou livre.
— Você podia estar morta.
— Mas tô viva.
E eles sabem disso.
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Mais tarde, sentada com Rosa e Camila na cozinha improvisada da laje, falei:
— Eu precisava mostrar que eles não mandam.
— E se te acertassem?
— O povo não ia deixar por menos.
— Mas o povo ainda tem medo.
— Só até perceber que tem força.
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Camila abriu o caderno com anotações.
— A gente precisa organizar melhor as rondas.
— E vigiar as entradas do morro — completou Nando.
— E espalhar mais caixas de som.
Mais microfones.
— E proteger as crianças.
— Todas as mães já foram avisadas.
Ninguém anda sozinho.
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Era estranho.
Parecia favela em guerra.
Mas a gente…
não tava em guerra.
Tava em construção.
Era o velho tentando impedir o novo.
E o novo se negando a ser calado.
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No outro dia, acordei com notícia:
Gabriel foi seguido.
Três caras de moto.
Não atiraram.
Mas chegaram perto o bastante pra avisar que estavam ali.
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— Eles tão fazendo cerco — disse ele.
— Eles tão tentando quebrar a gente no psicológico.
— E tá funcionando?
— Não mais.
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Montei uma tenda no meio da quadra.
Puxei mesa, cadeira, banner.
“Posto de Proteção Comunitária”
Rosa riu.
— Isso é ideia de doido.
— É ideia de sobrevivente.
— Eles tão vindo armados.
— A gente vai com papel e megafone.
— E se eles rirem?
— Melhor rir do que chorar.
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Camila foi a primeira a sentar.
Depois as mães.
Os jovens.
Os professores.
Cada um com uma ideia.
Uma denúncia.
Um relato.
E cada um…
com coragem.
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Aos poucos, a favela inteira começou a se reunir ali.
Revezando.
Contando.
Revidando com palavra.
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À noite, mais um aviso:
Outro bilhete no portão.
> “Vocês acham que a favela é democracia.
Mas aqui, quem decide é o medo.”
Escrevi atrás da folha:
> “Então vocês perderam.
Porque a gente já decidiu.”
Preguei na parede da escola.
Pra todo mundo ver.
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Rosa me perguntou:
— Amanda, e se Darlan aparecer mesmo?
— Eu olho nos olhos.
— E diz o quê?
— Que o trono dele tá ocupado.
Por todos nós.
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Naquela noite, no rádio improvisado, falei mais uma vez:
— Eles querem fazer a gente acreditar que só há um jeito de liderar: com arma e ameaça.
Mas aqui, quem manda… é quem cuida.
— E quem ameaça, perdeu.
Perdeu a chance de ser parte.
Perdeu o povo.
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Fui dormir com o som da favela respirando.
E pensei:
> “A paz não é o contrário da guerra.
É a coragem de continuar…
mesmo com medo.”