Garindé
Fala sério, o fundador da cidade Garindé provavelmente estava sem criatividade para um nome melhor. O mais estranho não é isso, é o fato de que todas as pessoas são extremamente frias e usam roupas escuras, azul marinho, preto, cinza escuro, e todas as cores fechadas que existem. Todos conversavam em um tom de voz muito baixo, quase um sussurro, fazendo com que parecesse uma cidade fantasma com zumbis, ou um velório eterno.
Peguei o celular no meu bolso que vibrava, olhei no visor o nome da minha mãe e atendi prontamente.
— Lógico que eu ganhei bolsa aqui, você tem que ver como é esse lugar. - Indaguei assim que atendi, ouço sua gargalhada do outro lado.
— Não estou espantada, nunca ouvi falar, m*l falam dela no Google. Na verdade, por isso te liguei, achei algo.
— Pelo amor de Deus! Estou na rodoviária e já quero voltar, vai me dizer que essa cidade não existe e eu estou em um mundo paralelo.
— Na verdade, teve um assassinato aí há alguns meses atrás.
— Mãe! - Falei chorosa.
— Mas já liguei para a Joana, sabe? A editora do jornal. Ela conhece diversos jornalistas e tem muito contato, garantiu que a história era falsa e que jamais houve escândalo nessa cidade, que por sinal, só soube da existência depois que eu contei sobre.
— Você realmente me odeia! É tudo tão estranho. - Sussurrei, meu tom de voz normal era alto demais em meio a tantos cochichos. Já estava chamando muita atenção, recebendo olhares tortos.
— Cadê a sua colega de casa? Ela com certeza é de cidade grande.
— Estou esperando um táxi há vinte minutos.
— Rafaela, você está em uma cidade com mil habitantes, a casa deve ser há alguns quarteirões daí.
— E eu vou perguntar pra quem? Pra idosa fazendo careta ranzinza pra mim, ou pro moço da bilheteria dormindo?
— Bom, não sei! - Riu novamente. - Preciso voltar ao trabalho, quando encontrar sua colega me liga no FaceTime. Beijos, querida! Boa sorte.
— Vou precisar. - Falei antes de desligar.
Eu não iria perguntar para a senhora espumando, sentada no banco da rodoviária, então fui até a bilheteria e bati no vidro duas vezes, ele rangeu. Aquilo estava velho, tudo era velho demais por ali. O homem do outro lado sobressaltou e arrumou os óculos antes de dizer:
— Olá senhorita, qual seria o seu destino?
Minha casa por favor.
— Eu queria ir nesse endereço, pode me ajudar?
Arrastei uma folha pra ele, com o local da minha casa e uma foto para ajudar na localização.
— Hum. - Ele ajeitou o óculos. - Claro. - Murmurou mais algumas coisas que eu não conseguia entender. Depois de alguns segundos me devolveu o papel. — Não recebemos muitos universitários por aqui. - Disse sem expressão, não sabia se isso era r**m ou bom. Dei um sorriso amarelo e continuei esperando a resposta. — Tá, você sai daqui e vira a primeira direita, lá tem um homem com um carro cinza e a placa vermelha, mostre a ele que ele te levará até lá.
— E se ele não estiver?
— Ele sempre está. - Da os ombros, como se fosse óbvio.
Antes que eu agradecesse ele encostou as costas preguiçoso na sua cadeira e voltou a dormir. Puxei minha mala de rodinhas e sai da rodoviária, não demorou até encontrar o tal homem.
Parado ao lado do carro, ele estava olhando fixamente para o poste descascado a sua frente. Magricelo e desengonçado, cabelos até os ombros grisalhos e bastante rugas.
— Se-senhor?
Sua cabeça virou rápida e eu me assustei, ele percebeu mas pareceu não se importar. Me senti o próprio Rony Weasley sendo encarado pelo Severo Snape.
— Qual o destino, senhorita? - Sua voz é rouca e falha. Como um fumante.
Depois de mostrar o endereço, entramos no carro que tinha cheiro de limpo, os bancos estavam furados mas estava com uma limpeza impecável.
Depois de uns dez minutos, em silêncio, chegamos ao meu destino. Ele falou o valor em um sussurro e desço o mais depressa possível.
Tirei a minha mala do porta malas e ele arrancou com o carro milésimos depois.
A porta da casa abriu, e vi uma garota usando um cropped branco e uma calça jeans cintura alta clara, seus pés estavam sem sapatos. Parecia uma escocesa, com cabelos ruivos e a pele extremamente branca.
— Por favor, diga que você gosta de tons claros. - Ela perguntou em súplica e eu sorri aliviada. - Graças a Deus, agora corre aqui, preciso te mostrar o que encontrei sobre essa cidade.
A casa é pequena, tinha somente um andar, aliás todas as casas dessa cidade pareciam ter só um andar.
Na sala, dois sofás e um aparador com uma televisão fixada na parede um pouco mais pra cima. No aparador tinha algumas coisas como: carregador, copo e fones de ouvido. Deduzi que fosse da menina que moraria comigo, inclusive ela sumiu assim que entrou.
— Olá!? - Olhei ao redor.
Do meu lado direito, tinha a cozinha e dava para ver a mesa simples de ferro, quatro cadeiras com aparência desconfortáveis. Andei até lá, uma típica casa de interior, tudo muito humilde porém ajeitado. Abri um pouco a janela acima da pia e vi um terreno abandonado, os matos estavam altos e tinha algumas árvores, atrás dele outras casinhas parecidas com essa. Fixei o olhar em uma pessoa parada no meio do terreno, olhando diretamente pra mim. Era impossível estar olhando pra outra coisa, não tinha para onde olhar.
Se era homem ou mulher, não dava para identificar pela distância. De repente começou a correr na direção da casa, de uma forma estranha, como se estivesse com a perna machucada, mancava muito. Meu coração começou bater forte e o sangue a correr mais rápido nas veias, eu queria gritar mas a voz não saia. Engasgada com o próprio fôlego me senti impossibilitada de pedir ajuda, e completamente aterrorizada. A cada segundo a nossa distância diminuia.
— O que está olhando? - Sobressaltei assustada com a voz ao meu lado, e virei rapidamente para a garota, que estava curiosa olhando na mesma direção que eu.
— Uma pessoa corren... - Aponto antes de olhar.
Não tinha mais ninguém.
— Sério, você está bem? - Ela perguntou me levando até a mesa, eu estava assustada, eu sabia que tinha visto alguém. Nunca fui uma pessoa de ter alucinações - As vezes é só um i****a da faculdade querendo assustar, esse bairro é universitário. Não que eles precisem de um, né? Com esse ovo de cidade.
— Talvez fosse. - Tento esquecer a imagem, e talvez acreditar que era apenas um veterano i****a - Aliás, prazer meu nome é Rafaela Ferraz. - Nós nos sentamos na mesa e ela colocou seu notebook acima.
— O meu nome é, Kimberly, mas pode me chamar de Kim, eu até prefiro.
Seus olhos castanhos me olhavam com preocupação, mas não estavam surpresos com o que eu havia acabado de falar ter visto.
— Como paramos nessa cidade? - Perguntei passando a mão na testa, sentindo o suor frio.
— Espera só pra ver isso. - Ela abriu o notebook, e já estava na janela de um blog. - Cheguei ontem à noite, e também achei aqui super estranho, você vai ver quando escurecer, não se houve absolutamente nada e algumas pessoas ficam vagando pela rua. Mas isso - Apontou pra tela, com a foto de uma menina loira dos olhos verdes - Isso é sinistro.
“Com muito pesar, informamos a morte da Emily Louise, vítima de um assassinato brutal na última noite. O corpo da nossa ex-universitária foi encontrado na porta da sua própria casa com machucados pelo corpo inteiro e uma faca apunhalada em seu peito. A foto publicada, certamente é perturbadora e por respeito a família, não iremos divulgá-la. Que Emily descanse em paz.”
Terminei de ler, e olhei para a Kim que me encarava atenta.
— Minha mãe disse sobre isso, mas o pessoal do jornal negou.
— Eu achei a foto. - Mexeu no computador, abrindo algumas janelas e quando aquela foto apareceu na tela, meus olhos se encheram de lágrimas.
A garota estava deitada de barriga pra cima, com os braços cruzados acima do peito e uma rosa vermelha entre os dedos. Seu rosto era parcialmente coberto por uma máscara veneziana, e a faca apunhalada não era qualquer faca, tinha alguns desenhos e era inteiramente preta. Os lábios estavam machucados e todo seu braço branco e magro, estavam com hematomas.
— Isso é tão...cruel! - Recuei, evitando olhar a foto.
— Extremamente! - Fechou o notebook e colocou para o lado - Eu fui ao cemitério, ver se a história era verídica, e tem uma lápide com o nome e a data do assassinato, provavelmente, isso é bem real.
— Céus! Você pesquisou tudo.
— Eu vou fazer direito, quero ser delegada. Então, não pude evitar uma história dessas. Você vai fazer o que? - Muda de assunto, como se estivesse falando de uma receita de bolo.
— Medicina. - Respondi meio aérea ainda pela situação.
Depois de conversarmos mais um pouco sobre nós, ela me apresentou o meu quarto. Tinha apenas uma cama com um criado mudo ao lado, e um guarda roupas ao lado da pequena janela com grades.
Enquanto arrumava minhas coisas, Kim foi tomar banho pois íamos dar uma volta na cidade para conhecer, provavelmente, conhecer pra ela era: investigar.
Kim tem vinte e dois anos e morava na capital também, seus pais eram dentistas mas pelo visto ela não se dava muito bem com eles. Algo sobre: não quis seguir a carreira dos sonhos do meu velho..
Já estava quase escurecendo quando terminamos de nos trocar, Kim usava um moletom preto com a logo da vans no tom branco, calça jeans e escura e um vans preto, eu sorri ao perceber o que ela pretendia.
— Pra saber sobre eles, precisamos agir como eles! - Falou com suspense na voz e nós rimos.
Andamos um pouco e o Sol já tinha ido embora, avistamos um movimento na esquina onde tinha um pequeno bar. Algumas pessoas bebiam e riam alto, o que nos fez olhar uma pra cara da outra. Antes que eu pudesse fazer algo, Kimberly se aproxima rapidamente da pequena turma.
— Até que enfim achamos algo interessante pra fazer aqui!
Kim falou de repente, no meio da roda de duas meninas e três homens mais velhos. Todos eles estavam um pouco alterados, mas tinham um sorriso simpático nos lábios.
— Provavelmente o único. - Uma das meninas, que é loira, falou antes de beber da sua bebida. Olhos azuis, marcados por um forte lápis preto.
— E vocês, chegaram quando? - Um dos homens perguntou.
Cabelos castanhos claros e olhos cor de mel, os ombros largos e provavelmente malhava, sua barba estava começando a crescer, pelos tão claros que pareciam iluminar seu rosto. Bonito, muito bonito.
— Como sabe que não somos daqui? - Kim perguntou, notei frustração na sua voz e tentei não sorrir.
— Sou o dono do bar. - Estendeu a mão para um cumprimento. - Meu nome é Lucas, e o de vocês?
— Kim, e Rafa! - Apertou a mão dele.
Ele sustentou o olhar no meu, antes de virar para os amigos.
— Esse é o Pedro, Diego, Camila e a loirinha ali é a Gabi.
— E juntos nós formamos os rebeldes de Garindé. - Pedro falou e deu um sorriso meia lua.
Todos eles eram bonitos e atraentes, Pedro com cabelos cumpridos pretos e bagunçado, pele tão branca que a bochecha chegava a ser vermelha, Diego tinha a pele morena, cabelo baixo e um olho verde de perder o fôlego. Era muito verde. Camila parecia ser a mais tímida, com o cabelo amarrado em um r**o de cavalo alto preto azulado, e olhos tímidos.
— Dãããr! - Todos viraram os olhos em resposta a piada do Pedro.
— O que trouxe vocês aqui? Faculdade, aposto. - Diego perguntou, percebi que Lucas ainda me olhava.
— Sim. Direito e medicina. Vocês fazem? - Kim responde.
— Fala sério? Não sei nem porque existe faculdade aqui. São poucos alunos, muita desistência, principalmente de pessoas de fora. - Gabi explicou.
— Mas todos os professores são altamente capacitados para formar vocês. Eu faço Biomedicina, e são ótimas aulas e a faculdade é a única coisa em perfeito estado nesse lugar.
— Assim eu fico chateado! - Lucas brincou e eu sorri. Ele sorri de volta, fazendo com que a minha bochecha esquente.
— Não é nada pessoal, você sabe. - Ela respondeu.
— E você, não fala? - Lucas me perguntou.
— Nossa! - Os amigos deles fizeram um coral.
— Lá vai ele. - Pedro sussurrou para todos ouvirem.
— Qual é, só perguntando. - Falou na defensiva.
— Primeira dica. - Gabi veio ao meu lado, jogando o braço no meu ombro. Sinto o cheiro de bebida misturada com seu perfume feminino - Ele é um safado.
Depois de algumas garrafas de cerveja já estávamos socializando mais, ficamos conversando com as meninas enquanto vez ou outra os meninos jogavam piadinhas. Era uma turma engraçada e descontraída.
Pedro era irmão mais novo do Lucas, e Diego era o amigo de infância deles. Gabi morava aqui desde pequena e Camila também, todos eles nasceram e nunca saíram dessa cidade, o motivo eles não falaram e fugiram do assunto por diversas vezes, só percebi isso depois das fortes cotoveladas que a Kim me dava quando eles desviavam da resposta.
Fui conferir o horário no meu celular, e vi diversas chamadas perdida da minha mãe. Pedi licença e fui andando para ligar pra ela, se ela sonhasse que eu já estava em bar, ia vir até aqui pessoalmente me buscar, coisa que eu adoraria, mas após perceber Lucas me olhando novamente, não queria tanto.
— Rafaela! Enfiou esse celular no c...
— Calma! - Falei antes que ela terminasse.- Estava no silencioso, e estava conversando com a minha amiga que a propósito é super legal.
— Que saco! Fiquei assustada. Você fala um monte de coisa dessa cidade e de repente some. Mas então, como estão as coisas?
Eu poderia dizer a ela da veracidade das notícias, da foto e do quanto tudo aqui é realmente estranho. Mas ela faria eu voltar imediatamente, e eu não sei se foi a alma investigativa da Kim, ou da turma, mas eu não queria voltar.
— Melhor do que eu imaginava, acho que foi só um susto por ser tão diferente de casa. Nada de anormal. - Menti.
Atrás de uma árvore próxima, notei uma sombra. Engoli seco e minhas pernas travaram, espremi os olhos para tentar enxergar algo naquela escuridão. Se fosse aquele veterano, eu lhe daria uma palmada na cara.
— Hein, Rafa? - Minha mãe insistiu na outra linha.
— Oi?
— Você está distraída. Vamos fazer uma chamada de vídeo?
— Mãe. -Continuei olhando, e dei alguns passos na direção da pessoa, estava apavorada mas precisava ver quem era. - Posso te ligar daqui a pouco?
— Pode. Realmente está tudo bem filha? - A pessoa saiu correndo quando percebeu que eu estava indo até ela.
Fui até onde ela estava, e vi algo caído no chão. Abaixei, e um nó foi formado na minha garganta.
Era uma máscara. Uma máscara veneziana.
— Sim, mãe. Está tudo bem. - Respondo tentando esconder o pânico.
Desliguei o telefone e guardei no bolso de trás do jeans, para poder segurar a máscara com as duas mãos. Ouço alguns passos, galhos secos quebrando e levanto rapidamente virando-me pra trás.
Parecia um armário de tão alto, cabelos baixos, tão negros que pareciam carvão. Os olhos castanhos claros me encaravam com intensidade. Meus olhos seguem para os seus lábios que fazem uma linha reta em seu rosto quadrado, lábios úmidos e avermelhados.
— Que merda! - Respirei aliviada. Não era a pessoa que estava aqui mais cedo, porque o homem na minha frente usava uma camisa social preta dobrada até a metade do antebraço. - Quem é você?
— Está tudo bem, Rafa!? - Ouço a voz do Lucas distante, e quando viro o pescoço pra ele, todos estavam nos olhando. Aceno que sim com a cabeça, mesmo não sabendo se realmente estava.
— Devolve. - Ele sussurrou. Minha barriga treme com a sua voz autoritária.
— O que? - Virei pra ele. A minha respiração trava na garganta ao encara-lo e eu não sei ao certo o porque.
O nariz é um clássico reto, lábios bonitos e um cheiro maravilhoso. Sinto um formigamento geral, um sentimento quase elétrico.
— Devolve o que você achou. - Sussurrou mais uma vez, impaciente. Sua língua passa discretamente entre seus lábios, ação que faz as minhas pupilas dilatarem e o meu corpo ficar imóvel.
— É teu? É você que está me observando? - Questiono, confusa.
— Estão te observando? - Deu uma pausa. - Tarde demais então.
Deu as costas e com seus sapatos sociais começou a andar com passos largos pra longe, parte de mim resmungou por aquela beleza exuberante ir embora. Guardei a máscara no meu bolso do moletom, com uma sensação de estar entrando em um caminho sem volta. Precisava conversar com a Kim a sós.
Olhei para a galera que ainda estavam olhando. Parei ao lado deles, ainda em silêncio.
— O que ele disse? - Gabi perguntou descontraída.
— Você o conhece?
— Claro! - Respondeu óbvia. - Felipe Campelo, é um professor. Gostosão, né?
Enquanto todos diziam o quanto Gabi era abusada e seus inúmeros micos, Kim se aproximou.
— O que foi? - Sussurrou disfarçadamente.
— Eu acho que estou em perigo, e tenho a sensação de que ele sabe.