prólogo
Morar no Olimpo não era exatamente as mil maravilhas que todos diziam, ou pelo menos Cleo não achava isso. Ela até gostava de morar em um lugar cheio de deuses e figuras veneradas pelos humanos, mas vivia sempre em constante observação por Afrodite, ainda mais quando assumiu o lugar de Cupido e ficou responsável por cuidar dos corações alheios.
Cleo só queria ser uma adolescente sem responsabilidades grandiosas e viver sua vida como a maioria das adolescentes de 19 anos, mas a pressão que sua mãe colocava sobre ela e em como Zeus cobrava Afrodite para que ela mantesse a filha na linha, eram exaustiva. Talvez por esse motivo Cleo era tão revoltada, mas não uma má pessoa, ela só não queria assumir eternamente o lugar de deusa do amor.
No Olimpo não havia muitos atrativos para uma jovem deusa e ela só podia observar o mundo dos humanos de longe, flechando os corações deles quando necessário e sendo a âncora do amor. Foi nesse longo período de tempo como Cupido que ela teve a ideia genial e experimental de juntar casais improváveis e suas cobaias seriam os humanos. Os mesmos humanos que descreviam a Cupido como um ser angelical e malicioso, agora iriam conhecer a parte maliciosa da história. Afrodite e Ares, porém, perceberam o caos que se instalava no mundo humano com esse experimento e sabiam exatamente quem era a causadora daquela bagunça toda.
Como se não bastasse ter que ouvir os sermões dos pais irritados com aquela situação, ela ainda tinha que escutar eles falando dela como se não estivesse ali.
— Ela vai para o Colégio de Atenas! — Afrodite disse com voz alterada, apontando para Cleo.
— Ela não é como os semideuses, não vai se adaptar e se descobrirem quem ela realmente é vão se aproveitar disso — Ares rebateu com as mãos na cintura, cansado de discutir com a irredutível Afrodite.
Cleo já havia escutado aquela discussão várias vezes. Desde que ela resolveu juntar pessoas incompatíveis, tudo que escutava era isso. Mas aquele momento estava realmente desconfortável até para suas asas que antes eram admiradas por suas penas macias e incrivelmente brilhantes, agora estavam ásperas e sem vida porque elas eram regidas por cada gota de amor exalada dos humanos e essa fonte estava escassa.
— Eu vou — Cleo respondeu se levantando abruptamente, com os ombros caídos de exaustão.
— O quê? — Ares e Afrodite a olharam com surpresa.
— É isso mesmo, eu vou. Eu estou há 19 anos trancada aqui, preciso conhecer gente da minha idade e viver um pouco.
— Me parece suspeita essa boa vontade. — Ares mordeu o lábio inferior, estreitando os olhos. — Te conhecendo como eu conheço, sei que vai aprontar no mundo dos humanos.
— Eu não vou aprontar nada e nem vou contar quem eu realmente sou. Eles nem vão notar a minha presença lá. Confie em mim, pai.
— Você realmente acredita que ela vai se comportar? — Ares moveu seu olhar dela para Afrodite com um tom descrente.
— Eu sei que vai porque ela não vai ter suas asas ou suas flechas — Afrodite concordou com a cabeça. — Ela vai para Atenas com metade de suas habilidades, não vai ter condições de aprontar com os humanos.
— E como eu vou sobreviver? — Cleo caiu no sofá novamente, mais desanimada do que antes.
— Como uma humana, ou semideusa.
— Não é justo. Os semideuses vão ter as habilidades de seus pais e eu não vou ter nada!
— Nada é justo, querida, mas também não foi justo quando você brincou com corações dos humanos.
— Elas são péssimos uns com outros, eu não cheguei nem perto de fazer m*l a eles!
— Deuses não podem interferir assim, nem mesmo você. Essas são as condições e você vai ter que aceitar.
Afrodite e Ares olharam para Cleo ansiosos, esperando a resposta que já era óbvia, então ela concordou com um suspiro desanimado.
Afrodite então sorriu sem mostrar os dentes com a resposta e moveu suas mãos até brilhos envolverem Cleo, fazendo suas asas e seu arco e flecha desaparecerem, como se nunca houvessem existido antes.
— Minhas asas! — Cleo choramingou, colocando a mão nas costas.
— Vai descobrir que os pés podem correr bem rápido — Afrodite falou, sem segurar o riso.
— Poderia deixar pelo menos as minhas asas — Cleo insistiu, fazendo cara de choro. — Você sabe que os semideuses vão herdar características dos pais, eu preciso de alguma também.
— Mesmo que eu quisesse, não poderia — Afrodite explicou, franzindo o nariz. — Você percebeu que suas asas estavam fracas justamente porque não fez seu trabalho como deveria. Elas não iriam aguentar a atmosfera terrestre, Cleo.
— E o que eu preciso fazer para tê-las novamente?
— Precisa concertar o que fez, juntando novamente casais destinados a ficarem juntos e concluir seu objetivo em Atenas.
— Não posso fazer isso sem minhas flechas.
— Uma verdadeira Cupido sabe como aquecer o coração dos humanos, mesmo que sem a ponta enfeitiçada de suas flechas. Vai descobrir um modo de fazer isso, tenho certeza.
Essa frase parecia aquelas que se coloca em propagandas de outdoor que nem mesmo o anunciante acreditava naquela baboseira, e Cleo também não acreditava. Ela escutou rumores sobre o mundo dos humanos e descobriu que assim como coisas boas existiam, as péssimas eram regra. E sabia ainda mais que mesmo que eles se esforssasem, não conseguiriam esconder a maldade que existia no coração, maldade essa que nem mesmo a Cupido poderia reverter, ainda mais sem suas flechas encantadas.
— E quando eu vou? — Cleo perguntou, se levantando com um pouco mais de determinação.
— Agora mesmo — Afrodite respondeu, empurrando os ombros da filha porta afora com pressa.
— Eu não posso ir agora! — Cleo parou a mãe e a olhou assustada. — Eu preciso pegar minhas roupas e...
— Vou mandar uma mala com as melhores roupas para você. Eu tenho muito bom gosto.
— Você quer se livrar de mim logo, não é?
— Não é isso, é que você irritou Zeus mais uma vez e você sabe como ele é.
— Zeus é um trapaceiro, assim como Poseidon! Eles trapacearam e deixaram Hades com o pior reino, todos sabem disso.
Ares sorriu com a teoria da filha. Não chegava chegava a ser verdade, porque não havia provas de que a história era realmente essa, mas também não chegava a ser mentira. Era essa a história que metade do Olimpo sabia e a outra metade fingia não saber por medo da fúria do deus dos deuses.
— Eles podem até ser, mas Zeus manda aqui. Foi ele quem derrotou Cronos e merece o nosso reconhecimento.
— Ele não estava sozinho nessa, mãe. Eu não sei porquê as lendas enaltecem Zeus e se esquecem de que sozinho ele não teria conseguido nada.
— Já chega, Cleo! Zeus está irritado demais com você e vai ser pior se ele escutar isso.
— E o que ele vai fazer? Me expulsar do Olimpo?
— Ele pode fazer isso.
— Mas se ele fizer eu começo uma guerra e vou pessoalmente soltar as correntes de Cronos — Ares comentou, lançando um olhar divertido a Cleo.
— Ele é o seu pai. — Cleo soltou uma risada.
— Parentesco não importa muito aqui, não é? — Ares franziu as sobrancelhas e balançou a cabeça. — Cronos era pai de Zeus.
— Zeus é meu avô e me odeia. Estou começando a achar que existe uma maldição aqui, principalmente sobre Zeus e tudo que envolve ele.
— Ele não te odeia, você sabe — Afrodite falou. — Ele só quer a ordem no Olimpo.
Cleo olhou envolta, sabendo que só estava adiando o inevitável porque tinha medo de conhecer algo através das barreiras e tinha mais medo ainda do que a aguardava, mas a vontade de conhecer o mundo fora do Olimpo era quase maior que qualquer medo. E ela sempre lembrava a si mesma que nunca seria tão bela quanto a mãe, ou que seria tão vitoriosa como o pai e assustava perceber que todos no Olimpo tinham um propósito de vida, menos ela. Ela nem ao menos gostava de ser as representações fofas do Cupido — que todos acreditavam ser um garoto alado e reluzente. Se decepcionariam se descobrissem quem era ela realmente.
Cleo olhou envolta e viu Apolo com sua irmã gêmea em uma praça próxima dali, e parou ao encontrar seus olhos, lhe lançando um meio sorriso e ganhando outro em retribuição.
Ela sempre achou que em uma hora ou outra ficaria com Apolo e nunca entendeu porque suas expectativas nunca se tornavam reais. Cleo era responsável pelo amor, deveria ter direito de desfrutar dele mas, aparentemente, no caso dela não era assim que as coisas funcionavam.
Ela voltou seu olhar para os pais a sua frente e ficou agradecida por tê-los. É verdade que família naquele lugar não era de grande relevância, mas sempre teve amor dos pais, principalmente de Ares que era descrito como impiedoso, tinha o maior cuidado com ela, até mais que Afrodite.
— Vou sentir saudade das suas travessuras, então trate de voltar logo — Afrodite falou com um sorriso, abraçando a filha. — Sabe que assim que atravessar aquela barreira perderá qualquer contato conosco, não é?
— Eu sei e isso é o que mais me assusta. Não sei o que farei sem vocês.
— Você se sairá bem.
Cleo olhou para o pai com lágrimas nos olhos e abraçou ele em silêncio, sabendo que sentiria mais falta dele do que da mãe.
— São só alguns meses e quando você voltar não vai mais sair de perto de mim — ele disse, acariciando os cabelos dela.
— Eu vou enjoar de você. — Ela sorriu, franzindo o nariz.
Ares soltou uma risada também.
— Não se esqueça que você é filha de Afrodite e Ares, neta de Zeus e Hera e que é mais forte do que imagina. — Ele passou a mão pela bochecha dela, limpando suas lágrimas que já exalava saudade. — Não existe ninguém mais poderosa que você.
— Mentira sua! — Cleo sorriu. — O que uma garota como eu poderia fazer? Eu não tenho nenhuma habilidade a não ser flechar as pessoas com o encanto do amor. Como posso ser poderosa assim?
— O amor é muito mais perigoso que a guerra, querida.
— Por quê?
— Por amor, podemos fazer o impossível, começar e acabar guerras com ele. O melhor jeito de atingir um homem é pelo coração.
Afrodite abriu um sorriso assim que Ares olhou para ela ao terminar a última frase. O amor dos dois era belo e sabendo o que Afrodite teve que passar ao casar a força com Hefesto, intensificava tudo isso e ela apoiava cada vez mais os pais.
— Mas é hora de ir — Afrodite lembrou, apontando para a barreira aberta por uma f***a que logo fecharia.
Cleo se apressou ao soltar a mão do pai e respirou fundo, parando em frente à barreira com o coração pulando dentro do peito e deu um passo a frente com os olhos fechados na esperança de que não desistisse de ir para Atenas e sentiu o estômago embrulhar assim que escutou o ruído da barreira fechando atrás de si.