7-Dias de silêncio

1314 Words
Lunara Tokatli Três dias. É estranho como o tempo passa dentro desta mansão silenciosa. Cada segundo parece se arrastar, pesado, denso, como se as paredes absorvessem qualquer tentativa de som. Desde que o corpo do meu pai foi enterrado, o Norte inteiro respira um ar de mörte. Pelo menos por aqui nos mais próximos. Não há vozes altas, não há passos apressados, não há risadas. Há apenas a quietude. Uma quietude quase sufocante. Por mais que ele estivesse doente, de cama, quase imóvel… ele ainda respirava. A simples respiração dele mantinha alguma coisa viva dentro da mansão. Talvez medo, talvez respeito, talvez aquela sombra que sempre nos acompanhava quando ele estava lúcido demais ou irritado demais. Agora, sem o ar dele preenchendo um dos quartos, o lugar parece oco. Vazio. Incerto. Eu caminho pelo banheiro, termino o banho quente que não faz nada para tirar esse frio que insiste em ficar no meu corpo desde o enterro. Me visto aqui mesmo, com as roupas de luto: tecido escuro, longo, nada chamativo. Meu reflexo no espelho parece alguém que ainda tenta entender quem é sem Halit Tokatli respirando neste mundo. Eu não tenho mais ninguém de família. É apenas eu! Pego a escova e passo pelos meus cabelos longos, cuidando para não fazer barulho demais. Nesta casa, até o som de água correndo parece um pecado. Passo um perfume leve. Algo discreto, quase imperceptível. O luto ainda é absoluto. O silêncio, uma ordem. As tradições tem um peso grande. Quando abro a porta do banheiro, encontro Harika sentada na poltrona, tricotando. Claro. Ela tricota o tempo inteiro. Lã marrom hoje. Agulhas se movendo com um ritmo que parece mais animado do que tudo aqui dentro. — Uma das empregadas veio avisar que vão trazer um lanche para você. — Ela diz, sem parar o movimento das mãos. Eu apenas aceno. Caminho até a poltrona perto da janela e me sento. O vidro está frio. A vista mostra parte do Norte. Terrenos amplos, com montanhas distantes, linhas de árvores que acompanham o vento cortante. Aqui, o ar sempre parece mais duro. As casas ficam distantes umas das outras, e as estradas estreitas serpenteiam como veias que ligam pequenas aldeias ao centro da cidade. Tudo é cinza hoje. Mas talvez seja apenas eu. — Esses dias aqui… mesmo sendo tensos…— Harika diz, tricotando mais devagar agora. — Eu tenho gostado. Eu me sinto confortável. E… estou amando estar perto de você de novo. Eu sorrio de canto, um sorriso curto, discreto. — É bom ter você aqui. — Eu respondo. Sou sincera nisso. Mas ela larga as agulhas e a lã. Se levanta e vem até mim. Isso já chama minha atenção. Harika nunca abandona o tricô assim. Ela se coloca na minha frente, um pouco tímida, mas com uma certa firmeza. — Lunara… eu não estou falando por falar. Eu realmente estou amando estar aqui. E… eu espero que a gente consiga recuperar tudo que perdemos. Eu amo você. Eu amo a sua companhia. Eu amo passar tempo com você. Isso me impressiona. Ela segura a minha mão e o gesto me surpreende. Porque carinho não costuma existir aqui dentro. Nem antes. Nem agora. Eu seguro a mão dela de volta. — Você sempre foi a minha única amiga. O que atrapalhou foi a distância… e as circunstâncias. Mas… podemos recuperar isso. — Ela sorrir pra mim. — Só peço desculpas se, às vezes, eu agir com desconfiança. Os anos sozinha me deixaram assim. Atenta demais… desconfiada demais. — Eu sei. — Ela sorri, gentil como sempre. — Mas eu espero. Espero o tempo que for. E espero pelo dia que você possa sorrir de verdade. Você tem um sorriso tão lindo, Lunara. — Eu também espero. — Digo. A batida na porta interrompe o momento. O lanche chega. Comemos juntas, conversamos em voz baixa e, por um instante raro, sinto… leveza. Harika tem esse poder. Mesmo sendo inocente demais. { . . . } A noite cai rápido no Norte. O vento bate nas janelas como se quisesse entrar à força. A mansão está silenciosa, ainda mais do que durante o dia. Eu caminho pelos corredores, apreciando cada canto, cada detalhe que antes eu nunca tinha tempo para observar. A madeira escura que recobre as paredes. Os tapetes velhos. As cortinas pesadas. Tudo parece antiquado. Tudo carrega a marca do meu pai. Eu já penso em mudanças. Em como posso deixar essa mansão mais minha. Sem alterar o padrão, claro, isso seria motivo para discussão eterna. Mas modernizar um pouco. Trazer ar, luz, vida. Pelo menos dentro de casa. Viro um corredor e encontro Osman. Ele para assim que me vê. — É bom ver você andando pela mansão. — Ele faz uma leve inclinação com a cabeça. — Vai te fazer bem. — Eu precisava respirar um pouco. — Respondo. Ele se aproxima, caminhando ao meu lado. O jeito dele sempre tão controlado. Tão cuidadoso. Às vezes… cuidadoso demais. E aqueles olhares demorados que me acompanham… Ele tem tido essa mania desde que chegou. Até o momento, eu ignoro e sigo o meu jeito mesmo. — Tenho observado o clima por aqui. — Ele diz enquanto caminhamos. — Os funcionários estão tensos. Muitos dos soldados comentam que podem ser dispensados agora que Halit não está mais aqui. Eu paro por um instante. É verdade. Eu ainda não pensei nisso. — Depois eu resolvo isso. — Digo, retomando o passo. — Quero pensar a respeito. Sei que foram leais ao meu pai. Ele acena, respeitoso. — E… já começaram as perguntas sobre a cerimônia oficial de posse. Eu o encaro. Claro que começaram. — A data prevista exige que a cerimônia seja feita em até vinte dias após a morte do líder. — Ele explica e claro, eu sei disso. — Isso significa que… algumas coisas precisam ser preparadas. Eu suspiro. O peso cai sobre mim como uma pedra. Vinte dias. É pouco. É rápido demais. — Essa semana eu faço uma reunião com os conselheiros. — Digo. — Sobre tudo isso. Quero ouvir e debater com eles, afinal, eles precisam estar ao meu lado. — Ótimo! — Ele parece satisfeito. — E Lunara… um conselho. — Ele inclina levemente a cabeça. — Comece a aparecer mais. Marque presença. Mostre que está no comando. Assim evita fofocas e questionamentos. Muitos ainda não sabem como tudo foi decidido e é o momento de você se mostrar. Deixar claro que o seu posto foi preparado pelo seu pai. Eu fico em silêncio por alguns segundos. Ele está certo. Eu sei que está. — Obrigada pelo conselho. — Digo enfim. — Vou considerar. Caminhamos mais um pouco. Meu peitö aperta com a ideia da cerimônia. Vai ser grande. Vai ser formal. Vai exigir força. E presença. E controle. Tudo que eu preciso ter. Tudo que não posso errar. — Boa noite, Lunara! — Osman diz antes de dobrar para outro corredor. — Boa noite. Eu sigo sozinha, pensando. Na cerimônia. No futuro. No comando. Na minha própria segurança. E no fato de que, apesar de tudo que Osman tem feito por mim, eu ainda não sei se posso confiar nele. Ele está perto demais. Atento demais. Existe interesse nos olhos dele. Interesse em mim ou no poder perto de mim? Não sei. Ainda não. Eu caminho de volta para meu quarto. O vento bate forte nas janelas. O silêncio acompanha cada passo. Eu respiro fundo, sabendo que minha paz, se é que posso chamar assim, está chegando ao fim. A pressão vai começar. As mudanças vão começar. A cobrança vai começar. E eu preciso estar pronta. Mesmo que eu ainda esteja sozinha. Mesmo que eu ainda esteja de luto. Mesmo que eu ainda esteja aprendendo a respirar sem a sombra do meu pai sobre mim. O Norte vai me ver. E eu vou comandar. Da minha maneira.
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