6-Silêncio de cinzas

1401 Words
Lunara Tokatli Faz dois dias que meu pai morreu e o Norte inteiro parece ter parado no tempo. O silêncio se espalha pelas paredes da mansão como um manto pesado, abafando até a respiração das pessoas que circulam pelos corredores. Ninguém fala abertamente, tudo é em sussurro. Sinto que todos têm medo de falar qualquer coisa, medo de quebrar a cortina sombria que se instalou sobre nós. A notícia só foi enviada aos mais próximos. Não quero o frenesi das bajulações, nem das falsas condolências, nem dos demais membrös tentando se aproximar enquanto o corpo ainda esfria. Quero respiro. Quero tempo. Quero distância. E, por sorte, assim tem sido. Nenhuma pergunta, nenhum interesse. Pela primeira vez desde que assumi o posto, ainda que de forma oculta, as pessoas parecem realmente entender que eu preciso de silêncio. Engraçado… Meu pai nunca entendeu. Enquanto ajeito o pano preto que cobre os meus cabelos, me olho no espelho e penso que ele teria odiado me ver assim: discreta, simples, apagada. Para Halit Tokatli, aparências eram armas… e armas serviam para intimidar. Mas hoje não quero intimidar ninguém. Hoje, só quero enterrar o homem que sempre esteve lá… mas nunca esteve realmente comigo. Uma batida suave na porta me faz erguer a cabeça. — Lunara? — Harika chama, com a voz baixa. — Estão esperando por você. Respiro fundo. Aliso o vestido longo, preto, sem detalhes. Nada de joias, nada de brilho. Mulheres não usam maquiagem em dia de enterro aqui. Eu tampouco teria forças para isso. — Pode entrar. — Digo. Ela chega devagar. O rosto dela também está coberto, e os olhos castanhos carregam um respeito que me dói. Harika sempre foi sensível demais para esse mundo, e talvez seja por isso que eu a mantenho tão perto. Penso se falta mais alguma coisa para fazer, mas não tem. — Vamos. — Ela sussurra. Saímos da minha suíte e seguimos para a sala principal, onde os poucos convidados se reúnem em fileiras separadas. Os homens à esquerda. As mulheres à direita. É a tradição. O clima é sombrio, pesado, espesso. Do lado de fora, a manhã está cinzenta. O vento frio traz consigo o cheiro de terra úmida, anunciando chuva, ou talvez seja só minha imaginação tentando tornar tudo ainda mais melancólico. O caixão não existe; meu pai está envolto apenas em um tecido branco, como manda a tradição. Não há luxo na mörte. Não há ouro.Não há poder. A mortë, no fim, é o único momento em que todos somos iguais. Sigo o cortejo em silêncio até o pequeno cemitério reservado da mansão. O corpo de Halit repousa sobre uma maca simples, carregada por quatro homens que foram seus soldados mais antigos. Os únicos que ele realmente respeitava. Eu ando atrás, com Harika ao meu lado. Atrás de nós, as mulheres: empregadas, viúvas de soldados, algumas conselheiras mais velhas. Do outro lado, Osman e os membros masculinos do conselho. E mais atrás, os seguranças, formando uma barreira quase invisível, mas sempre presente. Quando chegamos ao local, o imam começa a oração. As palavras ecoam suaves, ritmadas, como um canto distante. Sinto cada uma delas atravessar meu peitö. “Allah, perdoe Halit Tokatli pelos seus erros… Dê-lhe descanso… E guie sua alma para a paz…” Fecho os olhos. Não sei se desejo tudo isso a ele. Não sei se consigo. Os homens se inclinam, tocam a terra com as mãos em gesto de reverência. As mulheres permanecem atrás, em silêncio absoluto. Essa divisão sempre me incomodou, mas hoje… hoje eu só deixo acontecer. O líder do conselho, Iskander, dá alguns passos à frente. Um homem seco, com barba grisalha e olhos que sempre me analisaram mais do que analisavam qualquer documento da região. — Hoje, o Norte se despede de um dos maiores líderes que já tivemos. — Ele diz, a voz firme, projetada, ensaiada. — Halit Tokatli guiou estas terras com mão forte, visão estratégica e coragem. O sangue dele construiu a paz que mantemos até hoje. Sua ausência deixará um vazio difícil de preencher. Meu estômago revira. Mentira. Todas as palavras. Halit governou pelo medo, pela força, pelo terror. A paz nunca existiu realmente. Se existia silêncio, e silêncio não é paz. Silêncio é submissão. Mas eu fico quieta. Fico imóvel. Respiro fundo. — Que Allah acolha sua alma. — Iskander conclui, colocando a mão sobre o coração. Os homens levam o corpo até a cova. Abaixam-no com cuidado, segurando pelas pontas do pano branco. Depois, começam a cobrir com terra, primeiro os mais velhos, depois os soldados mais próximos. E é nesse momento, quando a primeira pá de terra cai sobre o tecido branco, que Osman se aproxima discretamente de mim. Seus olhos estão vermelhos. Talvez pelo vento. Talvez pelo luto. Sem dizer nada, ele me puxa para um abraço. Firme. Caloroso. De verdade. A mão dele se apoia na minha nuca, como se eu ainda fosse uma criança prestes a desabar. E eu desabo. Não choro alto. Não soluço. Mas minha garganta aperta, e sinto algo quebrar dentro de mim. — Ele se foi, Lunara. — Osman murmura no meu ouvido. — Eu sinto muito. Aperto as mãos na túnica dele, respirando fundo, tentando não desmoronar ali na frente de todos. — Agora é você. — Ele completa, em tom baixo, quase sombrio. — Tudo é você. Sim. Eu sei. E é isso que mais dói. Quando o enterro termina, as pessoas começam a se dispersar. Os homens saem primeiro, depois as mulheres. Eu permaneço aqui, parada, olhando para o pequeno monte de terra recém-remexida. Só nós dois. Pai e filha. Pela primeira vez sem intermediários. Aproximo-me, ajoelho. A ponta do meu vestido toca o chão frio. Passo a mão pela terra ainda solta. — Eu sempre quis ter algo com você. — Sussurro. — Um gesto. Uma palavra. Um conselho que não fosse gritando comigo e agindo como se eu fosse uma burra completa. Eu tentei… tentei tanto. Segui todas as regras. Nunca fiquei no seu caminho. Nunca te desrespeitei. Fiz tudo sozinha para que eu não fosse motivo de vergonha para você. Meus dedos se fecham sobre a terra. — Mas você nunca quis me ver. Nunca nem tentou nada... — Digo, com um sorriso triste. — Nem como filha. Nem como sucessora. Respiro fundo. — Mesmo assim… eu vou seguir. E não por você, pai. Mas por mim. Levanto. Sacudo o pó das mãos. E volto para o carro. { . . . } Quando chegamos à mansão, o silêncio é ainda maior. As pessoas não conversam. Não perguntam. Não exigem nada. Dias de luto. Dias de pausa. Dias em que até a máfia cala a boca. Harika me acompanha até meu quarto. Ela entra sem dizer nada, senta na poltrona perto da janela e fica mexendo nos dedos, nervosa. Eu retiro o pano da cabeça devagar, coloco-o sobre a cama e me sento ao lado dela. O silêncio pesa entre nós por longos minutos, até que eu não aguento mais. — Eu sempre quis ser vista por ele. — Digo, de repente. — Sempre. É ridículo admitir isso, mas é verdade. Quis que ele me olhasse e pensasse: “Essa é minha filha”. Quis que ele tivesse orgulho. Qualquer coisa… Harika me olha com tristeza. — Homens são assim. — Ela diz. — Principalmente os poderosos. Eles acham que sentimentos são fraquezas. Solto um riso sem humor. — Então ele nunca me amou. — Digo. — Nunca. Nem por um segundo. — Ele… demonstrava do jeito dele. — Ela tenta amenizar. — Não! — Corto. — Não demonstrava. E eu não vou mentir para mim mesma. Fico olhando para minhas próprias mãos, como se elas carregassem todas as respostas que busco. Harika então toca meu braço com cuidado. — Você ainda pode escolher alguém que te ame. — Diz ela, quase num sussurro. — Pode escolher seu marido, pode ter um herdeiro que te respeite, pode… — Não vou me casar! — Afirmo, firme, sem hesitar. — Jamais. Ela arregala os olhos, surpresa. — Lunara… isso é loucura. Você precisa de um herdeiro. O nome Tokatli… — Eu tenho um motivo. — Digo, olhando-a dentro dos olhos. — Aqui entre nós... eu jamais vou me casar! E é verdade. Tenho um motivo enorme para isso e como falei, vou pensar em mim já que ninguém mais pensou. É a minha vez agora!
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD