Lunara Tokatli
As semanas passam como um borrão cinza. Confusas, cansativas. E, acima de tudo, pesadas.
Eu achava que sabia o que era o peso da responsabilidade. Afinal, cresci vendo o meu pai comandar este império com mãos firmes, voz dura e uma convicção que movia montanhas. Mas agora… agora eu entendo que eu nunca soube de nada.
Carregar o nome Tokatli é carregar um punho de ferro que te aperta a garganta todos os dias.
Aprendo sobre documentos, sobre contratos, sobre acordos de mercadorias que nunca imaginei que existiam e, aprendo porque meu pai insiste em me ensinar, mesmo quando não deveria falar, mesmo quando sua voz sai falhada, fraca, quase inexistente.
E quando ele está indisposto demais, doente demais, irritado demais, ou simplesmente sem vontade de ver ninguém, eu aprendo sozinha.
Ou com Osman.
E eu odeio admitir isso, mas ele tem sido essencial.
— Nada é fácil. Nada. — Digo para mim mesma enquanto percorro mais uma pilha de relatórios digitais no sistema.
Minha cabeça dói. Minha visão embaralha por segundos. Mas eu continuo.
Pessoas batem à porta a cada hora, trazendo demandas, perguntas, solicitações.
Querem respostas sobre as cargas que entram e saem. Querem detalhes sobre os eventos da temporada. Os malditos encontros comerciais, as reuniões de gala com conselheiros que só pensam em status. Querem acordos com empresas e rotas do mercado negrö para manter o Norte forte, abastecido.
Quase ninguém quer, de fato, trabalhar.
Querem apenas sugar.
E eu… eu estou exausta.
Olhares me seguem por todos os corredores. Sussurros se dissolvem quando eu entro em qualquer sala. Presentes surgem na minha mesa, flores caras, caixas de charutos importados, peças de joias que jamais usaria.
E eu sei. Eu sei perfeitamente que não é admiração, nem respeito.
É bajulação. É investimento. Querem comprar a minha aproximação. Querem que eu abra portas. Querem usar meu nome, minha nova posição, minha suposta fragilidade. Pensam que eu sou uma completa idiotä que não sabe ver as coisas. Só me olham como uma mulher submissa e burra.
E eu não sou!
Acham que sou a filha do líder moribundo. A herdeira do império.
“Se nos tornarmos próximos dela, teremos poder”, é isso que pensam. E isso me enoja.
Tudo o que eu mais queria era um dia só. Um dia de silêncio. Um dia longe dos olhares. Longe das vozes. Longe da pressão que me esmagou desde que meu pai começou a definhar.
Um dia para mim. Só para mim.
Mas parece impossível.
Hoje, especialmente, parece pior do que os outros.
Estou no escritório dele, que agora é meu, mesmo que eu evite admitir isso em voz alta. O escritório ainda carrega o cheiro dele: tabaco, couro e aquela colônia amadeirada que ele usava desde antes de eu nascer. Meu pai fumava demais, quase impossível de o ver sem um charuto.
A mesa está ocupada por notas fiscais, lista de carga, requisições de munição.
Preciso revisar tudo com precisão, porque é para os soldados que protegem a mansão. Se houver um erro, vidas podem ser perdidas.
A próxima carga, a que deve chegar em dois dias, será controlada por mim pessoalmente.
Um excesso de cuidado, dizem. Eu digo que é medo. Medo de algo dar errado e de cair sobre mim a culpa.
Confiro as notas com o relatório geral, olho para o sistema, comparo números, roteiros, pesos.
Quando o som de batidas leves na porta me tira do foco, eu fecho os olhos por um segundo para me preparar.
— Pode entrar! — Digo, sem erguer o rosto.
A porta se abre devagar.
Os passos são calmos, conhecidos.
— Lunara. Posso entrar? — Osman pergunta, com sua voz grave, respeitosa, um pouco cansada.
— Sim. — Respondo.
Ele entra, fecha a porta, puxa a cadeira e se senta diante de mim.
A presença dele é silenciosa, diferente da agitação de todos os outros.
É quase reconfortante. Quase.
— Precisa de alguma coisa? — Ele pergunta, cada palavra escolhida com cuidado.
— Não. Só estou finalizando esses relatórios. — Digo, ainda focada na tela. — Isso aqui eu aprendi, só é cansativo. E tenho que me acostumar sozinha.
Ele observa meu rosto por alguns segundos.
— Hoje é mais um dia r**m para Halit. — Ele diz, direto, sem rodeios. — Acabei de sair de lá. Ele quase não falava. Mäl abriu os olhos e falar..., bom, impossível.
Meu corpo afunda um pouco na cadeira.
— Eu ouvi isso há dois dias. — Murmuro. — Disseram que não tem como ele melhorar. Ele não quis me receber mais desde então.
Osman assente devagar.
— Ele já não come. Não sai da cama. Está… debilitado além do que imaginávamos. E todos estão observando isso.
Fico em silêncio por alguns segundos.
Engulo seco.
Eu sabia que isso aconteceria.
Eu só não achei que seria tão rápido.
— Nunca imaginei que Halit morreria assim. — Ele comenta pensando alto.
Solto um suspiro baixo.
— Eu também não. Sempre imaginei que ele viveria muito. Que comandaria até a velhice. Que ainda teria filhos homens… enfim. Pensei muita coisa!
Paramos.
O peso dessa frase cai entre nós como uma pedra. Meu pai sonhava com um herdeiro homem.
E o destino riu na cara dele.
— O destino muda tudo sem pedir permissão. — Osman diz, com um tom estranho, melancólico.
Concordo com a cabeça.
— Muda. E rápido demais.
Enquanto organizo os papéis para encerrar o trabalho, sinto o olhar dele sobre mim.
Um olhar diferente. Tenso. Profundo. Observa demais.
Analítico demais.
Como se medisse cada movimento, cada respiração, cada parte de mim.
Minha pele arrepia de uma forma desconfortável. Ele nunca me olhou assim.
Nunca.
Isso me inquieta.
— Já terminei! — Digo rápido, desligando o computador, recolhendo os papéis e empilhando-os. — Vamos sair!
Ele assente, se levanta.
Saímos juntos, mas no corredor cada um segue para uma direção diferente.
Eu caminho até o salão principal. Logo vejo Harika sentada em um dos sofás grandes, tricotando com uma concentração tranquila.
— O que está fazendo exatamente? — Pergunto, me aproximando.
Ela ergue o rosto e sorri de leve.
— Um cachecol.
Olho o tecido que cresce entre os dedos dela.
— A cor é bonita. Um marrom escuro… deve ficar ótimo.
Ela sorri de novo, tímida como sempre.
— Espero que sim. Tricotar me relaxa... e esse lugar anda tenso demais. — Ela morde o lábio. — Desculpa. Eu não queria...
— Tudo bem. Eu entendi!
Sento-me ao lado dela.
— Como foi esse tempo longe da mansão?
Ela suspira.
— Complicado… mas eu me acostumei.
— Ouvi dizer que você estava quase noiva.
Ela faz uma careta.
— Estava. Mas tudo foi rompido, e… me sinto aliviada.
— Por quê?
— Era com um soldado. Ele não tinha boa fama. Bebia demais… e era sério, amedrontador. Se envolvia com mulheres de mais. Meu tio Osman rompeu os acordos quando soube da doença de seu pai.
— Ainda bem que você não casou. — Murmuro.
Por dentro, penso: Harika jamais aguentaria viver com um homem assim. A mörte pareceria mais atraente.
Ficamos ali conversando por alguns minutos.
Um momento simples. Quase pacífico.
Até que vejo movimento rápido no corredor.
Correria. Vozes aflitas.
As cuidadoras, as empregadas, todas passando depressa, algumas com lágrimas nos olhos.
O coração bate forte.
Levanto-me imediatamente e corro na direção para saber o que houve.
— O que aconteceu? — Pergunto, indo na direção delas.
Ninguém responde de primeira. Até que uma delas, com os olhos vermelhos, para diante de mim.
— Senhorita… — A voz falha. — Seu pai…
Tudo desacelera.
— Seu pai acaba de falecer.
O mundo cai.
O ar desaparece.
E por um instante, só existe o silêncio.
O mesmo silêncio pesado, crüel, que sempre habitou esta casa. Mas desta vez… ele me engole inteira.