Lunara Tokatli
Eu não acredito nisso aqui.
Não acredito que Kan Ruslan teve a audácia, a ousadia insana, de dormir na minha mansão.
Na minha.
E pior: acordar aqui como se fosse um hóspede convidado, bem instalado, confortável, como se tivesse algum direito sobre estas paredes. Ninguém me informou nada. Nenhuma palavra. Nenhum aviso.
E eu só penso em descobrir quem permitiu isso.
Quando entro na sala de jantar, ainda ajustando a postura e tentando manter o semblante frio, olho para trás, por cima do ombro e vejo. Ele. Ruslan. Está chegando como se estivesse entrando na própria casa, acompanhado do irmão, como sempre.
Parece que os dois são grudados por correntes invisíveis.
A presença dele ocupa espaço demais.
Energia demais.
Atrevimento demais.
Eu me sento na cadeira central da mesa, e Harika logo toma o seu lugar ao meu lado. Osman está mais distante, assim como outros membrös presentes no desjejum. A mesa inteira mergulha no silêncio assim que eu seguro os talheres.
E eu prefiro assim.
Silêncio.
Foco.
Fome saciada em paz.
Mas, mesmo priorizando a tranquilidade, eu não consigo fingir que Ruslan não está ali. Ele senta do meu lado oposto, alguns lugares abaixo, mas perto o suficiente para me incomodar.
Para me observar.
E ele observa.
A cada poucos minutos, eu sinto o peso do olhar dele sobre mim. Como se analisasse. Como se calculasse. Como se estivesse se divertindo. Ele tem um sorriso e um semblante irritante que tira a minha paz e controle. Eu sinto vontade de esganá-lo só por me olhar.
Mas, eu fico inquieta. E irritada. E sem vontade nenhuma de ter qualquer conversa com esse homem depois da refeição.
Harika percebe o meu desconforto, mas, como qualquer pessoa sensata, não diz nada. Ninguém ousa falar comigo durante o desjejum.
Não quando eu estou assim que é bem pior.
Eu como em silêncio até me sentir satisfeita. É o que me mantém em controle aqui. O chá quente finaliza o gosto amargo que esse início de manhã me deixou. Os outros ainda comem ali no fim da mesa.
Quando coloco a xícara de volta na mesa, mostro que acabou.
É hora de enfrentar o que eu menos queria e levanto-me.
— Com licença.
E no mesmo instante, como um reflexo treinado, Ruslan também se levanta.
Eu lhe dou as costas.
Quero distância.
Quero ar.
Quero paz.
Mas ouço passos atrás de mim. Passos firmes, seguros demais.
— Lunara! — Ele chama.
Eu paro, grudando os meus dentes. Giro apenas o suficiente para encará-lo.
— Podemos conversar de forma mais privada? Garanto que é importante.
O tom é calmo, mas não engana. Nada nele é realmente sereno.
— Você tem no máximo dez minutos e depois terá que ir. — Respondo seca. — E pra você é senhorita Tokatli.
Um sorriso leve aparece no canto dos lábios dele. O tipo de sorriso de quem acha que tem vantagem.
— Acredito que será mais do que isso… mas aceito, senhorita Tokatil.
Reviro os olhos internamente e me viro, andando de volta pelo corredor. Ele vem atrás de mim, e isso me irrita a cada passo. Por sorte, o irmão grudento dele não aparece.
Eu ainda lembro de Ruslan ontem, se declarando o meu noivo na festa quase deixando qualquer um ouvir. Lembro do olhar, do sorriso de afronta, da provocação.
Esse homem é louco.
Entramos no escritório. Fecho a porta atrás de mim, ele não deveria ter esse privilégio, mas eu preciso resolver isso. E claro, não quero que ninguém ouça.
Ele agradece pela atenção e eu dou a volta na minha mesa. E me sento na cadeira.
— Vá direto ao ponto... o seu tempo começou. — Digo sem paciência.
Ele leva a mão para dentro do casaco e tira alguns papéis. Eu cruzo os braços, firme.
— Pouco tempo atrás... — Ele começa. — Eu e o seu pai fizemos um acordo.
Eu fico apenas ouvindo.
— Em uma guerra local pelas terras disputadas, o Norte precisava de armasm porque estavam cercados. Eu forneci. E, em troca, falamos sobre uma possível aliança de casamento.
Eu arranco os papéis da mão dele e começo a ler.
Meu coração bate mais forte. Não por ele, mas pelo nome do meu pai ali e claro, a letra dele. Todos conhecem! Está pelos documentos. Pelos despachos de mercadorias, pelas assinaturas… tudo real.
Até encontrar o papel principal.
A letra do meu pai.
Clara.
Reconhecível.
Firme.
"Possível compensação: aliança familiar e matrimônio."
Não.
Não.
Não.
Eu sinto a minha garganta secar.
Ruslan continua falando, claro que continua. Ela fala sobre prazos, sobre negociações interrompidas pela morte do meu pai, sobre como não sabia que ele estava doente e só soube da sua mortë recentemente.
Mas eu não quero aceitar nada disso.
— Conveniente, não acha? — A minha voz sai gelada. — Conveniente que isso só apareça agora que meu pai está morto. Porque antes, ninguém aparecia querendo casar comigo.
Ele tenta responder, mas eu ergo a mão.
— E outra coisa. — Digo, levantando-me. — O acordo foi feito entre você e ele. Meu pai já não está aqui. Então a palavra final é minha.
Eu me levanto e apoio as mãos na mesa.
— E eu não vou me casar com você.
Há um silêncio pesado.
Ruslan me encara.
Eu encaro de volta.
Ele apoia as duas mãos sobre a minha mesa, inclinando-se, como um homem que acredita que pode pressionar. Que pode impor. Que pode intimidar.
— Eu vou querer a minha parte no acordo. Não vou sair sem nada! — Ele afirma.
Eu rio. Sério. Eu rio.
— Então cobre de Halit por isso. — Respondo. — Já que foi entre vocês dois. Eu não sabia de nada.
Os olhos dele ficam mais estreitos.
Ele respira fundo.
— Lunara… essa negação pode custar caro. Eu posso impedir certos negócios do Norte na região central.
— Isso é um ato de guerra. — Minha voz sai firme, afiada.
— Eu não tenho nada a perder! — Ele rebate. — A questão é: você tem? Está pronta para liderar uma guerra? Tem experiência nisso?
Eu sinto o impulso de atravessar a mesa e arrancar o pescoço dele com as próprias mãos.
Mas eu não demonstro.
Não para ele.
— Minha palavra final é essa. — Digo, firme, clara, inabalável. — Eu não vou me casar com você. Agora saia da minha casa. Pegue as suas coisas, pegue o seu irmão e vá embora daqui. Volte para a sua terra e se contente com o que tem!
Ruslan endireita a postura lentamente. O sorriso dele volta, aquele sorriso provocador.
— Essa conversa não acabou!
Ele pega os papéis de volta com rapidez, como se escondesse ouro.
— E a partir de agora... — Ele diz, indo em direção à porta. — Eu vou aparecer mais vezes. É melhor se acostumar comigo.
Ele chega na porta, abre, mas me olha de lado.
— Ah… e acho que o Conselho Geral vai gostar de ver esses documentos. Até onde eu saiba, as tradições abominam mentiras e dão valor à palavra.
A porta se fecha.
E eu explodo.
— Desgraçadö! — Eu bato na mesa. — Maluco, louco, filho da putä..., oportunista, verme, canalhä!
Eu xingo tudo que vem à minha língua. Pego a minha própria cadeira com força. Bato a mão na mesa outra vez. Sinto o calor subir pelo meu rosto.
Eu não vou me casar.
Eu não vou me submeter.
Eu não vou entregar o Norte para as mãos de um lunático da região central.
Agora eu vejo claramente o interesse dele.
Não sou eu.
Nunca foi eu.
É o território.
É a liderança.
É o poder.
É a chance de ser o novo comandante de duas regiões assim como Faruk Arslan fez.
E isso, eu jamais deixarei acontecer.