Gabriela
Eu achei que eu ia morrer.
De verdade.
Não é força de expressão, não é drama... eu senti a morte encostar no meu rosto.
Quando ele veio pra cima de mim, eu congelei. Eu já tinha levado tapa, grito, empurrão... mas daquele jeito, nunca.
Não foi um surto.
Foi uma fúria.
Foi um demônio nos olhos dele.
No primeiro soco, eu vi tudo girar.
Na hora eu não entendi. Achei que ele tinha derrubado alguma coisa, sei lá.
Mas era meu corpo batendo na quina da parede.
Ele não parava.
Gritava palavras que eu não entendia mais.
A voz dele virou ruído. Os tapas, os socos, os chutes... vinham de todo lado.
Veio na cara, veio na barriga, veio no joelho, veio nas costelas.
Eu vomitei sangue. Engasguei.
Me arrastei pro canto como um bicho. E ele veio atrás.
Veio como se eu fosse uma ameaça.
Como se eu tivesse feito alguma coisa absurda.
Mas tudo que eu fiz foi cuspir.
Foi cuspir pra não engolir a dor.
Eu gritava por socorro, mas ninguém ouvia.
Ou ouvia...
E se calava.
Porque é o Farias.
E com ele, ninguém mexe.
Teve uma hora que eu...
Eu só queria que acabasse.
Não me importava mais se eu ia viver.
Só queria que parasse.
Minha alma saiu do meu corpo.
A cabeça latejando, o sangue escorrendo da boca...
E eu lembro de ver o teto da sala meio embaçado.
No meio de tanta porrada, da dor, do medo…
Veio a culpa.
Veio a pior dor de todas.
Meus filhos.
O rosto do Ravi passou como um raio pela minha cabeça.
Aquele sorrisinho torto, os olhos igualzinho ao do pai... aquele pai que me desfigurava ali mesmo, na frente de Deus.
E eu pensei:
“O que foi que eu fiz?”
“Que tipo de homem eu deixei entrar na vida dos meus filhos?”
A dor do corpo se misturava com a dor da alma.
Eu me senti um lixo.
Uma mulher fraca.
Uma mãe fracassada.
A gente sempre acha que tá segurando tudo, que tá fazendo o melhor...
Mas naquele momento ali, com a cara quebrada, o sangue nos dentes e o corpo mudo no chão...
Eu percebi que eu tinha falhado com eles.
Falhei com a minha filha, que vai crescer sabendo o que é um homem bater numa mulher.
Falhei com o Ravi, que pode achar que isso é normal.
Que pode virar esse tipo de homem.
E tudo isso por quê?
Por acreditar numa mudança que nunca existiu.
Por aceitar um pedido de desculpa seco, um presente bobo, um momento de calmaria como se fosse amor.
Eu tava me enganando.
E enganando eles.
Meus filhos não mereciam isso. Nem eu.
Quando eu pensei que ia morrer...
Foi deles que eu lembrei.
Não foi do meu nome.
Não foi da casa.
Não foi de joia, de maquiagem, de roupa nova.
Foi dos meus filhos.
Lembrei do Ravi correndo no corredor gritando “mamãeêê” como se o mundo fosse só nosso.
Daquela risada que ele solta quando eu finjo que vou morder a barriga dele.
Lembrei do dia que ele caiu, ralou o joelho, e só parou de chorar quando eu soprei e disse que o beijo da mamãe curava tudo.
A minha menina… tão pequena.
Tão minha.
Lembrei do cheirinho dela depois do banho, dos pezinhos gordinhos chutando o ar, do jeitinho que ela me aperta toda na hora de dormir.
Eu só queria voltar no tempo.
Ser só eu e eles.
Num domingo qualquer.
Café preto, pão na chapa e desenho passando baixo na TV.
Sem grito. Sem tapa. Sem medo.
A gente era feliz nos detalhes.
Nos momentos que ninguém via.
E agora...
Agora eu tô aqui.
Entre a vida e a morte.
E nem sei se vou poder ver eles de novo.
(...)
/........./............../
A primeira coisa que senti foi…
dor.
Era como se meu corpo tivesse virado pedra.
Um bloco de dor pulsando, pesado, quente.
A cabeça latejava.
O rosto parecia queimado.
As costelas ardiam a cada respiração.
Tentei abrir os olhos… só um respondeu.
E mesmo assim, tudo estava embaçado. A luz do teto doía. A claridade era demais pra mim.
Demorei pra entender onde eu tava.
Uma maca? Um hospital?
Eu tava viva.
Não sabia como.
Nem por quê.
Mas tava.
A garganta seca, sem força pra falar.
Mas dentro de mim, uma pergunta martelava com peso:
“Cadê meus filhos?”
Aos poucos, fui entendendo onde eu tava.
A dor me lembrava a cada segundo, como um soco sem parar:
"Você tá viva. Mas não saiu ilesa."
Meus olhos abriram devagar. Um aberto, o outro quase colado, inchado.
A luz me cegou por um instante…
Mas quando a visão clareou um pouco, eu vi uma silhueta sentada ali. Cabeça baixa, mão segurando o celular.
Alice.
Ela tava ali.
De blusa larga, cabelo preso de qualquer jeito, cara de quem não dormia há dias.
Mas presente.
Firme.
Meu peito doeu mais do que já doía.
- ...Ali...ce. — saiu baixo, arranhado, como se cada letra viesse puxada da garganta rasgada.
Ela levantou a cabeça na hora.
Os olhos dela encheram.
- Gaby...? Meu Deus cara, nem acredito que tu acordou.
Pisquei devagar, a respiração curta.
- Cê... tá... aqui.
- Tô. Porr@, eu tô sim. Tô aqui desde que te largaram aqui feito um cachorro, amiga. Dois dias aqui. Dois. Esperando tu abrir esse olho. Tu quase foi, caralh0... quase foi. _ a voz dela tremia, mas ela forçava firmeza.
Dois dias...?
Dois dias?
Aquilo pesou em mim.
O tempo… apagado da minha cabeça.
- Que... que aconteceu...?
Alice respirou fundo. Levantou. Pegou minha mão com cuidado.
- Tu não lembra de nada...? Nem do hospital? Nem do que ele fez contigo...?
As imagens voltaram em fragmentos.
A sala.
O grito.
O sangue.
O chão frio.
A respiração pesada dele.
Fechei os olhos com força.
- Ele... ele me matou?
- Tu tá viva, porr@. Mas o que ele fez... foi quase isso sim. Tu tava roxa, mole, toda fudid@. Achei que tu não ia voltar mais, Gaby. achei que ia te perder mapoa.
As lágrimas escorreram.
Mas era diferente dessa vez.
Não era só dor.
Era vergonha.
Era raiva.
Era luto por mim mesma.
- Meus filhos? Eles tão com quem? _ perguntei, quase sem voz.
Alice abaixou os olhos.
- Com ele. Lá na tua casa.
A dor que eu senti não foi no corpo, foi na alma.
A pior dor de todas.
Aquela que dilacera de dentro pra fora.
- Com... ele...? _ repeti, como se meu cérebro não quisesse aceitar.
- É, Gaby. Com a babá. Ele sai pra boca todo dia e deixa os dois com ela. Tá fingindo que nada aconteceu. Como se tu fosse aparecer a qualquer momento e tudo voltar ao normal._ MALDITO.
Meu corpo inteiro tremeu.
Meu coração disparou num desespero que eu nunca tinha sentido antes.
- Eu não... eu não quero voltar pra lá, Alice... _ a voz saiu fina, falhada.
Comecei a chorar.
Mas não era choro de mulher forte tentando aguentar.
Era choro de criança.
Choro de alguém que foi esmagada por tudo.
- Eu não quero voltar pra aquela casa... eu não quero! Eu tô com medo, Alice... eu tô com medo...
Alice com os olhos cheios d’água.
- Calma, amiga, respira. Eu tô aqui contigo. Ninguém vai te obrigar a voltar pra lá._ Ela fala firme tentando acreditar nas próprias palavras.
- Eu só quero meus filhos. _ Solucei, me encolhendo na cama. - Eu só quero eles aqui comigo, eu quero abraçar eles, saber que eles tão bem… que ele não encostou neles.
Me senti uma merd@ de mãe.
Uma mãe que não conseguiu proteger nem a si mesma, quanto mais os próprios filhos.
- E se ele machucar eles, Alice? E se... e se ele fizer com eles o que fez comigo? _ enterrei o rosto nas mãos, me tremendo toda.
Alice passou a mão no meu cabelo com carinho.
- Ele não vai. Eu vou dar meu jeito, tá me ouvindo? Mas tu não vai sair daqui enquanto não tiver força pra se manter em pé, cê entendeu? Os teus filhos precisam de tu viva, não morrendo por pressa.
Eu só chorava Destruída.
- Eu só queria que nada disso tivesse acontecido… eu só queria meus filhos, e paz, só isso…