Naquele quarto esquecido, amontoado de coisas, de atmosfera sufocante e empoeirada, havia sacos cheios de argila, cabides com mechas de cabelo penduradas, olhos de vidro num pote, modeladores de barro, verniz e tinturas. Eram objetos de confecção de bonecas para voodoo.
Hadria moldava a massa feita com argila branca de alta qualidade, quartzo, caulim e água na forma de um rosto de boneca.
A alma errante de uma guerreira nórdica conhecida com o título de valquíria estava ao lado dele na confecção do objeto.
— Prefiro quando tenho a forma de um animal familiar, como as bruxas diziam. Posso mover-me melhor… por que fazer um totem para sua contratante em forma de uma boneca?
— A boneca será em tamanho real. É uma espécie de voodoo. Quanto mais Luna te amar, mais poderosa você fica e em situações de perigo você conseguirá possuir Luna e usar o corpo dela sem limitações, enquanto o selo do pacto da perna dela vem para boneca durante a possessão. Dessa forma, você pode proteger Luna quando eu não estiver por perto, Brunhilde. Ela é uma alma humana preciosa que já sofreu muito. Eu não posso perder essa alma.
— Todo esse esforço porque você quer devorar essa alma, demônio…— Acusou a valquíria c***l.
— Sim… essa alma é especial e o sabor dela será bem apreciado. Você que não foi aceita em Valhala com as suas companheiras, quer uma luta e um motivo para defender os mais fracos e se provar digna perante os seus deuses… Eu tirei você de Helheim como um acordo com Hella, posso mandar-te para lá de novo e escolher outra alma infernal disposta a colaborar comigo na proteção de Luna…
— Eu vou proteger a sua alma preciosa até o abate. — Resmungou Brunhilde.
— Ótimo. Não esperava outra coisa de você. — Soltou Hadria ainda focado em dar forma a boneca. — A garota fez inimigos poderosos quando matou o ocultista Crowley. Ela cedeu-me uma das suas pernas. Luna não pode se proteger sozinha, mas dessa forma e com a boneca voodoo, a perna dela poderá se mexer quando você possuí-la. Eu tenho algumas limitações e não poderei estar o tempo todo com ela. Mas você… você será um fragmento da alma dela.
...
O demônio surgiu no escritório de Crowley, aonde boa parte das pilhas de papéis e correspondências tinham sido reduzidas pelo senso de dever e eficiência de Luna, usando o selo de serpente.
Ele apareceu com uma grandiosa boneca em mãos. Era uma linda boneca de porcelana de longos cabelos negros, grandes olhos escuros vitrificados, um rosto oval magnífico e vestida de um dos modelos pretos dos vestidos de Luna. Tinha braços e pernas capazes de se mover e 1,55 e o mais importante tinha uma alma guerreira.
Ele notou como os olhos da menina brilharam de cobiça ao notar a boneca de tamanho real que era uma versão dela. Previsível. Pensou o demônio.
Luna saiu da postura de dama da casa para a de uma criança, estendendo as mãos ao objeto, fascinada, como se dissesse “dá-me, dá-me”.
Hadria sorrindo, caminhou até ela e a cedeu à espiritual boneca, feita de um pedaço do cabelo de Luna, que ele roubou enquanto ela dormia, sentando-a no colo de Luna, com um impercetível sorriso.
Luna sentou a boneca no seu colo, acariciou os fios da boneca carinhosa, penteou o seu cabelo longo com os dedos, a aninhou com o rosto no seu peito como um bebê e depois beijou o seu rosto branco com suprema devoção inúmeras vezes, como uma mãe com um bebê. Havia um sorriso de orelha a orelha nos seus lábios, enquanto acariciava a mão da boneca docemente.
— Prometo que trarei o resto dos trajes que estou confeccionando para ela depois e também a casa que estou construindo para sua nova amiga. — Informou, mas percebeu que Luna não mais escutava, obcecada pela boneca. — Feliz aniversário de dezesseis anos, minha senhora.
Os olhos de Luna encheram-se de lágrimas que ele soubesse que dia primeiro de novembro era seu aniversário. A alma dela brilhou num lapso de luz, enquanto abraçava a boneca como seu bem mais precioso. O rosto da boneca se moveu para a direção de Hadria. Os olhos dos dois se encontraram, do demônio e da boneca. Os da boneca continham certo cinismo se isso fosse possível a um objeto que deveria ser inanimado.
Luna parou o abraço com a boneca que voltou ao normal. Até o rosto antes severo e fechado pelo cansaço de Luna pelo trabalho ganhou com a boneca com a qual foi presenteada um sorriso grandioso. O demônio salivou por aquela alma, mas se conteve a tempo.
— Obrigada. Ela é linda. Em que mestre de bonecas a encomendou em duas semanas, Hadria? Nunca vi algo do tipo.
— Eu a fiz especialmente para você. — Respondeu o demônio como se nada fosse. — Ela é sua protetora e melhor amiga.
— Ah, que trabalho primoroso e que servo mais prendado esse meu. — Elogiou emocionada, parando o abraço na boneca, cujos olhos vitrificados do objeto que deveria ser inanimado se voltaram para Luna com admiração e cautela, enquanto Luna ia avaliando a alta costura da roupa, o implante do cabelo, os enfeites e todas as feições da boneca muito amável. — Ela é magnífica, Hadria. Magnífica!
Hadria sorriu de lado.
— Minha senhora, um artesão sempre se sente honrado quando o seu trabalho é reconhecido. Inclusive dizem que bonecas possuem almas e quando são amadas pela dona, se tornam as suas guardiãs. Essa boneca tem uma alma bem protetora com os seus donos.
— Essa boneca está intacta como eu nunca mais estarei. Ela ao parecer comigo mantém-me em pureza. — Soltou Luna emocionada e beijando a boneca na testa, chorando. Uma lágrima escorreu dos olhos da boneca, mas Luna pensou ter sido a sua que caiu na bochecha de porcelana.— Obrigada de verdade por ela. O nome dela vai ser Clara.
— Vou guardá-la enquanto responde às cartas dos nobres, minha senhora… — Sugeriu o servo.
— Não, deixe ela aqui comigo. Consigo cumprir o meu dever de forma eficiente, prometo. Não vou brincar com ela até terminar, mas deixa ela comigo. — Implorou Luna, não querendo se separar por um minuto da boneca que considerava a sua versão inocente.
— Como quiser, minha senhora.
...
Quando ele voltou ao escritório não havia mais nada na mesa como o prometido. Notou Luna com a boneca no colo, conversando, distraída e passando a escova no cabelo na sua maioria sintético, tirando as partes do cabelo da própria Luna.
Sabia que Luna era diferente e solitária. Mas mesmo não sabendo que a boneca que ele a deu tinha uma alma e a de uma guerreira nórdica que era uma ceifadora de Ódin, por assim dizer, conversava com ela e penteava o cabelo dela carinhosa.
— Vejo que cumpriu todas as tarefas necessárias para o baile fúnebre em homenagem ao seu marido, minha senhora. — O mordomo tomou a palavra.
Luna deu uma risadinha.
— É, foi necessária essa cortesia macabra para a sociedade aceitar-me como a viúva e a condessa. — Respondeu sombria, mas ainda mantendo a mão suave no cabelo da boneca.
Luna colocou a escova de cabelo de lado. Ajeitou a boneca no seu colo e a estudou sorridente.
— Ela precisa de muitos vestidos bonitos e muitas fitas de cabelo. Quero que ela use cores claras e não escuras como a minha. Quero que essa boneca seja minha versão pura e imaculada. Ela é a minha parte que continua pura, agora que virei um demônio. — Deixou escapar
— O seu desejo é uma ordem, minha senhora.