Após a Tempestade.

3105 Words
Estou correndo. Eu não sei o porquê de estar correndo, mas sinto que preciso acelerar cada vez mais. Preciso me afastar da coisa que me persegue. Ela está perto, muito perto agora... posso ouvi-la me chamando, sinto seus dedos roçando minhas costas, mas não me atrevo a olhar para trás. Apenas continuo correndo. Abro meus olhos lentamente, sem de fato conseguir enxergar. Sinto minha boca seca e um cansaço extremo. Estou deitada e percebo haver um fino cobertor sobre meu corpo. Está tudo escuro e começo a ficar nervosa. Tento me mexer, mas estou basicamente imobilizada, com o corpo completamente dolorido. Então, imagens da noite passada invadem minha cabeça. Eu estou morta? Isso é o Inferno? — Esther? Está acordada? Graças ao Senhor! — Reconheço a voz imediatamente. — Rita...? — Sussurro com a voz fraca. Minha garganta dói, assim como o resto do meu corpo debilitado. Algo deixa uma sensação estranha no meu rosto, como se as bochechas estivessem presas. — Minha menina... — Pelo tom de sua voz, presumo que está chorando. Com certeza estou em um leito no hospital da cidade agora, e como já esperava, Rita é a primeira pessoa a aparecer. Tento não pensar em meu estado atual e foco somente em sua voz familiar. De repente, mais uma dúvida me açoita. — Rita... onde está o papai? Minha garganta agora dói ainda mais. Isso me faz lembrar da mão de Jeff apertando meu pescoço, seus dedos pressionando minha pele com força, me sufocando. Estremeço, segurando minha vontade chorar. — Acho melhor você descansar primeiro, Diabinha. A enfermeira disse que foi um milagre você sobreviver a tudo isso... essas coisas... horríveis... Ela soluça chorando e sinto seus dedos se entrelaçando cuidadosamente nos meus. Minha mão dói um pouco com o toque, mas ignoro. Melhor amiga da minha mãe antes dela falecer no parto do meu irmão, Rita é parte da família. Ambas eram modelos que se aposentaram ao preferir a vida de mãe e dona de casa à vida nas passarelas, o que eu particularmente acho um absurdo. Completamente diferente da minha mãe na aparência, Rita tem o cabelo curto e tingido de vermelho, além de uma pele n***a perfeita. A única coisa em comum com a antiga melhor amiga são seus lindos olhos verdes, que se destacam em seu rosto. Rita cuida de mim desde que eu era uma criancinha. Porém, sua característica mais marcante sempre foi a religiosidade. Criada por pais conservadores e extremamente religiosos, Rita sempre ri ao contar que já teve uma fase rebelde e que a maior lembrança disso é o cabelo vermelho. O apelido 'Diabinha' me foi dado porque eu nunca fui muito ligada à vida religiosa e detestava ir à igreja, então o apelidou acabou virando uma piada particular. Após alguns segundos de silêncio enquanto ela se recompõe, faço a pergunta que está martelando na minha cabeça. — Ele está morto, não é? Minha voz não passa de um sussurro. Ferida, sinto minha garganta apertar ao lembrar do corpo do meu pai jogado na cama, sendo brutalmente esfaqueado por um maníaco homicida. Gemo de dor ao tentar me sentar para pedir um copo d’água. Rita me ampara e, pedindo para eu ficar parada, sinto a própria cama se dobrando para me deixar sentada. — A enfermeira vai voltar logo. Vou pedir para aumentarem a dose da morfina. — Noto que Rita tenta manter a voz firme para me dar algum apoio emocional, mas falha miseravelmente. — E também vou pedir para que troquem os curativos de novo. — Eu estou muito m*l? — Tento me lembrar do que posso, mas tudo não passa de um monte de borrões aleatórios e cenas distorcidas repletas de dor e angústia. — Aposto que sim. — Completo em voz baixa. — Você está viva, é isso que importa. — Sinto sua mão quente acariciar gentilmente meu queixo. — O resto não é importante. Suspiro e concordo levemente com a cabeça. Quando a enfermeira retorna, levo uma bronca por estar conversando enquanto minha garganta precisa de recuperação. Por consequência, não falo mais nada durante horas e passo a evitar ao máximo qualquer tipo de movimento, já que eles ocasionam uma dor terrível que varre meu corpo como se eu estivesse em uma piscina de agulhas. Não sei como lidar com a morte do meu pai. Crescer na mesma casa que ele havia sido um inferno, humilhante na metade do tempo e doloroso na outra metade. Porém, ele ainda era o homem que me criou e nem mesmo um pai daquele jeito — com aquele comportamento típico de um bêbado abusivo — deveria ter um fim como o que ele teve. O resto do dia (ou talvez noite, não consigo enxergar para saber) se passa lentamente. Eu ainda não posso ver nada, então a única coisa que posso fazer é ouvir Rita orando e entrando e saindo do quarto, enfermeiras checando meu estado a cada cinco minutos e um médico que aparece às vezes para ver como estão meus exames. A TV ligada em volume baixo é minha única companhia constante além da dor. Presto bastante atenção nos sons dela, já que não posso assistir. De repente, uma notícia me chama a atenção: — Foi constatado nessa madrugada o falecimento de Daniel Crawford, que trabalhava como vigia noturno em uma loja de departamentos. O homem de trinta e nove anos foi encontrado já sem vida em seu quarto, com múltiplas facadas por todo o corpo. — Diz a âncora do jornal. — Um crime brutal e sem explicação, Margareth. Mas, infelizmente todos sabemos que essas são sempre as características dos crimes de Jeff the Killer. A única filha de Daniel, Esther Crawford, está em estado agora estável no hospital St. Sister Dulce, também tendo levado múltiplas facadas. Além dessa agressão terrível, a jovem foi estuprada, coisa fora do padrão do temido assassino Jeff the Killer. Terá ele agora tomado gosto por, além de matar, estuprar suas vítimas? Começo a ficar ofegante e o nó em minha garganta se aperta ainda mais. Sinto as marcas dos dedos de Jeff ardendo em meu pescoço quando o âncora do jornal dá a palavra novamente à mulher. — Jeff ainda não foi encontrado, mas o policial John Leonard, vizinho dos Crawford, relatou ter atirado contra o criminoso, acertando-o no braço esquerdo. Se ele procurar ajuda médica, a polícia deve ser avisada imediatamente. — A âncora diz. A tristeza me inunda rapidamente, como se eu estivesse sendo afogada em uma banheira de água fria. — Voltaremos com mais informações assim que possível. Mas, que fique de alerta para todos os moradores da região: não deixem nenhuma janela ou porta destrancada, andem sempre em grupos e evitem locais afastados. Não queremos que histórias assim aconteçam novamente. É isso que eu sou agora: uma história triste para uma cidade que está sofrendo nas mãos de um psicopata. Uma pobre garota esfaqueada e estuprada. Já posso imaginar as pessoas olhando-me com pena, tentando me confortar com palavras doces que nunca diriam se eu não tivesse passado por isso. Eu não consigo suportar tanta falsidade. Suspiro e afasto as lágrimas que começam a se acumular no curativo em meu rosto. Minha cabeça gira com os últimos acontecimentos. Minhas memórias parecem meio borradas e incompletas, provavelmente culpa do meu cérebro tentando bloquear o sofrimento pelo qual eu passei, mas mesmo assim me sinto diferente, como se uma parte minha tivesse sido removida. E não, isso não é um eufemismo para a minha virgindade. ... Uma longa semana depois — tempo suficiente para eu estar morrendo de tédio — sou submetida a mais uma bateria de exames para checar se está tudo certo comigo. O médico fala a todo momento sobre como não pareço correr risco de uma hemorragia interna, como se eu estivesse realmente preocupada com isso. A pior ferida não é física. Há também os exames para ver se contraí alguma infecção ou doença sexualmente transmissível (todos felizmente deram negativo, pelo menos o infeliz não me passou AIDS). Mesmo com a redução das doses de toda a medicação que estou tomando, ainda passo o dia me sentindo dopada. Durmo quase todo o tempo já que ainda há bandagens ao redor dos meus olhos e evito ouvir o noticiário. Não quero notícias do meu agressor, que parece manchete diária. Após toda essa chateação, com pessoas me tocando, espetando coisas em mim e me colocando em máquinas, uma enfermeira vem até minha cama. Percebo ser a mesma mulher que me auxilia no banho, não me deixando molhar os pontos que levei pelo corpo todo. Não me recordo seu nome, mas sempre agradeço o fato dela caminhar fazendo o máximo de barulho possível para me alertar de sua presença antes que esteja próxima demais. Ultimamente, não ando podendo me assustar sem ter um ataque de pânico. — Olá, srta. Esther. Como estamos hoje? — Ela pergunta e pelo seu tom de voz, deve estar sorrindo para mim. — Melhor, impossível. — Tento sorrir para não parecer sarcástica, mas os pontos que unem minhas bochechas ardem sempre que faço isso. — Sabe o que vim fazer aqui hoje? — Ouço ela mexendo em algo de metal, provavelmente aquelas bandejas típicas de ambientes esterilizados. — O quê? Está na hora de tirar essas bandagens incômodas dos seus olhos. — Sério? Finalmente! Quando tento me sentar, — empolgada pela notícia — a dor me atinge com força nos braços e na barriga. Desabo de novo na cama, soltando um suspiro de dor. A enfermeira me ajuda a me sentar com delicadeza, tomando cuidado para não tocar em meus curativos. Uma semana trancada em um hospital e ainda não consigo me sentar. Patético. — Evite movimentos muito bruscos, querida. Não quer arriscar abrir seus pontos de novo, quer? — Sua voz é incrivelmente calma e serena, abrandando um pouco da raiva que estou sentindo. — Eu só fui me sentar! — Resmungo aborrecida, mas resmungar não ajuda com a dor e a ardência dos cortes, que prevalece sempre. Até mesmo em pequenas tarefas, como me sentar, deitar, comer e ir ao banheiro, a dor me derruba com facilidade. A pior parte são os banhos de esponja úmida que tomo, já que não posso molhar os pontos expostos principalmente em meus braços e coxas. — Você teve muita sorte, sabia? Somente outra pessoa sobreviveu a um dos ataques de Jeff the Killer. — Ela ajeita meu travesseiro e me faz recostar nele enquanto fala. — O irmão mais velho dele, se não me engano. — Irmão? — Viro a cabeça na direção de sua voz. — Ele tem um irmão? E ele está vivo?! — Não consigo conter minha surpresa. Quando penso em Jeff, só consigo imaginar que o m*l assumiu uma forma física. Nunca parei para pensar que, antes de tudo que aconteceu, ele foi um garoto comum, com uma família. — Bom, ele não aparece mais por aqui desde que se recuperou do ataque. — Ela comenta, sua voz em tom pensativo. — Acho até que ele estava neste mesmo quarto antes de ser transferido para um hospital maior, na capital do estado. — Então os ferimentos dele foram ainda piores que os meus... — Murmuro, chocada com essa afirmação. — Como pode ele estar vivo? — Não sei se ainda está vivo, esse mundo está tão violento! Espero que tenha se recuperado desde o fim horrível que a família dele teve. Bom, eu vim aqui por um motivo além de conversar. — Sua voz agora é de uma branda felicidade. — Hora de tirar esse curativo da cabeça. Os minutos seguintes se passam com ela desenrolando a faixa que cobre meus olhos. Eu estou ansiosa para poder enxergar novamente e a enfermeira nota minha empolgação, pedindo para eu ter paciência. — Abra seus olhos, querida. — Ela diz quando finalmente sinto meu rosto livre. Faço o que ela pede e fico surpresa com a claridade no cômodo. Meus olhos estão acostumados com a escuridão do curativo, não mais com claridade. — Que horas são? — Pisco repetidas vezes até me acostumar, sorrindo o máximo que posso, até que noto algo. Eu só estou enxergando com o olho direito. A enfermeira olha no relógio em seu pulso. — São oito e meia da manhã. — Ela sorri, sua pele enrugada e seu cabelo grisalho bem-cuidado combinam com ela, quase como se ela tivesse nascido para ter cara de avó. — Você tem um espelho? — Pergunto checando meu corpo. Estou repleta de pontos fechando cortes. Há tantos que me pergunto seriamente como consegui sobreviver à perda de sangue. A idosa se vira e abre uma gaveta de um minúsculo armário no canto do quarto. Retira de lá um pequeno espelho de mão que me entrega em seguida. Assusto-me ao ver meu reflexo. Meu olho esquerdo não está no lugar e há vários pontos pelas minhas bochechas, formando um sorriso que vai de orelha a orelha como o de Jeff. Há marcas escuras e visivelmente feitas por dedos em meu pescoço, e um inchaço esverdeado enorme debaixo dos meus olhos. Olho para a idosa, pedindo com o olhar uma explicação óbvia, quem sabe um conforto. — Jeff arrancou seu olho e aparentemente você levou um soco, pois seu nariz estava seriamente machucado. — Ela suspira, passando sua mão macia pela extensão de minha bochecha, em cima de cada ponto. — E pelo visto esculpiu um sorriso em você também. Sorte sua que ele não tentou arrancar suas pálpebras, várias vítimas chegaram ao necrotério sem elas. — É... eu tive sorte. — Digo com amargura, enquanto observo minha aparência medonha. Se eu sofria bullying antes por ser menos magra do que as outras meninas da minha turma, imagina se me virem agora. Minha formatura será infernal. — Você ficou desacordada durante várias horas, passando por cirurgias para impedir uma hemorragia interna e fazendo transfusões de sangue, meu anjo. — Suspiro, tentando evitar o choro. — Você chegou muito perto da morte. Quero gritar-lhe que não cheguei apenas perto da morte. Quero dizer que ela me deu um beijo suave e levou uma parte de mim que nunca terei de volta. A sanidade. — Onde está Rita? Eu quero vê-la. — Digo, ainda prestes a chorar. Passo lentamente a mão em meu pescoço cheio de hematomas, encarando meu reflexo destruído. A sensação de ter dedos apertando minha garganta está mais literal que nunca agora. — Ela deve estar na lanchonete. — A enfermeira vai apressada em direção à porta, ciente de meu nervosismo. — Quer comer algo? Não pode sair da cama, então eu posso pedir para trazerem seu café da manhã. — Estou sem fome. — Minha voz baixa, olhando para dezenas de pontos em cada uma das minhas coxas. Eu pareço uma boneca de pano agora. 'Own, a bonequinha é virgem? Que falta de sorte para você.' Aperto de leve as coxas uma contra a outra, fechando minhas pernas com mais força. Consigo lembrar do toque sádico e enlouquecido do assassino, como se para sentir prazer de verdade, precisasse me machucar. Sinto-me mutilada de várias maneiras. A vida toda, fui subjugada e maltratada pelos outros para, no final, o ápice disso vir na forma de um serial killer deformado que, após toda a violência que me fez sofrer, resolveu não me matar. Ironicamente, ele foi a única pessoa além de Rita a ter pena de mim. Como se meu pensamento a atraísse, ela volta com uma bandeja repleta de fatias de pão, geleias de vários sabores, uma pequena jarra de suco natural e alguns pacotinhos de açúcar. Reviro os olhos, ou melhor, o olho. — Você não acha que eu vou comer tudo isso, acha? — Olho para ela, que mantém sua expressão neutra. Com certeza está tentando não olhar para onde meu globo ocular esquerdo deveria estar, com medo de me deixar triste. — Eu não acho, eu tenho certeza. — Ela se senta na cadeira ao lado da cama e coloca a bandeja em meu colo, sorrindo. — Você precisa comer para ficar forte. — Você fala isso para mim desde que eu era uma criança. — Eu rio, ignorando a leve pontada de dor nos pontos em minha barriga. Abro a geleia de morango, mas Rita insiste em passar ela no pão para mim, alegando que não quer que eu faça nenhum esforço. — Não sou um bebê, sabia? — Resmungo baixo. — Agora, é como se fosse. — Ela diz e o leve sorriso em seu rosto some, dando lugar a uma feição séria. — Não vou desgrudar de você até seu tio chegar. — Tio? — Meu tom é de reclamação. Tio Richard é irmão do meu pai. Ele não é nem de longe a pessoa mais agradável do mundo, pois é impossível conversar com ele sem ficar um clima estranho no ar. Ele parece nunca saber o que fazer da própria vida. Rita me olha feio. — Eu vou morar com ele? — Tento não torcer o nariz diante dessa possibilidade. — Mas eu sou maior de idade! — Tecnicamente, é ele quem vai morar com você. — Ela me entrega a fatia de pão. — E não, você não é. Se não me falha a memória, seu aniversário é só daqui a algumas semanas. Tento iniciar uma argumentação, mas a mais velha me interrompe. — Não adianta discutir comigo, não foi uma decisão minha. Ele mesmo solicitou a sua guarda. — Você sabe que ele só fez isso porque, comparada ao apartamento dele, minha casa é um palácio. — Parece c***l, mas é a realidade. Meu tio nunca ligou para a minha existência e subitamente ele resolve ser meu responsável legal? Ok. — Sua casa é realmente bem maior do que o apartamento dele. — Rita suspira, sabendo que não pode contestar o que eu disse. —Tente pensar que você só vai ganhar novos, digamos... hóspedes. Mas, se não conseguir voltar para casa devido a algum trauma psicológico mais sério, o apartamento dele é a única opção… — Não, eu quero ficar em casa! — Respondo rapidamente, preferindo encarar as paredes que assistiram ao meu maior sofrimento do que passar semanas morando no minúsculo cubículo cinza no centro da cidade que meu tio denomina como um apartamento. — Que droga, eu queria morar com você. Ela sorri diante de meu comentário e eu faço o mesmo, sem ligar para os pontos que se esticam com o movimento. A única coisa que quero agora é voltar a ter a mínima noção de normalidade na minha vida, e Rita é o único elo capaz de me ajudar nisso.
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