A festa seguia com intensidade no salão principal. O som refinado da orquestra dançava pelo ar, mesclando-se ao tilintar dos talheres de prata, ao estalar dos risos sofisticados e ao murmúrio abafado das conversas entre empresários, socialites e herdeiros entediados. Mas, por trás da cortina dourada do luxo, além das portas de vidro que separavam o salão da cozinha, havia um universo paralelo — o mundo da equipe de serviço.
Nos fundos, um espaço improvisado servia de refúgio. Um recanto apertado entre caixas de gelo, baldes de lixo metálicos e prateleiras de utensílios, com mesas de plástico m*l niveladas e cadeiras desconfortáveis que rangiam sob o menor movimento. Ainda assim, para Claire, aquele lugar era quase um paraíso escondido. Um instante de alívio em meio ao turbilhão da noite.
Ela afundou-se em uma das cadeiras, exausta, com um prato de comida sobre o colo e a cabeça inclinada levemente para trás. Ao seu lado, Julie sentou-se com a mesma desenvoltura de sempre — as pernas cruzadas e um sorriso preguiçoso nos lábios pintados de vermelho.
— Nossa, eu não sei você, mas estou me sentindo em um reality show de sobrevivência — comentou Julie, dando uma garfada generosa na salada. — O luxo lá fora engana. A gente aqui é que tá na luta.
Claire riu baixo, o riso vindo mais como um sopro do que como som. Os músculos do seu rosto pareciam pesar, como se até sorrir exigisse esforço.
— É… só queria dez minutos pra comer em paz e esquecer que ainda tenho mais três horas de trabalho pela frente — respondeu, a voz arrastada, os olhos semicerrados.
Julie cutucou a amiga com o cotovelo.
— Dez minutos é luxo. Aproveita. E olha, já recebi umas propostas hoje…
Claire ergueu uma sobrancelha, divertindo-se com o entusiasmo da amiga. Julie era o tipo de pessoa que parecia flutuar por entre os problemas, transformando cada situação em uma história divertida para contar depois. Claire, por outro lado, arrastava consigo uma melancolia densa, como se cada passo carregasse o cansaço de mil batalhas silenciosas
— Você não perde tempo, né?
— Óbvio que não! A vida não espera, amiga. E olha… alguns daqueles convidados são bem… generosos.
Ela riu com malícia, e Claire apenas balançou a cabeça, contendo o riso.
— Quantos você aceitou?
Julie fez um suspense teatral, cutucando o arroz com o garfo.
— Alguns… estou fazendo uma triagem de qualidade — piscou. — Não é todo dia que a gente é servido com champanhe e olhares desejosos.
Claire soltou uma risada abafada. Apesar de todo o cansaço, Julie ainda conseguia fazer com que a noite parecesse menos sufocante.
— Você tem um talento especial pra essas coisas, sabia?
— Eu sei — respondeu ela, com falsa modéstia. — Mas e você? Nenhum milionário te sondou ainda?
Claire bufou, divertida.
— Ah, claro. m*l dou conta de equilibrar a bandeja sem derrubar as taças. Super sedutora.
— Você subestima seu charme — provocou Julie. — Aposto que, se quisesse, sairia daqui com o bolso cheio e um carro importado te esperando lá fora.
Claire fingiu espanto, encenando um drama exagerado.
— E tudo isso antes da sobremesa?
— Exatamente! — Julie riu, levando uma garfada à boca. — Mas falando sério… você devia se permitir mais, Claire. Às vezes, você parece carregar o peso do mundo nas costas.
Claire baixou o olhar para o prato quase vazio. A comida estava simples — arroz, carne ao molho, salada fresca — mas, depois de tantos dias vivendo de fast food e bolachas baratas entre um turno e outro, aquele jantar parecia um verdadeiro banquete.
— Essa comida tá boa demais. Tem gosto de… festa de verdade — murmurou, como se saboreasse não só a refeição, mas um raro momento de trégua.
Julie a observou com atenção, notando algo que antes passava despercebido. Claire estava magra demais. As olheiras se acentuavam sob os olhos castanhos, e a forma como devorava a comida revelava mais do que fome — havia carência, privação, exaustão.
— Ei… você tá comendo como se não visse comida há dias — comentou, meio em tom de brincadeira, meio preocupada.
Claire deu de ombros, limpando a boca com um guardanapo amassado.
— É que… às vezes, eu realmente não vejo.
A seriedade no tom de Claire fez Julie endireitar o corpo na cadeira.
— Você tá trabalhando demais, Claire. Precisa se cuidar.
— Eu sei, eu sei. Mas não dá pra parar agora — respondeu, tentando não parecer tão exausta quanto se sentia. — O hospital, o supermercado, o bar… e agora essas festas. Tô juntando cada centavo pro tratamento da minha mãe.
Houve um silêncio breve entre elas. Um silêncio denso, que dizia mais do que palavras poderiam expressar.
— E ela? Como tá?
— Teve uma leve melhora essa semana. Mas é instável, sabe? Cada dia é um susto diferente.
Julie assentiu, respeitando o espaço da amiga. Por mais que fosse expansiva, sabia reconhecer quando não era hora de piadas. Claire era forte. Forte até demais. E, às vezes, quem mais segura o mundo nas costas é quem mais precisa de um abraço.
— Você é incrível, Claire. Só queria que não esquecesse de si mesma no meio disso tudo.
Claire sorriu — um sorriso triste e sincero.
— Obrigada, Ju. De verdade. Você… me ajuda a não enlouquecer.
Julie abriu os braços, teatral.
— Sempre! Sou praticamente sua terapeuta não remunerada.
As duas riram, mais leves. Era esse tipo de troca que tornava tudo mais suportável.
Mas o tempo de descanso acabou rápido demais. Uma supervisora entrou na salinha com o celular na mão e um olhar apressado.
— Pessoal, hora de voltar. A sobremesa será servida em dez minutos, e a equipe precisa estar alinhada.
O grupo começou a se mover, um por um, levantando-se das cadeiras e ajeitando os uniformes com pressa. Claire se levantou devagar, sentindo o peso do corpo puxar os ombros para baixo. Ainda assim, respirou fundo e tentou se reerguer.
Julie lhe deu um tapinha animado nas costas.
— Bora, guerreira. Vamos encantar aqueles milionários antes que encham a cara e comecem a pedir tequila com chantilly.
Claire riu, mesmo sem forças.
— Chantilly é só depois da meia-noite, né?
— Ah, querida, alguns começam bem antes disso — respondeu Julie, piscando com malícia.
As duas seguiram juntas pelo corredor apertado, voltando à linha de frente. O burburinho da festa já podia ser ouvido novamente, como uma onda de glamour prestes a engoli-las outra vez.
Mas Claire não se sentia mais tão sufocada. Algo dentro dela havia mudado naquele pequeno intervalo. Talvez fosse o sabor da comida, a risada de Julie ou apenas o fato de poder respirar — mesmo que só por dez minutos. Aquela pausa breve, embora insignificante para muitos, tinha sido um bálsamo para sua alma cansada.
Ao cruzar novamente as portas de vidro que separavam os bastidores do salão principal, sabia que o trabalho à sua frente seria árduo, que os olhares avaliativos dos convidados continuariam a pesar sobre seus ombros. No entanto, também percebeu algo novo: uma pequena chama de resistência começava a brilhar dentro dela, alimentada pelas palavras de Julie e pelo breve momento de tranquilidade que haviam compartilhado.
Enquanto caminhava entre as mesas, servindo sobremesas elaboradas e recolhendo louças delicadas, Claire permitiu-se observar os convidados com outros olhos. Antes, via apenas suas diferenças gritantes — o dinheiro, o status, o mundo distante ao qual ela jamais pertenceria. Agora, porém, começava a notar nuances humanas: o riso nervoso de uma jovem herdeira tentando impressionar os pais, o olhar melancólico de um homem idoso sentado sozinho em um canto, o tique involuntário de um empresário claramente ansioso.
Cada detalhe parecia contar uma história, e Claire, mesmo sendo apenas uma espectadora, sentia-se conectada a elas de alguma forma. Era como se, por um breve instante, aquelas vidas opulentas deixassem transparecer a mesma fragilidade que ela conhecia tão bem.
No fundo, ela sabia que sua vida não mudaria magicamente. Amanhã haveria outro turno no supermercado, outra madrugada no bar, outra conta médica para pagar. Mas, enquanto caminhava servindo bebidas caras ou sobremesas preparadas por um Chef exclusivo, Claire percebeu que carregava consigo algo que ninguém poderia tirar: a certeza de que, mesmo nos momentos mais difíceis, havia beleza em resistir.