Capítulo 3
JOÃO LUCAS NARRANDO ♟️
Não tive como fugir dessa missão e agora eu estou aqui... sentindo a merdä do meu estômago revirando dentro de mim quando percebi que o avião tinha tocado o solo com um baque seco. Papo reto, por um momento o mundo pareceu desacelerar a minha volta... foi como se tudo tivesse entrado em pausa.
A luz forte do sol atravessava a janela pequena da aeronave tingindo tudo de laranja e dourado, como se até o céu estivesse me testando, sentimento sinistro.
Caralhö meu parceiro.. eu tô no Brasil outra vez depois de nove anos. É estranho a bessa estar de volta. Apesar de ser uma parada mais familiar não deixa de ser desconfortável ta ligado? É muito estranho.
O aeroporto tava movimentado pra cacetë, mas além de eu me mover no automático, minha forma de desembarque foi um pouco diferente dos demais passageiros. Nada de filas comuns ou de passaporte escaneado por máquina. Meu desembarque era por outra porta, outro canal. A carga eram dezesseis pacotes prensados, todos lacrados, dentro de caixas seladas de equipamentos de som, já estava em solo brasileiro antes de mim, vigiada de perto pelos meninos do morro do Miguel, aliado antigo do meu pai. Meu trabalho agora era apenas garantir que ela chegasse onde deveria.. no topo do morro da Rocinha, no domínio do Miguel, onde seria distribuída em partes menores e reintegrada à rota. A parte suja já tinha sido feita, agora vinha a parte mais arriscada, circular no meu próprio país, onde eu era um nome sussurrado por quem sabia demais.
Quando entrei na SUV preta que me esperava do lado de fora, o ar-condicionado me deu um alívio do caralhö pra ser sincero. O motorista, e um cara que chamavam apenas de "Galö", não perguntaram ou disseram nada. Galö só acenou com a cabeça e me ofereceu um cigarro. Recusei, meu estômago tava embrulhado por esse rolê todo de viagem.
— Tudo certo com os pacotes? — perguntei, com a voz baixa.
— Tá tudo sob controle. Os moleques tão com os olhos arregalados desde ontem — ele respondeu, sem tirar os olhos da estrada.
O trajeto até a Rocinha foi silencioso, eu observei o Rio passar pela janela como quem revê um filme antigo. As cores, os sons, o cheiro de maresia misturado com o de escapamento, tudo me consumia numa sensação confusa. Parte de mim queria estar aqui de novo. A outra parte só contava os minutos para sair.
Ao chegarmos ao pé do morro, trocamos de carro e seguimos pelas vielas estreitas com cuidado. Não dava pra subir com veículo chamativo. O carregamento já tinha sido desviado por uma das entradas secundárias escondido num depósito de ração de fachada, onde dois caras cuidavam da movimentação interna. Eu desci da SUV com os óculos escuros no rosto e o capuz puxado até a testa. Mesmo aqui, entre aliados, minha presença não podia chamar atenção.
— Rei — Miguel me recebeu com um sorriso discreto, o corpo encostado na porta de ferro do depósito —. Achei que tu nunca mais ia pisar aqui, parceiro.
— Também achei — respondi, oferecendo a mão. Ele a apertou com firmeza.
Miguel tinha mudado pouco. Estava mais forte, mais maduro, com um cordão grosso de ouro no pescoço e um olhar que sabia demais. Eu confiava nele por dois motivos.. era fiel ao meu pai e sabia que se desse um passo em falso, acabaria morto. No nosso mundo, lealdade é um negócio caro e vital.
Entramos no depósito e as caixas estavam lá, empilhadas no fundo. Um dos moleques abriu uma, deixando à mostra o compartimento escondido com os tabletes, tudo intacto.
— Tá tudo certo. A rota de distribuição tá preparada. Amanhã à noite, metade já tá rodando — disse Miguel com satisfação.
— Ótimo, agora vou subir — falei. — Preciso ir ao Alemão.
Ele me olhou com um misto de surpresa e respeito. Sabia que aquele reencontro não ia ser fácil.
— Quer que eu vá contigo?
— Não pô.. essa parte é só minha.
(…)
Voltar ao Morro do Alemão depois de quase uma década era como abrir uma ferida antiga e enfiar o dedo. Cada beco, cada laje ou cada canto carregava um pedaço meu. Era aqui que eu tinha virado homem, aprendi o valor de uma palavra, o perigo de uma distração e o custo de uma traição.
Subi de moto, pilotando eu mesmo.
O vento batia no rosto, bagunçando o pouco do cabelo que escapava do boné. As vielas tinham mudado, mas a sensação não. Crianças correndo, rádios ligados, pipas no céu. A vida seguia, como se eu nunca tivesse saído. Mas eu sabia que ali, entre aquelas paredes estreitas, ainda tinham lembranças minhas e pessoas que talvez não estivessem prontas pra me ver de novo.
Parei a moto a uma rua da casa, papo reto meu coração batia acelerado, não pelo medo, mas pela dúvida. Como eles iam me receber? Como estaria a Liz? O Rafael? O Noah? A Maitê? A última vez que vi todos eles ainda eram crianças. Hoje estão crescendo no mesmo chão que me moldou, mas sem mim por perto.
Caminhei devagar até a porta, a casa era a mesma, mas com ainda mais luxo que antes, nada mudou em relação a isso.
Entrei.
O cheiro me atingiu primeiro, tava tudo diferente.. Sofá novo, mas os porta-retratos na parede ainda tinham as mesmas fotos antigas, inclusive uma minha, aos 15, com a camisa do Flamengo.
— João? — a voz veio do corredor, fina, incrédula.
Era a Liz.
Quando ela apareceu na porta, meu coração pareceu parar por um segundo.
Ela não era mais a menina de antes.. putä que pariu isso mexeu comigo pra caralhö.. ela tava com o cabelo num loiro mais escuro, preso em um coque bagunçado, usando uma camisa larga e um short simples. Mas os olhos... os olhos eram os mesmos de antes.
— Liz.. — foi tudo o que consegui dizer.
Ela não respondeu. Me olhou por alguns segundos, como se tentasse ter certeza de que era real. Então correu e me abraçou. Forte, com raiva e saudade.
Eu fechei os olhos e deixei aquele abraço me atravessar. O tempo, a ausência, as culpas. Tudo ali, apertado entre dois corpos que se conheciam mesmo depois de tantos anos.