Me despeço de Melissa depois de prometer que se as coisas ficassem muito complicadas, eu pegaria as minhas coisas e me mudaria com ela para Nova York.
Era tão tentador me afastar de tudo e esquecer os problemas que deixaria para trás. Mas, no fundo, sabia que estes problemas não ficariam em Madrid, iriam me perseguir, enraizados na minha alma, como sempre estiveram a mais de dez anos.
E, embora eu nunca admitisse isso, uma pequena chama de esperança queimou nas profundezas escuras do meu coração, esperando que o meu retorno significasse algo.
Talvez uma chance de apagar as cicatrizes que me impediam de andar ereta.
Eu sou estú*pida e ingênua! Desde quando o destino faz algo por mim que eu não faço?
Desde nunca... E como prova, tenho um homem me esperando ao pé da minha cabana.
Aquele em que não pisei desde que saí ontem para o casamento da Melissa.
— Vejo que você está recuperando o tempo perdido. Enzo sussurra, escondendo a raiva nos seus olhos por trás de um par de óculos escuros.
— Bom dia para você também. Eu o cumprimento enquanto subo os degraus para a varanda, nem mesmo parando. Não estou com vontade de sofrer outro ataque de ciúmes, principalmente agora que não somos mais nada.
— Jacob sabe que você está aqui na Jamaica e ele continua perguntando sobre você.
Ao nomear a criança, os meus pés afundam no chão. Afogo a dor que me faz lembrar daquele carinha que ganhou o meu coração, e ainda conseguiu me fazer acreditar que eu não era uma pessoa tão r**m assim.
— Achei que seria bom você ir ver ele. Enzo continuou. — Mas depois do jeito que você chegou, parecendo que passou a noite na farra com alguém, mudei de ideia. Quanto antes ele te esquecer, melhor para ele.
Fico de costas, sem enfrentar as suas reprovações. Desde que Pablo voltou, demorei mais do que o normal para esconder os meus sentimentos sob o papel de uma mulher fria, distante e sem emoção.
Estaria mentindo se dissesse que não lamento que a pessoa com quem convivi nos últimos dois anos transformou todo o amor que jurei ter em ódio e rancor.
Baby, é sua culpa por contar a ele seus segredinhos sujos.
A minha consciência bruxa restante me lembra por que Enzo pensa tão m*al de mim e, com o meu sorriso mais artificial, recupero as forças para enfrentá-lo.
— Você está certo Enzo. O melhor será que você e Jacob me esqueçam o mais rápido possível. Ambos sabemos que não valho a pena.
Enzo dá dois passos na minha direção e eu faço o mesmo na direção oposta.
Ele me conhece melhor do que eu penso. Ele sabe que sou pura postura e quando nota como mexo inquieta nas pulseiras do meu pulso, tenho consciência de que percebeu o meu nervosismo e a dor que esta situação me causa.
— Sinto muito por termos acabado assim. Enzo aponta para nós dois com a mão antes de escondê-la nos bolsos da calça, tentando controlar a vontade de me tocar.
— Sinto muito por começarmos. Sou honesta com ele. Não deveria ter tentado, não deveria ter tentado a sorte quando está claro que o amor não está do meu lado. — Eu nunca quis te machucar. Eu asseguro a ele. — Juro que tentei com todas as minhas forças, mas você sabe porque não sou boa para você nem para ninguém.
— Por isso fiz isso, María... Por isso falei com o Pablo antes de sair de Madri.
— Você fez o que?! Eu começo a hiperventilar. — Por favor, me diga que você não contou a ele. Você jurou para mim que nunca contaria a ninguém! Eu grito.
— Eu te dei a minha palavra que levaria o seu segredo para o meu túmulo. Ele me lembra ofendido.
— Então? Eu consigo perguntar enquanto mergulho a minha mão no meu peito tentando evitar que o meu coração salte.
— Eu tive que dizer a ele que você e eu não somos um casal... Que ele tinha carta-branca para tentar...
— Tentar o que?! Eu exclamei, chateada. — Me(rda, Enzo, você realmente vai bancar o casamenteiro entre Pablo e eu?
— Eu te amava, Maria. Ele me assegura com convicção. — E tem mais! Acho que ainda te amo.
As suas palavras reviram o meu estômago com uma mistura indigesta de remorso e tristeza.
— Enzo, isso não é necessário...
— Por favor, deixe-me terminar. Ele implora. Eu sei que a mulher por quem me apaixonei não existe, mas não acho que você seja uma má pessoa. Não concordo com as decisões que vocês tomaram e embora jamais quebrasse a minha promessa, não posso ficar de braços cruzados sabendo da injustiça que está sendo cometida.
— O que você quer dizer? Eu pergunto confusa.
— Depois de pensar muito nisso, acho que se alguém pode te fazer feliz, é o Pablo. Ele foi a origem de tudo e também pode ser a cura. Fazendo uma pausa antes de continuar, Enzo tira os óculos escuros e fixa os seus olhos esverdeados nos meus. — Maria, a vida está te dando uma chance de ser honesta com ele.
— Honesta com ele? O que Paulo ganharia por conhecer a verdade? Que po*rra! O que eu ganharia confessando os meus pecados?
— Paz, Maria, você ganharia a paz que te impede de ser livre.
— Sou muito livre, Enzo. Eu digo ironicamente, não concordando com as minhas próprias palavras.
— Você pode mentir para si mesmo pelo tempo que quiser. Da minha parte, dormirei tranquilo sabendo que fiz todo o possível para que aquele homem soubesse a verdade. Eu gostaria de saber se fosse ele.
Enzo sai sem me dar chance de me defender. Mas eu poderia? Eu teria alguma defesa? Sei perfeitamente a resposta a ambas as perguntas e sentada nos degraus da minha cabana, deixo o sol seguir o seu curso no céu enquanto tento guardar todos os sentimentos, que me fazem sentir miserável, naqueles cofres em que me escondo. No fundo da minha mente, longe do meu alcance.
Só assim poderei me levantar, sacudir a areia dos pés e sorrir para a vida, apesar de ela gostar de me fazer tropeçar.
...
De volta a Madri, uso todas as horas do voo para refazer os meus passos e ver que erros me levaram a este momento.
O principal foi tentar ter uma relação estável com o Enzo... Acreditar que depois de quinze anos eu poderia ter algo mais sério do que uma fo*da fixa, daquelas que não são amigos nem nada, mas que resolvem o calor do momento .
Estava ficando cada vez mais difícil para mim memorizar o nome do cara que estava na minha cabeça na época. Eles estavam misturados um com o outro e chamá-los de "querido" e "amor" era pesado para mim.
Mas você não esquece dele! O meu eu menos sacana me lembra, o único meio-sensato que resta na minha cabeça. Porque a minha consciência está fugindo com o meu Grilo Falante há anos.
Eles me declararam um caso perdido, jogaram a toalha comigo e eu não os culpo. Eu teria desistido muito antes.
Pelo menos posso contar com aquela parte de mim, aquela que ainda tem um pouco de decência desde que eu não a afogue no álcool, e que não para de me sussurrar que o problema, mesmo, ainda é ele... Pablo filho da pu*ta.
Encontrá-lo foi pior do que a peste. Ele destruiu tudo no seu caminho.
Aquele galã atormentado, que vinha da cidade com o seu violão como único bem, foi um perigo que me atraiu desde o momento em que o meu pai o apresentou a mim.
Eu me apaixonei por seus encantos assim que ele entrou na sala da minha casa e me olhou com aqueles olhos castanhos que brilhavam como ouro quando o sol batia neles. Eu e toda a vizinhança ansiamos por ele. Não houve adolescente, mulher ou homossexual que não caísse aos pés do Pablo.
E tudo piorou quando o meu pai deu a ele seu velho Derbi para que ele pudesse se locomover por Madri. O que Pablo precisava para abaixar a nossa calcinha, uma moto pela qual arrancamos as nossas unhas tentando andar nela.
Bem, elas conseguiram. Porque, naquela época, eu era invisível. Ela era apenas filha do amigo da família que o acolheu em casa enquanto ele estudava para a Polícia Nacional.
Eu não era ninguém, e era assim que eu tinha que ficar. Invisível, camuflada com o papel de parede da parede.
Eu gostaria de nunca ter andado naquela moto.
Eu gostaria que ele nunca tivesse me levado àquele show.
Eu gostaria que ele nunca tivesse me beijado.
Um beijo envenenado que mudou tudo.