SORAIA
O meu coração quase saiu pela boca. Eu tava indo buscar um copo d'água na cozinha quando ouvi vozes baixas na varanda. Era Tito e Jacaré. E o nome que cortou o ar, sussurrado com uma raiva contida, foi "Lobo".
Fiquei paralisada atrás da porta, a respiração presa. Cada palavra era um prego no meu caixão.
— Tu não acha que ele tá de olho na minha mulher não? — a voz do Tito, um rosnado baixo.
Meu sangue gelou.
Ele tinha percebido.
Claro que tinha percebido.
O Tito pode ser um animal, mas o instinto de posse dele é aguçado como uma lâmina.
O Jacaré tentou acalmar, mas aí soltou a bomba:
— Uns dias atrás, eu peguei ele no seu escritório.
Quase gritei. O escritório? O que o Lobo estava fazendo lá?
A conversa continuou, e eu ouvi a ordem final, a sentença:
— Fica de olho nele. Dobrado. — E a ameaça, clara como um tiro: "não vai sobrar pedaço dele."
Saí de perto da porta com as pernas tremendo. O medo era um peso morto no meu peito. Tito desconfiado é a pior das combinações. Ele é imprevisível, violento, e quando o ciúme entra na jogada, a razão vai pro espaço.
Mais tarde, ainda atordoada, fui pegar um cobertor no armário do corredor. E foi quando ele apareceu.
O Lobo.
De repente, ele estava ali, na outra ponta do corredor escuro, como se tivesse materializado da minha ansiedade.
Nossos olhos se encontraram no silêncio. E não foi um olhar qualquer.
Foi um choque.
Naqueles olhos escuros, eu li tudo.
— Eu sei o que está acontecendo. — eles diziam. — Eu ouvi. Sei que ele desconfia.
E havia algo mais... uma determinação, uma frieza que deveria me assustar, mas que, inexplicavelmente, me acalmou. Era a certeza de que ele não era um alvo indefeso. Era um predador igual, talvez até pior.
Nenhuma palavra foi dita de fato.
O ar entre a gente parecia vibrar, carregado de segredos, de perigo, de uma conexão que era surreal, nascida no meio do inferno.
Foi só um instante.
Ele desviou o olhar e seguiu seu caminho, sumindo na penumbra. Eu fiquei lá, encostada na parede, o coração batendo descompassado. Aquele olhar tinha me dado uma mensagem clara: a tempestade estava vindo, e nós dois estávamos no olho do furacão.
Precisei me acalmar.
Fui até o quarto do Evandro.
Ele já estava dormindo, mas não em paz. Seu rostinho estava contorcido, e ele se mexia na cama, preso em um pesadelo.
— Mamãe... — ele sussurrou, a voz um fio cheio de angústia. — Mamãe, o papai vem nos buscar. Ele vai nos achar, mamãe!
Lágrimas escorriam pelos cantos dos olhos fechados dele. Aquele "papai" não era o Tito, ou era?
Meu coração se partiu ali.
Ajoelhei ao lado da cama e comecei a acariciar seus cabelos, suavemente.
— Ei, meu amor, é um sonho... calma, é só um sonho — sussurrei, tentando trazer ele de volta.
Ele acordou de repente, com um sobressalto, os olhos arregalados de terror. Quando me viu, se jogou no meu colo, chorando.
— Foi um sonho r**m! — ele soluçou, seu corpinho tremendo contra o meu.
Foi nesse momento que a porta do quarto se abriu. Tito estava lá, sua silhueta enorme enchendo o vão da porta.
— O que tá pegando? — ele perguntou, sua voz áspera quebrando a i********e do momento.
Ele se aproximou, e eu senti o corpo do Evandro endurecer de medo.
— Ele teve um pesadelo. Ainda está assustado — expliquei, mantendo a voz o mais neutra possível.
Tito olhou para o menino, e então, para minha surpresa absoluta, ele... se sentou na cama.
Ele estendeu os braços.
— Vem cá, moleque.
Evandro hesitou, seus olhos cheios de lágrimas me procurando, buscando permissão. Eu, com o coração na mão, balancei a cabeça quase imperceptivelmente. Ele se moveu devagar, e Tito o pegou do meu colo, sentando ele em seu próprio colo. Foi a cena mais bizarra que já vi. Tito, o brutamonte, segurando uma criança assustada.
— Você não precisa ter medo de nada — Tito disse, sua voz um pouco menos áspera. — Não tem criança mais bem protegida nesse morro do que você.
Havia um estranho lampejo de algo que parecia carinho em seus olhos. Era assustador, porque era genuíno, mas vindo daquela fonte, parecia errado.
Doente.
Foi então que Evandro, na sua inocência e ainda sob o efeito do pesadelo, soltou a bomba. Ele olhou diretamente nos olhos de Tito e disse, com uma voz pequena e trêmula:
— Eu queria a minha mãe.
O clima no quarto mudou instantaneamente. O que quer que tivesse de brando no olhar de Tito se apagou, substituído por uma escuridão familiar e aterrorizante. Seus olhos escureceram, as linhas do seu rosto se endureceram. Ele levantou o menino como se fosse um pacote e o devolveu ao meu colo, com um movimento brusco.
— Sua mãe não vai mais ficar com você — ele cuspiu as palavras, cada uma um golpe. — Já te disse que sua mãe agora é a Soraia. Não quero mais ouvir falar na sua mãe.
Ele se virou e saiu do quarto, batendo a porta com uma força que fez as paredes tremerem.
Evandro voltou a chorar, um choro abafado e desesperançoso agora.
— Calma, querido, ele não vai fazer nada com você — tentei acalmar ele, sabendo que era uma mentira.
Tito faria qualquer coisa.
— Eu quero a minha mãe — ele repetiu, um lamento que vinha da alma.
— Eu sei, eu sei... — segurei ele mais forte. E então, a curiosidade e um instinto maternal que não conhecia até aquele momento falaram mais alto. — Me conta sobre ela? Talvez falar sobre ela seja bom pra você.
O menino olhou para mim, seus olhos cheios de medo.
— Ele disse pra eu não falar sobre ela.
— Ele não está aqui — sussurrei, encorajando ele. — Eu não vou contar pra ele.
Eu sempre quis saber.
Quem era a mulher que deu à luz essa criança? Será que ela estava viva? Sofrendo? O que Tito tinha feito com ela?
Evandro pareceu pensar, lutando contra a programação de medo que Tito havia implantado nele. Finalmente, ele sussurrou, quase inaudivelmente:
— Minha mãe é muito bonita, tem cabelos pretos compridos, olhos grandes, sabe cozinhar tudo o que eu gosto. Ela faz carinho na minha cabeça e conta história até eu dormir. Meu pai diz que ela é a melhor mulher do mundo.
Cada palavra era uma facada.
Era a descrição de uma família. Uma família real, amorosa, que tinha sido destruída. Mas se ela era a "melhor mulher do mundo" pro Tito, por quê ele me mantinha como sua fiel?
— Então o Tito ia muito na casa de vocês? — perguntei, tentando entender a conexão. — Onde vocês moravam?
Evandro balançou a cabeça, confuso.
— O Tito nunca foi na minha casa.
Ele arregalou os olhos imediatamente depois, como se tivesse deixado escapar um segredo mortal. Ele tampou a boca com as mãozinhas, o pânico estampado no rosto.
Mas para mim, foi como se uma luz tivesse se acendido.
"O Tito nunca foi na minha casa."
"Meu pai diz que ela é a melhor mulher do mundo."
As peças se encaixaram com um estalo silencioso e devastador na minha mente.
O Tito roubou esse menino.
Ele não era filho do Tito.
Tito havia sequestrado essa criança de uma família normal, em algum lugar. Arrancou ele dos braços de uma mãe de cabelos pretos e de um pai que a chamava de melhor mulher do mundo.
Agora eu tenho certeza.
Mais do que nunca.
Não insisti.
Ele já tinha falado o suficiente por uma noite. Já carregava um fardo grande demais para alguém tão pequeno.
— Tudo bem, meu amor — disse, deitando ele de volta na cama e puxando o cobertor. — Tudo bem. Pode dormir. Vou ficar aqui até você pegar no sono.
Ele me olhou, ainda assustado, mas a confiança que ele tinha em mim – a falsa mãe – era a única coisa que restava. Ele fechou os olhos, e eu fiquei sentada no chão, ao lado da cama, observando seu peito subir e descer.
Minha mente, no entanto, estava em tumulto. Tito era um monstro de um calibre que eu nem imaginava. E o Lobo... o que ele tinha a ver com tudo isso? Será que ele também estava atrás da verdade? Será que ele era... não, não podia ser.
Mas o olhar dele no corredor... aquele olhar que sabia de coisas.
O perigo agora tinha um novo sabor.
Não era mais só sobre mim, ou sobre o Lobo. Era sobre uma criança roubada e uma família destruída. E eu, sem querer, tinha me tornado parte disso. E não sabia mais de que lado ficar, ou se havia um lado seguro para se ficar.