LOBO
Passaram-se dois meses desde que a voz da Joana se perdeu no fio do telefone e o carro da gente virou cinza. Dois meses que já deviam ter virado dias, e, ainda assim, cada manhã parecia arrastar uma eternidade.
Foi tempo suficiente pra aprender a andar como quem não chama atenção, pra trocar o sotaque, pra deixar a farda guardada na mala debaixo da cama de casa e recolher uma cara mais "comum", de quem já tomou muito sol e comeu pouco pão. Tempo suficiente pra aprender a rotina do morro, a cara dos homens que mandam, a hora que fecha, a hora que abre, a hora que respira. Tempo suficiente também pra me instalar como mais um cara ali — o Lobo que ninguém tava esperando.
Hoje é o primeiro dia que eu passo no QG do chefe. Digo “QG” porque aquilo funciona como tal: um núcleo de comando onde a música baixa, as conversas secam e o mundo gira do jeito que o dono manda. Meu objetivo é simples e c***l: chegar o mais perto possível do Tito o dono do morro. Saber onde ele vai, o que come, com quem fala. Conseguir uma infiltração limpa — e, quando der, uma prova. Ou um tiro, caso a prova não apareça.
O homem que me trouxe até aqui atende por Jacaré — sub do Tito, cara de poucos sorrisos e pulso firme. Ele me contratou como segurança pra mulher e pro moleque do chefe. Me apresentou o trabalho assim, sem cerimônia:
— Ela não é muito de sair, tá ligado? Mas quando ela precisar sair você vai junto. No geral tu vai ficar na casa de olho nos dois. — Ele falou já me tirando do QG e me levando pra casa do dono do morro.
Senti o cheiro da gasolina do carro, o funk abafado pelo vidro, os pneus subindo a ladeira. Não falei nada, só assenti. Dentro de mim, martelava a imagem do carro queimado, do corpo da Joana que eu não tinha visto, do Miguel que eu não sabia onde estava. A raiva era uma lente que deixava tudo em foco.
— Olha, o segredo pra tu se dar bem nesse trampo é não se meter. O chef é bruto com ela, então se prepara pra ter sangue frio e não se meter nas brigas. O moleque é tranquilo, mas vai começar a escola aqui no morro e tu que vai ter que levar e trazer, mas presta atenção a mulher do chefe tem que tá junto sempre. — O Jacaré disse enquanto dirigia o carro pro topo do morro.
As palavras eram instrução e ameaça ao mesmo tempo. Ele falava como quem entrega um pacote pesado: “cuida e não pergunta”. Eu concordava com a cabeça, mas por dentro já traçava caminho diferente: “chegar perto, ver, memorizar, expor”. Ser o segurança dessa família era um bilhete de entrada perfeito.
Quando a gente chegou, a casa se apresentava como uma contradição: por fora, concreto comum, grafite raso; por dentro, chic e minimalista, um jeitão que o dinheiro do tráfico às vezes ostenta quando quer fingir normalidade. Subimos pro andar de cima e tinha uma porta com chave do lado de fora — detalhe que me fez prestar atenção: controle de saída, isolamento. O Jacaré girou a chave e abriu.
Uma moça bem jovem veio correndo, os olhos dela brilhando de alegria e esperança ao ver o homem que entrou apenas um passo dentro do quarto escuro. Não sei se é normal — ficar presa — mas ela parecia desconfortável.
A mulher tinha uma beleza frágil, aquele tipo que resiste mesmo quando a vida empurra lajes em cima. Havia algo de raro nela: um brilho que conflituava com o cansaço estampado no rosto. Era como se ela tivesse mais vontade de sorrir do que medo.
— Jacaré, ainda não comemos o menino, até dormiu — ela falou apontando pro colchão improvisado no chão, onde uma criança pequena tinha os ombros subindo e descendo devagar, coberto como um tesouro. — pega umas quentinhas pra gente por favor.
Jacaré bufou, trocando o olhar comigo como quem transfere responsabilidade.
— Dona Soraia não faz isso comigo, o chefe me mata. Só vim te apresentar o Lobo, seu novo segurança. Ele vai ficar aqui do lado de fora. — Ela ia dizer mais alguma coisa mas ele fechou a porta girando a chave.
O estalo da fechadura foi mais forte do que a porta. A sensação que tive era de colocar o pé dentro de uma jaula. Olhei pro Jacaré. Ele deu de ombros como quem diz “é assim que funciona” e seguiu pelo corredor. A casa parecia maior sem as vozes do lado de fora; o silêncio ganhou as frestas.
— Ela fica presa no quarto com o filho? — perguntei, numa voz baixa, controlada.
— Ela deve ter aprontado alguma coisa... bom, não interessa né. Mas não dá comida pra ela se o chefe não dizer nada. — Ele respondeu seco, como se essa fosse a lei.
Nos despedimos e eu fiquei parado na porta do quarto dela, as mãos no coldre improvisado que eu havia deixado por fora, observando. Lembrei da moça — Soraia — como ela correu pra porta e voltou a se ajeitar, meio envergonhada de trocar de pose, como se uma câmera invisível acompanhasse cada gesto dela.
Eu sou bom em ler rostos. Anos de observar alvos me deixaram com uma espécie de banco de expressões: medo, raiva, tristeza, mentira, rendição. Soraia carregava medo e uma paciência treinada. Senti um nó no peito, que não era de surpresa — já tava acostumado com crueldade — mas sim de oportunidade: se eu queria chegar ao Tito, precisava entrar pelo buraco que ele menos vigiava: o coração da sua casa.
Fiquei na porta por um bom tempo. Mas resolvi estudar a casa. Observei a casa toda, as pequenas coisas que dizem mais que palavras: um quadro torto na parede, brinquedos ainda embrulhados num canto, uma prateleira limpa demais. Havia uma cozinha aberta, bancada de mármore, panelas sem cheiro de comida — sinal que o cozinheiro não tava trabalhando muito. Tudo calculado. Tudo controlado.
— Quem é você? — uma voz grossa ecoou. — O que tá fazendo?
— Sou o Lobo, segurança da dona Soraia. — eu disse encarando o homem alto, tatuado e de olhar frio, que só podia ser o tal Tito.
Ele me encarou, me medindo, os olhos estreitos, parecia duvidar do que eu disse.
— O Jacaré que te mandou, né? Já conheceu a fera? — Ele disse apontando com a cabeça pro andar de cima.
— Sim, senhor. Eu estava fazendo o reconhecimento da casa. — Eu disse com medo de ser descoberto logo no primeiro dia.
— Fica a vontade mas não exagera. — Ele me alertou e subiu as escadas.
Sentei numa cadeira do corredor e fechei os olhos por alguns segundos. Respirei devagar, como em dia de espera antes do disparo. Controle. Disciplina. A voz do meu pai me veio de novo, como sempre.
“A mira precisa de calma.”
Eu repeti mentalmente, não como técnica de tiro, mas como mantra pra não deixar a fúria tomar a mão.
Senti passos na escada.
Era Soraia vindo em minha direção.
Ela andava devagar, os lábios semicerrados, como quem carrega conversa e culpa. Parou um pouco antes de mim. Me olhou de cima a baixo, avaliando se eu era ameaça ou alívio. Não era frescura, era curiosidade pronta a se transformar em reclamação.
— Tu vai ficar aqui então? — ela perguntou, voz baixa, transtornada de sono.
— É. Vou ficar por aqui. — Respondi.
A simplicidade da frase era armadilha; eu não podia me revelar muito. Meu sotaque estava medido, o olhar neutro. Tudo planejado.
Ela inclinou a cabeça. Ainda tinha aquela faísca de esperança, como se ver um rosto novo fosse sinal de que o mundo poderia melhorar. Me lembrou da Joana num espelho que a vida quebrou. Por um segundo, quase cedi ao impulso de dizer “meu nome na verdade não é Lobo e sim Bernardo, só por ódio”, mas sabia que todo cuidado era pouco.
O menino chorou alto e depois parou, dormindo como se tivesse dormido novamente. O som era um lembrete: rotina ali é jogo de quem tem poder. Eu não queria ser reconhecido. Eu queria ser parte do cenário, um móvel que se move quando necessário. Segurança que não pergunta, que não se mete. Do jeito que o Jacaré disse.
— Ele vai começar à escola aqui no morro, né? — perguntei, devagar, fingindo naturalidade.
— É. Vai começar. Tu que vai levar e trazer, mas sempre comigo junto.. — Soraia respondeu, mais confusa agora que insistia em entender regras.
Permaneci em silêncio, analisando. A escola dentro do morro era ponto de contato perfeito: saída, retorno, horário fixo, possibilidade de conversas e observações. Transporte de criança gera rotina — rotina é o que eu precisava.
A noite desceu rápido. O morro mudou de rosto: a luz era outra, as vozes mais baixas, os patrulheiros mais atentos. Me senti pequeno e ao mesmo tempo mais perigoso do que nunca. Estava no núcleo. Estava a alguns passos do dono.
Depois que o Tito saiu novamente, eu voltei pro andar de cima e fiquei na porta do quarto que agora estava aberta. Observei a Soraia acomodar o cobertor, ajeitar o menino. Enquanto ela vinha e ia com movimentos que mostravam cansaço e medo, eu abria o bloco de notas mental: rotas de saída, horários, nomes que ouvi no QG, gestos do Jacaré. Tudo viraria mapa. Tudo viraria vantagem.
Quando a casa se silenciou, senti a mira se fechar. Não a do rifle, mas a da minha vontade. Eu estava onde precisava estar. O problema é que estar numa jaula me lembrava que, pra vencer, eu teria de aprender a brincar com as correntes.
Fechei os olhos por um instante e deixei a escuridão me engolir. Pensei na Joana, no Miguel, no cheiro do carro queimado que eu não conseguia tirar do olfato. Pensei em como cada dia ali seria construção lenta de confiança alheia. Pensei em quantas vozes iam tentar me amarrar.
Amanhã eu saio com o menino pra escola, com a Soraia junto. Vou escutar, vou guardar, vou fingir. Vou respirar o mesmo ar que eles respiram. Vou fazer o jogo deles parecer natural enquanto, por dentro, eu caço.
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