Quando eu abri os olhos, estava pendurada de ponta cabeça pelos pés, colada no teto da mesma casa que eu havia sonhado dias atrás. As cordas magicamente sumiram mas eu conseguia andar no teto. Meu cabelo longo estava como se estivesse em pé. Eu desci pela parede até o chão como se fosse perfeitamente normal andar pelas paredes de uma casa. Caminhei pela casa até a sala que continuava alagada. Dessa vez, um peixe muito grande nadava ali, e ele tinha olhos de ser humano. Um peixe com olhos de ser humano! É muita viagem.
Continuei entrando nos cômodos da casa. Dessa vez, não me dirigi ao porão. Na verdade, encontrei uma porta antes do porão que parecia muito interessante. Quando abri, uma festa estava acontecendo, com muita, muita gente. Era difícil passar pelas pessoas, mas eu consegui. Quando cheguei exatamente no meio da festa, encontrei Blake. Ele estava com um moletom vermelho de touca, apenas se mexendo no ritmo da música. Quando ele virou de frente pra mim e me viu, sorriu. Os olhos dele passaram de azuis, para completamente pretos. As mãos dele viraram tentáculos, e ele me segurou com muita, muita força. Um dos tentáculos apertava meu pescoço até me sufocar.
Acordei com o coração completamente acelerado, olhei pro relógio e ainda faltavam alguns minutos antes do alarme despertar. Decidi levantar, já que já havia acordado. Passei o dia pensando nesse sonho, o que me fez pegar o caderno de desenho e desenhar o monstro em que Blake havia se transformado. Aquela imagem não saía da minha cabeça.
Durante a aula, alguns dos sintomas da síndrome do Pânico começaram a aparecer. Tentei me controlar, mas percebi que não estava adiantando e mandei uma mensagem para o terapeuta. Ele falou que eu precisava tomar o comprimido de emergência. Lana percebeu e assim que eu saí da sala, ela me seguiu. Abri minha bolsa e peguei meu calmante de colocar embaixo da língua, que controla as crises de Pânico. Meu coração lentamente foi se acalmando, mas infelizmente, eu senti uma forte pressão no peito. Sentei no banco e nem vi que Lana estava por perto. As imagens ao meu redor começaram a se reduzir a **. Eu só não chorei, porque estava medicada. Lentamente o comprimido foi fazendo efeito e meu corpo começou a recuperar os sentidos. Meus olhos estavam perdidos e eu me senti assombrada. Fazia algum tempo que eu não tinha esse tipo de crise, mas essa veio com tudo. Liguei para minha mãe, mas ela não atendeu. Consegui contato com meu pai e ele disse que me buscaria na faculdade, em alguns minutos. Ele saiu do serviço e veio o mais rápido que pode.
Não demorou muito para que eu estivesse deitada no sofá da casa do meu pai, coberta por um dos cobertores que usava quando era criança. Minha mãe ligou, mas como eu não atendi, ela acabou ligando para ele. Apesar de todos os problemas que eles tiveram, ainda se respeitavam o suficiente pra conversar sobre mim.
Ouvi meu pai dizendo que eu estava com o olhar perdido ainda, mas que eu estava bem. Ele conseguiu tirar o dia de folga para ficar comigo enquanto eu me recuperava. Na real, por um lado os comprimidos de emergência são ótimos, mas por outro, você se sente como um bebê com sono. Ele garantiu para minha mãe várias vezes que estava tudo bem, e que ele cuidaria de mim.
Tudo voltou a ficar escuro. Mas dessa vez, eu só estava dormindo.
Eu acordei quando já era quase manhã do dia seguinte. Meu pai estava adormecido no sofá menor, minha mãe estava adormecida na mesa de jantar da sala. Havia uma caixa de esfihas em cima da mesa, e minha mãe e meu pai ainda estavam com a roupa do dia anterior. Eu levantei e meu pai acordou assustado.
—Filha... Tudo bem? — Eu balancei a cabeça e sentei perto do meu pai, que me abraçou com carinho e deu um beijo no topo da minha cabeça. Minha mãe ouvindo a pequena movimentação também despertou. Ela se aproximou de nós dois e me abraçou enquanto meu pai também me abraçava.
— Estamos aqui por você, querida. Nosso amor por você não mudou. — Meu pai concordou com a cabeça.
— Isso mesmo. — Ele disse. Eu apenas curti o momento de carinho.
Apesar de ter quase vinte e dois anos, para eles, eu serei sempre uma menininha. Eu não me importo porque me sinto protegida. Eles me dão liberdade e ao mesmo tempo estão ali para me proteger, cuidar e zelar. Apesar da separação recente dos dois, eles continuam cuidando de mim como se estivessem juntos. Eles se separaram um pouco antes do meu aniversário de vinte e um. Sempre dizem que mantiveram o respeito por mim, porque a separação foi meio tensa. Minha mãe se envolveu com um cara do serviço e meu pai descobriu. Eles brigaram muito no dia, e meu pai foi embora de casa.
Minha mãe ajeitou as coisas e perguntou se eu queria ir pra casa me ajeitar, ou se eu ficaria por ali mesmo... Eu disse que queria viver o dia normalmente, então fomos pra casa. Tomei um banho, me troquei e segui para a faculdade.
Quando a Lana me viu, correu para me dar um abraço apertado. Perguntou se eu estava me sentindo bem e eu assenti. Fomos pra aula, e eu segui tentando fazer tudo como sempre, e fui conseguindo levar o dia.
Na hora do almoço, eu e Lana sentamos em uma mesa qualquer e logo Blake entrou no refeitório, com os novos amigos do time de vôlei da faculdade. Ele me viu de longe e veio ao meu encontro, sentando na minha frente. Ele esticou a mão e segurou a minha.
— Fiquei sabendo que você se sentiu m*l ontem. Eu fui te procurar na sua sala pra almoçar com você... A Lana me avisou. Você está se sentindo melhor? — Ele apertou um pouco mais minha mão, como se tentasse me confortar.
— Eu te avisei que também tenho meus demônios, Blake. — Eu apenas sorri, em um tom de brincadeira.
— Topa dar uma volta depois do meu treino hoje? — Ele falou, ainda olhando com aqueles grandes olhos azuis.
— Eu saio do laboratório umas cinco da tarde, se você quiser... Podemos nos ver. — Ele sorriu ao ouvir minha resposta.
— Passo lá no prédio esse horário. — Ele disse e se levantou. — Eu combinei de almoçar com os meninos para resolver algumas coisas. Qualquer coisa, me manda mensagem. — Ele falou e se levantou. Antes de ir embora, ele deu um beijo no topo da minha cabeça e saiu.
Eu e Lana observamos o rapaz se afastar e ir até a mesa onde os amigos estavam sentados. Eles abriram espaço e logo eu desviei o olhar. Quando olhei pra minha amiga, ela ainda olhava pra mesa do time.
— Uma mesa com seis homens gostosos. Olha, eu daria pra qualquer um deles. Inclusive pro Blake. — Ela disse, dizendo a última frase em tom de brincadeira. Eu apenas ri. Meu desânimo com o assunto e com todo o resto das coisas do dia era visível.
— Ele é um sonho, não é? — Eu falei. Ela aproximou o rosto do meu ouvido e falou como se fosse um segredo.
— Sonho é o amigo dele, o Peter. — Ela se afastou de mim e pegou o celular.
Depois de abrir uma conversa com o nome do garoto a quem se referiu, ela passou o celular pra mim, mostrando o garoto completamente sem roupa. A única coisa que impedia o garoto de estar pelado era uma toalha que ele literalmente pendurou... No pênis. Caí na gargalhada.
— Amiga, ele te mandou isso e você achou sexy? — Ela também estava rindo.
— Claro que não! Ele é um i****a. Mas é muito gostoso, olha esse tanquinho. — Ela ampliou a foto e me mostrou novamente. Tudo que eu conseguia ver era a toalha em cima do pênis aparentemente duro, como se fosse um cabideiro. E eu não conseguia parar de rir. Pela primeira vez no dia, eu consegui rir de verdade.
Depois de algumas horas no laboratório, terminei de analisar algumas lâminas e fotografar. Mostrei para a orientadora o progresso do trabalho e pedi desculpa pela ausência no dia anterior, e ela foi bastante compreensiva. Desde que entrei, ela já sabia que eu era muito esforçada, mas que eu tinha um histórico de depressão e síndrome do Pânico. E mesmo assim por conta do meu histórico, com boas notas, ela aceitou me dar a bolsa no laboratório.
Depois de me despedir dela, saí pela porta e Blake já estava lá, parado encostado na moto. Ele me recebeu com um abraço demorado e um beijo no topo da cabeça. Ele continuou com a cabeça encostada em cima da minha, cheirando meu cabelo. Eu sorri em sentir o carinho. Não queria sair mais daqueles braços fortes. Era confortável e sincero.
— Tudo bem, linda? — Ele perguntou, enquanto se afastava brevemente de mim, apenas para olhar meu rosto. Eu respondi que sim baixinho e voltei a me enfiar nos braços dele, o abraçando com força. Ele retribuiu o abraço e soltou uma risadinha. — Se você quiser, podemos ficar assim a noite toda. — Eu sorri.
— No momento, Blake... Não era só um abraço que eu queria. Mas eu não quero falar sobre isso. — Eu falei e ri. Nos soltamos e ele me entregou um dos capacetes.
— Vamos. Vou te levar pra dar uma volta. — Ele disse e eu coloquei o capacete.
Logo que ele subiu na moto, eu subi também. Abraçar ele e andar em uma estrada em alta velocidade me fazia sentir viva. Eu sorri pra mim mesma. Foram cerca de vinte minutos na estrada até entrarmos em uma pequena cidade ao lado da nossa. Ele estacionou a moto para abrir uma porteira de fazenda e logo subiu novamente e eu fiz o mesmo. Quando entramos na propriedade, ele estacionou em um lago bem iluminado, com alguns bancos vazios. Deixamos os capacetes em cima da moto e fomos até um dos bancos, onde sentamos. Ele tirou dois sanduíches da mochila, um deles com a palavra "veg" estampada. Ele me entregou e sorriu.
— Você lembrou que eu não como carne, uau. — Eu falei. Ele sorriu.
— Aquele dia que nós conversamos sobre isso... Eu prestei atenção, tá vendo? — Eu sorri.
Depois de conversarmos por duas horas e comermos o lanche, a conversa começou a tomar um rumo mais íntimo.
— Alguma garota que você só beijou... Acabou morrendo? — Eu perguntei. Ele riu.
— Não matei ninguém só beijando. Mas eu não posso tocar... Entende? Tudo acaba no beijo e é só isso... — Ele respirou fundo. — Você acha que vale a pena beijar esse rapaz amaldiçoado? — Nós dois rimos.
— Eu não sei bem, quer dizer... Eu tive dois namorados, né? Não é como se eu fosse viciada em sexo... — Ele riu.
— Acho que o problema sou eu. Em todos os sentidos. Eu olho pra você e quero te comer em qualquer lugar. — Eu sorri e senti meu rosto queimar. Ele achou engraçado me ver levemente vermelha e com vergonha. Era a primeira vez que ele me viu constrangida de verdade.
— Desculpa, Andy... Não queria te deixar assim. — Levantei o rosto.
— Relaxa. O problema é que é recíproco. — Nós dois rimos.
Blake deitou a cabeça no meu colo, e eu fiquei passando uma das mãos por aquele cabelo loiro macio. Trocava olhares entre ele e o lago, até que em um momento, ele encaixou uma das mãos em minha nuca fazendo meu rosto se curvar pra baixo. Ele continuava no meu colo, mas elevou levemente o rosto apenas o suficiente para aproximar os lábios dos meus. Fiz menção de falar, mas ele me silenciou.
— Não fala... — Ele disse, e finalmente encostou os lábios nos meus.
Eu senti uma explosão de sensações. Euforia era uma delas, mas medo também. Eu não sabia qual delas predominava, mas contanto que nós dois não avançássemos, estava tudo bem. Eu não consegui curtir o primeiro toque de lábios. Minha cabeça estava uma bagunça.
Ele levantou a cabeça do meu colo e ficou de frente, sentado ao meu lado. Eu sorri pra ele, e ele avançou novamente em minha direção. Dessa vez eu deixei todos os pensamentos simplesmente fugirem de mim e também avancei em direção a ele. Ele apoiou uma das mãos no meu rosto, enquanto a outra ele tentava manter distante de mim. O beijo durou algum tempo. Deixei minhas mãos passearem a vontade pelo peitoral firme de Blake, e ele parecia se satisfazer com os toques. Depois de um tempo, nos separamos. Trocamos olhares de cumplicidade, e após o silêncio começar a ficar desconfortável, eu o quebrei.
— Três anos sem s**o, ou eu morro. Você é um i****a, Blake. — Ele riu ao me ver e balançou a cabeça negativamente.
Decidimos que era hora de irmos para a casa, e fomos. Blake me deixou na porta da casa da minha mãe e foi embora. Ela ficou espiando na janela, pois assim que entrei em casa, ela estava com os olhos brilhando e esperando eu contar alguma coisa.
— Desembucha, garota! — Ela disse, com um olhar até adolescente no rosto. O sorriso dela me fez sentir vontade e compartilhar.
— Blake Cross, jogava vôlei para a Rivial e mudou pra Atlan a um tempo. Ele não é meu namorado, mas a gente tá se pegando.
Minha mãe bateu palminhas, como se estivesse me parabenizando. Odeio o fato de minha mãe achar mais importante o fato de eu estar ficando com um cara gostoso, do que o fato de eu estar me dando super bem na faculdade. Nunca ouvi uma pergunta sequer sobre minha graduação, mas toda vez que ela me via com alguém, parecia que se interessava mais por mim.
— Ele parece um gato.
— Mais que gato. —Ela sorriu de forma maliciosa ao me ouvir.
— Ele é gostoso? — Eu balancei a cabeça concordando e ela riu. — Agora sim, um garoto bonito com você. Os outros dois eram... — Antes de ela terminar de falar, interrompi.
— Não fala deles, deixa os dois pra lá. — Ela riu.
— Vida que segue, né? — Ela suspirou. — Eu terminei com o meu namorado. Não estava dando certo. — Mamãe disse e deu os ombros.
— Nossa... Eu sinto muito, mãe. — Falei. Ela sentou no sofá e eu sentei ao lado dela. Ela colocou a cabeça em meu ombro, como se estivesse pedindo consolo.
— Ele é muito paranóico. Desconfia muito de mim. — Eu a repreendi.
— Você não é uma santa também, mãe. — Ela deu uma risadinha e levantou do meu ombro ao ouvir. Ajeitou os cabelos vermelhos e mandou um beijo pra mim.
— Tá certo, eu sou uma vaca mesmo. Quem me quiser vai me aceitar do jeitinho que eu sou. — Ela disse de forma irônica, mas saiu como uma piada. Eu apenas ri. Levantei do sofá e sai andando.
— Boa noite, vaca. — Ela continuou rindo e "mugiu" de brincadeira. Eu ri da conversa divertida e após um bom banho, fui dormir.
Aquela maldita casa. Lá estava eu, novamente nela. Quando tentei me mover, percebi que meus pés estavam acorrentados no chão. Eu ainda estava na sala bonita da casa, então o sonho já estava começando estranho. Até que, uma goteira começou a cair exatamente em cima de mim. Era uma sensação h******l. Cada gota que pingava gerava ansiedade para a próxima. Até que, quando vi, meus pés estavam soltos e eu finalmente pude correr. Ao invés de ir embora, fui no andar de cima como se quisesse consertar o vazamento. Uma banheira cheia, vazando muito, inundava o banheiro. A torneira estava aberta e eu corri para fechar. Consegui parar o vazamento, e a água escorreu pelo ralo de forma bastante rápida. Na mesma hora, minha barriga começou a doer e eu vomitei muita, muita água. Era só água. Era como se eu fosse a torneira que antes estava aberta.
Acordei na manhã seguinte com o despertador. Desenhei no meu caderno a Andy torneira e guardei, porque era dia de terapia.
Após a aula, segui para a terapia e contei tudo para o Dr. Mario. Os dois sonhos bizarros, o pacto de Blake, o beijo e as garotas mortas. Dr. Mario, pela primeira vez ficou sem muito o que falar. Deu alguns conselhos bem genéricos, mas nada realmente aproveitável. Talvez porque essa situação fosse realmente incomum. Ele sugeriu que eu investigasse o que realmente aconteceu com as garotas, para que isso me ajudasse a entender melhor ou decidir o que fazer. Saindo da consulta, peguei meu celular e mandei uma mensagem para Blake.
— Quero que você me mande o nome das três garotas. — Respirei fundo e enviei. Em poucos minutos, recebi. Ele parecia um livro aberto.
— Mia Graves, Hannah Bloom e Amanda Taylor.
Eu não respondi mais nada. A caminho de casa, entrei na página de Blake e comecei a mexer nas pessoas que ele seguia. E lá estava a primeira: Amanda Taylor, a nadadora. Uma garota linda, com um corpo perfeito. Grandes olhos verdes, pele morena, cabelos na altura dos ombros. Um grande sorriso na foto. A última foto do álbum era uma homenagem a ela, em preto e branco. Muitos amigos deixaram mensagem, e também havia uma de Blake. Apenas um emoji triste.
A próxima página que eu visitei, foi a de Mia Graves. Uma garota n***a, alta, bonita e cheia de amigos. Um corpo curvilíneo e cabelos encaracolados, um sorriso perfeitamente alinhado. Os últimos comentários nas fotos eram do ano passado, alguns amigos comentando que estavam com saudade. Prendi a respiração. "Meu Deus... Será que elas realmente morreram por causa dele?" Pensei comigo mesma. Vi em alguns comentários que ela estava dirigindo embriagada e acabou batendo o carro. Era exatamente o que Blake havia contado.
Saí da página dela e procurei por Hannah Bloom. Hannah era uma garota linda. Cabelos pretos e longos, pele extremamente branca. Ela usava uma franja na testa que a deixava com um visual bastante jovem. Após procurar algumas informações, vi que um carro em alta velocidade atravessou no farol vermelho e pegou ela em cheio. Ela estava atravessando na faixa de pedestres com sua bicicleta, que havia acabado de furar o pneu. Que azar.
Depois de toda investigação, cheguei a conclusão momentânea de que Blake era apenas um cara muito azarado. Foram acidentes, e acidentes acontecem. Era só o que eu queria dizer para mim mesma.