Cinco semanas desde o teste.
Do lado de fora, tudo continuava igual. Do lado de dentro… era como viver com uma bomba-relógio no útero.
Eu tava grávida de dez semanas. Dois meses e meio. Mais de dois mil ultrassons imaginários na minha cabeça, cada um mostrando um borrão diferente.
Mais de vinte desculpas esfarrapadas pra minha mãe, do tipo “ah, meu jeans encolheu na secadora” ou “acho que tô com intolerância à lactose”.
Mentira atrás de mentira. Só Yasmin sabia.
Ela virou minha cúmplice, minha enfermeira, minha terapeuta e meu alívio cômico, tudo num pacote só.
— Você tem noção que tá parecendo a Beyoncé escondendo a barriga com bolsa, né? — ela disse, uma tarde, no shopping.
Eu puxei a blusa de moletom até embaixo do quadril.
— Pelo menos eu tenho bom gosto. — respondi não querendo continuar aquele assunto.
— E zero noção de perigo.
Porque perigo era exatamente o que eu sentia toda vez que meu pai me encarava mais que o normal.
Ele não dizia nada. Mas os olhos dele diziam tudo.
Desconfiança. Ele farejava mentira como um pastor alemão treinado.
Num domingo qualquer, estávamos à mesa, e eu recusei o vinho.
— Tô sem vontade — disse. Ele não respondeu. Só me olhou.
Depois, escutei ele comentando com a minha mãe na cozinha:
— A Valentina tá estranha.
— Adolescente, amor. Hormônio.
— Hormônio demais.
Voltei pro meu quarto gelada. Tive que respirar fundo umas dez vezes pra não surtar.
Comecei a evitar ele. A andar mais devagar, a falar menos, a dormir mais cedo. Fingia estudar. Fingia comer. Fingia viver.
Fingimento era minha religião.
Mas o corpo já não deixava mais mentir.
O peito inchado. O enjoo constante. O sono incontrolável.
Na aula de biologia, quase dormi em cima da bancada. Na educação física, fingi dor de cabeça pela quarta semana seguida.
Yasmin me olhava como quem queria gritar: “você tem que contar, Valentina!”
Mas contar pra quem?
Pra minha mãe, que vivia falando que “gravidez na adolescência é falta de vergonha”?
Pro meu pai, que parecia pronto pra me expulsar só por eu ter parado de usar perfume?
Pra ele, pro JL?
Eu nem sabia se ele lembrava do meu nome.
Ele sumiu. Evaporou. A última notícia que tive foi num vídeo que vi por acaso: ele sentado no camarote de outro baile, cercado de mulheres, rindo com um copo de uísque.
E eu ali, carregando o filho dele.
Às vezes, antes de dormir, deitava de lado e colocava a mão na barriga. Era pequena ainda, mas redonda. Firme.
Eu não falava nada. Só ouvia o silêncio.
Um silêncio novo, que não era mais só meu.
Era nosso.
[…]
Doze semanas. Três meses.
A barriga já não era só uma suspeita. Era um fato.
Eu comecei a dormir de moletom. A tomar banho trancada com duas trancas. A andar curvada, como se minha coluna pudesse esconder a verdade.
Comecei a andar mais devagar. A me sentar com cuidado. Tudo em silêncio. Tudo em segredo.
Mas meu corpo já gritava. E meu pai escutava. Ele não falava nada. Mas observava. Sempre observando.
No jantar, ele parava o garfo no meio do caminho. Me olhava. Depois continuava. No café da manhã, perguntava por que eu tava pálida. No carro, falava que meu cheiro tinha mudado.
— Tá usando outro perfume?
— É, troquei — eu respondia, olhando pela janela.
Mentira. Eu não tava usando perfume nenhum. O enjoo não deixava.
Yasmin já tinha tentado me convencer a contar mil vezes.
— Cê tá achando que isso vai sumir se você ignorar? — perguntou colocando a mão na cintura.
— Eu tô tentando ganhar tempo. — Tempo…
— Pra quê?
— Pra descobrir se eu sobrevivo a isso.
Ela não insistia mais. Só ficava. Do meu lado.
Às vezes me trazia barrinha de cereal. Às vezes vitamina. Às vezes só silêncio.
A escola virou um campo minado. Andava com o casaco amarrado na cintura. Evitava trocar de roupa no vestiário. Uma menina comentou no corredor:
— Acho que a Valentina engordou. — E outra respondeu: — Ou tá grávida.
Meu coração parou por dois segundos.
Fingi que não ouvi. Mas comecei a faltar aula.
Disse pra minha mãe que era estresse. Ela acreditou. Meu pai não.
Numa noite de quarta-feira, tava passando um filme na TV. Minha mãe adormeceu no sofá. Meu pai ficou. E eu também.
Ele mexia no celular. Eu fingia ver o filme.
Até que ele falou, sem olhar pra mim:
— Valentina, cê quer me contar alguma coisa?
O estômago revirou. O sangue sumiu das mãos.
— Não — respondi, firme, tentando parecer ofendida. Ele suspirou, continuou mexendo no celular. Mas o ar ficou grosso.
No sábado, ele me pegou de surpresa.
Tava dobrando roupa no meu quarto quando ele entrou sem bater. Eu dei um pulo, escondi uma blusa larga que tava separando.
— Tô ocupada. — falei me sentando e colocando umas roupas sobre o colo.
— Eu só queria te perguntar uma coisa. — seu olhar varreu meu quarto e voltou pra mim.
— Pode falar. — Ele me olhou. Um olhar direto. Cirúrgico.
— Cê tá grávida?
Pausa. Silêncio. Garganta seca.
Tentei mentir. Mas a mentira ficou presa. Não saiu.
— Valentina… — aquele tom… ele já sabia a verdade. E eu sabia!
— Eu… — respirei fundo. O que veio depois foi um sussurro. — Tô.
O tempo congelou.
Meu pai ficou parado, como se o cérebro dele tivesse dado tela azul. Depois ele riu. Um riso nervoso, sem graça, quase cínico.
— Você tá de s*******m. — seus olhos pararam na minha barriga e eu tampei com a mão.
— Eu não tô.
Ele esfregou a mão no rosto. Andou de um lado pro outro. Olhou pra mim de novo.
— Quem? — e chegou no ponto que eu não queria.
— Não importa. — minha voz foi um fiapo.
— Como assim não importa?
— Porque você não vai entender.
— Eu vou tentar, mas você vai me contar AGORA quem é o pai dessa criança!
Engoli em seco. O nome não saía. Mas ele já sabia que não era nenhum playboyzinho do condomínio.
— Ele mora na favela da Maré… eu conheci ele em um baile… que eu fui escondida.
O rosto dele ficou vermelho. A respiração pesada. Ele chutou a cadeira com força. O barulho me fez estremecer.
— EU TE AVISEI PRA NÃO MEXER COM ESSA GENTE!
— Não é “essa gente”! — gritei de volta, num impulso.
— Eles são todos bandidos, Valentina. Você tá carregando o filho de um criminoso!
— E ainda assim ele foi mais humano comigo do que você tem sido.
Silêncio. Um silêncio cortante. O olhar dele mudou. Não era mais só raiva. Era ódio misturado com decepção.
— Sai da minha casa. — sua voz foi baixa, contida.
— O quê?
— Pega suas coisas e sai da minha casa. Vai viver com seu traficante. Vai ser mãe no morro.
— Pai… — tentei argumentar, mais sua voz aumentou de novo.
— SOME DAQUI.
E foi assim. Sem abraço. Sem lágrima de pai.
Sem chance.
Fui pro meu closet, com a visão turva e o peito em chamas. Comecei a enfiar roupas na minha mala, sem nem saber pra onde ir.
A única coisa que eu sabia era:
Eu precisava achar o JL.