Três semanas depois.
Eu já tinha vomitado no banheiro da escola, no carro da minha mãe, e no hall do prédio da terapeuta. E a desculpa oficial era: gastrite nervosa.
Diagnóstico por autodefesa.
Tratamento: fingir que tá tudo bem.
Toda manhã era um déjà vu: eu acordava zonza, com a boca seca e a cabeça girando. Colocava a culpa no café da cantina, no ar-condicionado do quarto, na ansiedade, no estresse, na vida. Menos no que realmente era.
Yasmin já tinha me encarado mil vezes com aquela cara de “amiga, pelo amor de Deus”.
E eu? Só sorria e dizia:
— TPM. Prolongada.
Ela bufava.
— TPM não dura um mês inteiro, Valentina.
— A minha dura. Sou especial.
Minha barriga inchava. Meu peito doía. Minhas roupas começaram a apertar. Comecei a usar moletom em pleno calor de 30 graus, alegando “estilo oversized”.
Na academia, eu desmaiava de leve no leg press. No grupo de amigas, comecei a recusar drinks. E a desculpa da vez foi “promessa de sobriedade por trinta dias”.
— Desde quando você acredita em promessa? — perguntou a Marina, desconfiada.
— Desde ontem — respondi, sorrindo falso.
No fundo, eu sabia. Sabia. Mas aceitar era assinar o fim da minha vida.
Uma noite, entrei no banheiro com um short que não fechava mais e olhei meu reflexo. Coloquei a mão na barriga. Estava ali. Ainda pequeno, mas diferente. Firme. Quase… vivo.
Senti a garganta fechar.
— Não — falei alto, sozinha, como se minha voz pudesse convencer o universo a dar Ctrl+Z.
Mas o universo tava ocupado demais.
E eu tava atrasada. Duas semanas. Três. Quatro.
Minha mãe começou a comentar no jantar:
— Tá pálida, filha. Tá comendo direito?
— Muito. Até demais.
Meu pai só observava. Sempre observando. Até demais também.
No domingo, acordei com o cheiro de café invadindo o quarto. E só de sentir o cheiro, corri pro banheiro pra vomitar.
De novo.
Na segunda, fugi da aula de educação física alegando “pressão baixa”.
Na terça, Yasmin me trancou no banheiro com um saco na mão.
— Toma.
— O que é isso? — perguntei tentando me manter sã.
— Um teste. — ela respondeu como se aquele teste não fosse um peso pra mim.
— Você tá maluca?
— Eu? Você tá vomitando feito grávida mexicana em novela do SBT e ainda quer viver na fanfic da gastrite?
Eu olhei o pacote. Olhei pra ela.
— Se der positivo… — minha garganta secou e eu achei que ia vomitar de novo.
— A gente pensa depois.
Mas eu não fiz. Não naquele dia.
Escondi o teste na gaveta da escrivaninha e fui dormir com o coração batendo no ouvido.
Cada vez que encostava a cabeça no travesseiro, ouvia o som do baile, a respiração dele, a pergunta dele no ouvido:
“Cê quer ir pra minha casa?”
E agora eu tinha a resposta real.
Eu tinha ido e tinha trazido alguma coisa de volta. Só que eu ainda não queria saber o quê.
Acordei com a sensação de que tinha um bloco de cimento amarrado na barriga. E, por um segundo, torci pra ser só ansiedade.
Levantei devagar, caminhei até o espelho, levantei a blusa. Meu corpo ainda era o mesmo. Mas não era mais meu.
Abri a gaveta da escrivaninha. O teste ainda tava lá, no fundo, enterrado entre cadernos, canetas coloridas e uma agenda velha com meu nome bordado.
Peguei o pacote com as mãos suando. O plástico fazia um barulho irritante demais pra quem só queria silêncio.
Fui pro banheiro com o coração martelando no peito. Fechei a porta. Tranquei. Me encostei na pia. Respirei fundo.
— É só pra tirar a dúvida — falei pra mim mesma.
A maior mentira da minha vida.
Abri o teste com dedos trêmulos. Li as instruções três vezes mesmo já sabendo de cor. Me sentei no vaso, fiz o que tinha que fazer, e deixei o teste virado pra baixo sobre a pia.
Dois minutos.
O tempo mais longo da história da humanidade.
Fiquei andando em círculos no banheiro como uma condenada esperando a sentença. O ar tava quente, o azulejo me dava agonia. Minha cabeça pesava. O silêncio do mundo inteiro parecia ter se enfiado dentro daquele banheiro.
Tentei pensar em outras coisas. Em matemática. Em música. Em como explicar isso pra minha mãe sem que ela me esgane com um cabo de vassoura.
Não consegui.
O relógio do celular apitou os dois minutos.
Eu não virei o teste de primeira. Fiquei olhando pra ele de costas, como se um palito plástico pudesse decidir meu destino.
Respirei fundo e virei.
Dois traços.
Fortes. Claros. Sem chance de erro.
Fiquei parada. Olhando. Sentindo cada célula do meu corpo colapsar ao mesmo tempo.
Dois traços, duas linhas e dois destinos colidindo dentro de mim.
A vista ficou turva. As pernas amoleceram. Me sentei no chão gelado e deixei o teste cair no azulejo.
Comecei a rir. Um riso curto, seco, histérico.
— Claro… Claro que deu positivo. Por que não daria?
Passei as mãos no rosto. Tava quente. Tava molhado. Eu nem tinha percebido que tava chorando.
Grávida, do dono do morro. Do cara que eu conheci num baile que eu nem devia ter ido. Do homem que sumiu depois de f***r minha vida, no sentido mais literal possível.
E agora tinha um coração batendo dentro de mim que nem sabia que existia. Quis desaparecer. Evaporar. Sair de mim. Mas eu não podia.
Porque agora não era mais só eu.
E o pior de tudo?
Uma parte de mim não sabia se queria fugir…
ou contar pra ele.