Acordei com a boca seca, a cabeça latejando, e o lençol grudado no meu corpo suado. Demorei dois segundos pra perceber onde eu tava.
Mais três pra perceber que ele não tava ali.
Sentei na cama de um pulo, o coração disparando como se alguém tivesse gritado “foge” dentro de mim. O quarto tava em silêncio. Só o ventilador de teto rangendo e o sol espiando pelas frestas da janela.
Olhei em volta.
Roupa espalhada pelo chão, a camisinha usada no canto, meu sutiã pendurado na maçaneta. E eu ali, nua, suada, vulnerável, e sozinha.
— Que merda eu fiz — murmurei, enterrando o rosto nas mãos.
Levantei tropeçando nos próprios pés. Peguei a calcinha, sacudi, vesti sem pensar muito. Depois o vestido, todo amassado. O cabelo desgrenhado. O orgulho em pedaços.
A casa tava quieta demais. Nem sinal de JL. Nenhum barulho de TV, nem de passo, nem de cigarro aceso.
Meus dedos tremiam enquanto eu tateava o chão em busca do celular. Achei ele debaixo do sofá. Três chamadas perdidas da Yasmin e uma mensagem:
“Tá viva???????”
Abri a tela e disquei pra ela com a pressa de quem chama socorro.
— Alô? — a voz dela veio confusa, com sono.
— Yasmin… eu tô no morro.
— Ué, e o problema?
— Eu acordei na casa dele. Sozinha. Sem ele. Eu tô surtando.
— Calma, miga… respira.
— Respira? Você sabe com quem eu dormi??? Com o dono do morro. O chefe. O rei do tráfico. O homem mais armado que eu já vi na vida. E agora ele sumiu e eu tô aqui parecendo uma figurante de documentário do Datena!
Ela riu. Ela riu.
— Que ódio de você, Yasmin.
— Onde cê tá exatamente?
— Não sei. Uma laje alta, acho. Vou descer a pé.
— Cê tá maluca? De salto?
— De salto, de ressaca, de vergonha e de arrependimento. Um kit completo.
Enfiei o celular no bolso e saí.
Desci as escadas batendo os calcanhares no cimento. O salto afundava em cada rachadura do chão. Um moleque passou por mim com um baseado na boca e me deu um “bom dia” debochado. Eu respondi com um aceno falso, tentando parecer invisível.
O sol já tava estalando na testa. Cada passo era um castigo. O suor grudava na roupa, o cabelo pesava na nuca, e o chão parecia não ter fim.
— Se eu sair viva disso, juro que nunca mais subo esse morro — murmurei, tropeçando num degrau quebrado.
A cada esquina, um vapor, um cachorro magro, uma senhora com balde d’água. E eu ali, descendo igual uma alma penada, com cara de quem se meteu onde não devia e tá pagando a penitência em público.
Me sentia suja. E não só no corpo, no orgulho, no juízo e na consciência. E a pior parte?
Mesmo com o pânico, mesmo com a vergonha, mesmo com a areia do beco entrando no meu salto de grife…
Uma parte de mim queria subir de novo.
[…]
Uma semana.
Sete dias, cento e sessenta e oito horas, dez mil e oitenta minutos.
E eu ainda não conseguia olhar no espelho sem lembrar da parede gelada da casa dele.
Tentei seguir a vida. Juro. Me forcei a voltar à rotina da patricinha que mora no condomínio, estuda em colégio particular e toma café gelado com leite de amêndoas. Mas nada encaixava mais.
As aulas voltaram na terça. Entrei no colégio com o uniforme engomado, a cara lavada e a alma podre. Yasmin me lançou um olhar cúmplice assim que me viu no corredor.
— Tá viva. Milagre. — Ela sussurrou, já me puxando pro canto.
— Só por fora. Por dentro, eu tô fedendo a arrependimento.
— E ele? Te mandou mensagem?
— Claro que não. Você acha que traficante faz follow-up de uma transa?
Ela riu. Eu não, porque doía.
Passei a semana inteira esperando alguma coisa: uma ligação, um “e aí”, um sinal de vida. Mas nada. O JL parecia ter me engolido e cuspido de volta pro meu mundinho com um bilhete invisível escrito “foi só uma noite”.
E eu… eu tentei fingir que era isso mesmo.
Mas tudo tava errado.
O cheiro do perfume dele ainda tava na minha memória. A mão dele ainda grudada no meu quadril, mesmo quando o professor de matemática tentava me ensinar logaritmo. O beijo dele ainda pendurado na minha boca.
Fui na academia, fiz pilates, postei story sorrindo. Tudo no automático.
Na aula de literatura, a professora leu um trecho sobre paixões destrutivas. Quase vomitei.
No jantar de sábado, meu pai perguntou o que eu andava fazendo. Respondi “estudando”, com o garfo tremendo na mão. Minha mãe falou que eu tava mais calada que o normal. Engoli um gole de vinho e fingi que era TPM.
Mas não era TPM.
Era um grito preso na garganta. Um enjoo que não passava. Uma vontade constante de chorar, correr, vomitar ou voltar no tempo.
À noite, deitada na cama, rolando o feed, acabei entrando no perfil fake que eu criei só pra fuçar o mundo dele. Vi um story de um baile novo, e lá estava ele: copo na mão, rindo com os vapores, cercado de mina. Como se eu nunca tivesse existido.
Fechei o app. Joguei o celular no travesseiro. Senti o estômago embrulhar.
De novo.
De novo.
Levantei e fui correndo pro banheiro. Me ajoelhei no chão gelado e vomitei tudo que não devia estar ali.
Quando terminei, encostei a cabeça na parede fria. Olhei pra mim mesma no espelho do armário do banheiro.
Pálida. Olheira. Suor na testa.
Algo tava errado, algo muito errado. Mas eu ainda não queria pensar no que era.
Porque se fosse o que eu tava começando a desconfiar… A minha vida já tinha descido o morro. E não ia mais subir.