King Narrando
Recebi o recado de que dona Vânia queria falar comigo, amiga da minha mãe, sempre foi respeitada aqui na quebrada. Mandei chamá-la pra subir na laje onde eu tava resolvendo uns bagulhos.
— Fala dona Vânia, senta aí. Que tá pegando, o que eu posso fazer pela senhora? — soltei logo, mostrando que eu tinha tempo, mas não era pra enrolar.
Ela ajeitou o pano na cabeça, respirou fundo e mandou:
— King, eu preciso receber uma moça lá em casa. Ela tá vindo do interior, passou por uns maus momentos, queria pedir sua permissão pra acolher a garota.
Franzi a testa e já perguntei:
— Nome dela, de onde tá vindo, e que maus bocados foram esses?
— O nome é Thaís Maria, tem vinte anos, tá vindo de Itatiaia. É moça de família, só que fez um casamento r**m, separou e agora tá precisando de ajuda.
— E esse ex-marido aí, qual foi a fita? É envolvido? — perguntei na maldade, porque não boto ninguém estranho no morro sem saber.
— Até onde sei, não. Ele não é de nenhum comando.
Dei aquele sorriso curto, só pra não ficar de cara fechada, e falei:
— Tá certo, dona Vânia. Pode receber, eu autorizo. Mas já aviso: vou ficar de olho nessa mina. Se tiver qualquer gracinha, qualquer parada errada, vai sobrar.
Ela agradeceu, levantou meio aliviada e soltou:
— Ela chega de hoje pra amanhã, meu filho. Deus te abençoe.
— Vai com fé, dona Vânia. — respondi, e já mandei ela seguir o caminho.
Assim que ela meteu o pé, virei pro Braço que tava do lado e soltei na lata:
— Fica de plantão. Hora que essa garota botar os pés aqui no morro eu quero saber primeiro.
Ele confirmou com a cabeça, e pronto. Pra mim o assunto já tava fechado.
Desci pro movimento, porque a tarde já tava fervendo. A boca não para, e eu também não. Primeiro, cheguei no galpão onde os moleque tavam montando os pacotes. Pó separado em saquinho, maconha prensada cortada, tudo na medida. Conferi peso, conferi a contagem.
— Menos viagem, mais foco, rapaziada. Bora agilizar isso aí. — falei enquanto passava no meio deles.
Dois novato tão aprendendo agora a prensar direito, ficavam se enrolando com fita. Dei logo um esporro:
— Se errar o peso, quem paga é vocês. Não tem caô.
Depois subi pro beco de cima, onde os vapores tão vendendo. Fila de nóia já tava armada. Passei de leve, só observando. Um tentou trocar ideia, eu cortei:
— Fala com os vapor, Carälho. Comigo é outra fita.
Enquanto isso, recebi rádio do Pardal, avisando que tinha viatura rodando lá embaixo, perto da entrada da favela. Mandei reforçar a contenção, subir dois moleque armado pro beco principal e ficar na escuta.
— Não é pra meter o pé sem eu mandar, ouviu? — falei no rádio. — Viatura só assusta, mas se subir de verdade nós resolve.
Continuei rodando. Vi dois moleques no canto, cada um com uma pistola na cintura, olhando atento. Passei e bati na cabeça de um:
— Se liga, moleque. O bagulho é sério.
Mais tarde, chegou a remessa nova. Três caixas fechadas de prensado e mais uns quilo de pó. Ajudei a abrir e conferir, porque comigo não tem essa de deixar só na mão dos outros. O parceiro do asfalto mandou certo, tudo na conta.
— Joga metade pro estoque e a outra metade espalha nos pontos. — ordenei.
Enquanto organizava, um dos moleque veio correndo, suado, gritando que um cliente quis pagar fiado.
— Fiado? Tá maluco, pörra? — peguei ele pelo braço. — Aqui não tem fiado não, meu irmão. Quer cheirar, paga. Senão vai caçar outro canto.
O moleque engoliu seco e saiu correndo de volta. Aprendi cedo: se dá mole uma vez, perde respeito pra sempre.
O sol já tava baixando, e a boca ainda tava frenética. Escutei samba tocando na laje vizinha, criançada correndo pelo beco, e ao mesmo tempo o rádio estalando com informação de giroflex descendo. Vida dupla do morro: festa e tensão.
Encostei na cadeira de plástico que fica do lado da boca, abri uma lata de energético e fiquei observando o movimento. Um atrás do outro, nóia descia e subia com pressa. Dinheiro entrando, produto saindo. Esse é o jogo, e eu sou o rei dele.
A tarde foi inteira nisso: controlar, dar ordem, cobrar disciplina. Nada de ficar pensando em bobagem. Aqui o bagulho é foco no agora. Quem se distrai perde. E eu não perco.
— King, chegou a mina. Já foram chamar a dona Vânia.
Peguei a chave da moto, e desci sem pressa, mas com olho de águia. Moto ligada, acelerei devagar, chegando na lanchonete que fica no ponto estratégico do morro. Parei de frente, escondido o suficiente pra ninguém notar, e fiquei observando.
Vi dona Vânia chegando com a garota do lado. Thaís Maria. Magrinha, cabelo longo, carinha angelical, mas não caí nessa não. O morro me ensinou que cara de anjo muitas vezes esconde problema. Olhei cada detalhe: jeito de andar, postura, olhar, bolsa, roupa, tudo. Minha cabeça já rodando. Esse tipo de mina precisa ser estudada antes de entrar na quebrada de vez.
Respirei fundo e liguei pro meu parceiro de confiança, que mexe com investigação e informação:
— Fala, parceiro. Preciso da ficha da Thaís Maria, uma mina que acabou de chegar na quebrada. Puxa nas câmeras e pra ontem. Nome completo, idade, histórico, ex-marido, família, qualquer mërda que envolva ela. E não enrola, eu quero resumo rápido na minha mesa, entendeu? — falei com a voz curta, sem paciência.
Enquanto esperava a resposta, fiquei observando a Thaís conversando com a dona Vânia, rindo baixo, mas com olho ligeiro. Se for fraqueza ou ameaça, eu vou saber antes de qualquer merda acontecer. O morro não perdoa descuido. Vai que esse ex, não seja ex. Que mandou ela pra ficar de olho em mim, só vou descansar quando eu descobrir a verdade. Porque ela veio, porque escolheu Justo a minha quebrada. Não é medo é desconfiança é precaução.