Genipabu

1427 Words
Capítulo- XVII. Genipabu " Diante do mar de Genipabu eu prometi te amar, e nas dunas consumei esse amor. Somos partes daqui, você está dentro de mim e nós na história de Genipabu. " Varuna A brisa suave do mar chega primeiro ao meu rosto, trazendo aquele cheiro inconfundível de maresia que me faz respirar mais fundo, como se cada sopro do vento lavasse de dentro para fora as marcas que carrego na alma. Estamos em Genipabu. Eu, Camila e meu avô Raul. O sol não queima, apenas aquece. O céu está limpo, azul, tão bonito que quase me sinto dentro de uma pintura viva. Seguimos direto para o restaurante que fica à beira da areia, com aqueles bangalôs de madeira cobertos por palha, perfeitos para se refugiar do sol e, ao mesmo tempo, estar de frente para o mar. Escolho um deles, instintivamente o mais próximo da água, como se quisesse que Camila tivesse a melhor vista possível. Quando nos acomodamos, sinto a felicidade pulsar dentro de mim. Não é apenas o lugar que me traz essa sensação de bem-estar, mas a companhia dela. Camila. Eu nunca sei explicar de onde vem essa familiaridade que sinto quando a olho, como se já a tivesse visto em outra vida. E quando olho para o meu avô, percebo que ele também nos observa com um brilho estranho nos olhos. É um brilho bom, mas parece esconder algo que ele não deseja revelar. Chamo o garçom e faço os pedidos. Pratos com frutos do mar — quero que a experiência seja completa. Enquanto Raul e o garçom conversam sobre detalhes do cardápio, minha atenção se volta para ela. O sorriso doce, terno, e aquele olhar profundo que me atrai tanto. Parece que carrega dentro dos olhos uma história que me pertence, mesmo sem eu conhecer as páginas. — Quer beber o quê? — pergunto, sem conseguir parar de fitar o rosto dela. — Um suco de melancia — responde, com aquela voz serena que parece deslizar por dentro de mim. Faço o pedido e, sem pensar muito, seguro a mão dela sobre a mesa. Passo o polegar devagar sobre a pele delicada, como quem desenha um carinho. Vejo as maçãs do rosto de Camila se tingirem de rosa, e é impossível não sorrir diante disso. Raul, em silêncio, apenas nos observa, como se estivesse diante de algo que não ousa interromper. Então ele quebra o silêncio: — De onde você é, menina? Camila ajeita o cabelo atrás da orelha e responde com naturalidade. — Sou do Rio de Janeiro, de Honório Gurgel. Minha família morava lá antes da minha existência, mas por causa da violência, meu avô resolveu vender a casa e comprou um sítio em Holambra, São Paulo. Ficaram lá alguns anos... mas Holambra também trouxe uma perda irreparável para minha mãe e os demais. Depois disso, venderam o sítio e voltaram para o Rio. Voltaram... com um a menos na família. As palavras ficam suspensas no ar. Raul, que até então apenas sorria, deixa escapar lágrimas discretas. Escorrem devagar pelo rosto enrugado, e eu me assusto. Camila também se mostra desconcertada. Ele puxa um guardanapo do porta-guardanapos de plástico preto e seca o rosto, pedindo desculpas. — Me emocionei, só isso. Também já tive perdas irreparáveis na família — diz, inventando uma desculpa para encobrir as lembranças que sei que ele não gosta de tocar. Eu tremo só de imaginar que ele possa mencionar meu tio, aquele de quem herdei traços idênticos, não quero que Camila tome conhecimento disso. Antes que vá por esse caminho, mudo o assunto, quase atropelando o silêncio. — Camila, aqui tem passeio de bugre... gostaria de fazer um comigo? - pergunto fazendo sua atenção voltar-se para mim. Ela abre um sorriso radiante, os olhos brilhando como se eu tivesse lhe oferecido um tesouro. Balança a cabeça afirmando que sim. — O senhor também quer ir, vô? — pergunto. — Eu? — ele ri, negando com a mão. — Vocês que vão. Sou muito velho pra essas aventuras. Se aquele carrinho tombar, vão ter que juntar meus ossos com pá de lixo. Vou ficar por aqui, lendo um livro e molhando os pés na areia. Camila solta uma gargalhada gostosa, livre. E eu me perco na imagem dela rindo, porque não é uma risada ensaiada, como tantas que já vi em coquetéis e jantares políticos. Ela é verdadeira. Existe. Vive. E eu... estou apaixonado, embora saiba que não devesse estar. Esse sentimento me sufoca. É errado, condenado, com o ponto final colocado no início. O garçom retorna com os pratos. Raul arregala os olhos. — Olha só, camarão empanado! Adoro. Mas me diga uma coisa, rapaz... vocês tiram o cocô do camarão, né? Não fazem igual aos outros restaurantes que deixam a tripinha preta? Porque aquilo é m*rda, viu? — Vovô! — protesto, balançando a cabeça em negação, enquanto Camila ri tanto que chega a cobrir a boca. — Gostei do seu avô. Ele é uma graça — diz ela, e eu sorrio, aliviado. Mas penso comigo que, se tivesse conhecido Raul anos atrás, teria odiado com todas as forças. As histórias que ouvi de minha mãe descrevem um homem intragável, metido até o pescoço em política e sujeira. — Tenho certeza de que ele também gostou muito de você — digo, piscando para ela. Camila abaixa o rosto, envergonhada. Começamos a almoçar. Camila coloca apenas pequenas porções no prato, e Raul não demora a reparar. — Menina, coloca mais comida! Você não é passarinho, não. Se comer igual a passarinho, fica dura. Varuna, serve comida para a nossa convidada! Camila sorri tímida, balança a cabeça. — Não precisa. Eu como pouquinho mesmo. Eu suspiro, e olhando nos olhos dela digo com calma: — Pode comer o quanto quiser, Camila. Não precisa se forçar nem se limitar. Ela concorda com um aceno e um “uhum”, mas de fato continua comendo pouco. Raul a observa, curioso. — E como se chama sua mãe? Camila limpa a boca com o guardanapo, toma um gole do suco e responde: — Tábata. Trabalha como técnica de enfermagem. Meu avô continua, como se investigasse sem pressa: — E você veio com seus pais? — Não. Vim só com meu pai — responde, e noto o tom da voz dela mudar. O olhar perde a alegria, torna-se levemente ressentido. — Meus pais nunca se casaram. Minha mãe era amante dele. Eu sou fruto disso. Raul abaixa os olhos para o prato, mastiga em silêncio. Eu a observo com fascínio. Camila fala de si mesma como quem abre um livro. Sem pesos, sem medidas. Transparente. Clara como a água. — Então você está aqui com a família do seu pai? — pergunto. Ela me encara firme. — Não. A primeira esposa dele descobriu a traição e se separou. Depois, ele tentou ficar com minha mãe, no entanto quando ela completou os seis meses de gestação tudo ruiu de vez, brigavam demais. Separaram-se. Ele arrumou outra, também não deu certo. Hoje... está solteiro, digamos assim. Aqui no Rio Grande do Norte já arrumou uma namorada. Conta assuntos pessoais como se fosse uma confidência natural, sem medo do julgamento. — Minha família é complicada... quero dizer, meus pais. Mas meus parentes são maravilhosos. Meu avô é como um pai pra mim. Minha avó é um amor, embora viva em depressão desde que minha tia morreu. Tenho também um tio, Júnior. Ele é chef de cozinha no Rio. Me chama de Camilinha, ou às vezes de magrela. Eu chamo ele de almôndegas com pernas... porpeta. Ela ri ao se lembrar, e seus olhos brilham de um jeito que ilumina até o espaço entre nós. E eu fico perplexo. Ela entrega sua vida inteira em palavras, como quem confia no vento. Não mede, não finge, não calcula. Apenas se mostra. E essa verdade, essa nudez de alma, me fascina. Terminamos a refeição. O sol já vai descendo devagar, tingindo o céu de tons dourados. Saímos juntos, eu e Camila, de mãos dadas, caminhando pela areia que ainda guarda o calor do dia. O vento do mar envolve nossos corpos e sinto como se uma bola de fogo substituísse meu coração. Olho para ela em silêncio. Agradeço a Deus mentalmente. Obrigado por esse momento. Obrigado por ela. Camila percebe minha expressão e pergunta, rindo com curiosidade: — Pensando em quê? Agradecendo alguma coisa? Pergunto por causa da sua expressão. Eu apenas aperto mais forte sua mão, sem ter coragem de responder. Porque não sei se posso confessar que agradeço por ela existir.
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