Freud sobre o analisante em 'Recordar, repetir e elaborar' (1914):
"A própria doença não deve ser mais algo desprezível para ele, mas sim tornar-se um digno adversário, uma parcela do seu ser fundamentada em bons motivos, de que cabe extrair algo valioso para sua vida futura"
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Diário de Teresa Plath
Dia 02/05
Não sei ao certo como tudo começou, tenho memórias, algumas mais vivas do que outras. Sempre achei curioso o fato de eu conseguir me recordar tão claramente de muitos eventos da infância, especialmente os negativos, aqueles em que sentia medo e muita ansiedade. Como lembro que sentia desespero por ser medrosa, as sensações eram intensas. Sentia no corpo uma adrenalina sufocante. Hoje, sei bem porque tenho tantas recordações. Uma professora uma vez nos disse (isto quando eu já estava cursando Psicologia), que memória é afeto. Por isso tantas memórias, tão vívidas, tão reais. Porque eram intensos os afetos.
Desde pequena eu sentia os mínimos acontecimentos atípicos como algo traumático. Era meu modo de sentir, que sempre foi intenso e um tanto quanto devastador para mim. Sei também do componente ansiogênico que herdei geneticamente da minha família paterna, e essa porcentagem deve ser mesmo bem significativa porque, desde os 4 anos, eu já era uma criança ansiosa e com constante medo do abandono e da solidão.
Queria não me delongar tanto assim sobre esses fatos, visto que já os narrei diversas vezes em diferentes terapias. Comecei o processo psicoterapêutico pela primeira vez aos 11 anos, tinha medo de que meus irmãos fossem sequestrados. Por ser a mais velha de dois irmãos, eu presenciei desde muito cedo, a ideia de cuidado com os mais novos. Presenciei também alguns surtos da minha mãe quando os dois sumiam por alguns minutos em brincadeiras comuns de criança (um deles se escondeu no armário certa vez), e esse episódio em que não o encontrávamos gerou um completo desespero (compreensível) em minha mãe, afinal ele era muito pequeno. Só que existia algo dentro de mim, desde a mais tenra idade, um sentimento de que eu deveria protegê-la, e proteger o meu pai. Como se ambos fossem muito frágeis ou desequilibrados. Como se alguma possível tragédia fosse capaz de desestruturá-los a tal ponto, que eu os perderia. Seria então sozinha no mundo. O sequestro dos meus irmãos poderia ser uma dessas tragédias. Só que antes disso, já existia o medo de que a minha mãe morresse por alguma fatalidade sozinha em casa, e não conseguisse me buscar na escola (consequência de uma vez em que fui esquecida). Até aqui, é possível compreender como todos os fatos infelizes, desesperadores, como o sumiço dos meus irmãos, contribuíram para que eu não conseguisse me reerguer.
Eu era só uma criança, cuja qualquer situação em que houvesse insegurança, me desencadeava imediatamente um trauma, uma resposta altamente ansiogênica. Um terror absurdo. O medo de que voltasse a se repetir e de maneira pior. Então eu comecei a me defender dessas imaginações que continham possíveis tragédias com aqueles que eu amava. A minha defesa consistia em: controle. Controlar todas as variáveis do ambiente. Repetir diversas vezes para a minha mãe que gostaria que ela não se atrasasse porque eu sentia dor de barriga. Naquela época, eu não sabia tão bem que aquela dor de barriga era a ansiedade se apoderando de mim, se aproximando e ganhando espaço. Para não mais sair.
Checava diversas vezes onde os meus irmãos estavam, especialmente em eventos e espaços públicos. Se passavam alguns minutos desde a última checagem, eu conferia mais uma vez, porque já começava a sentir a adrenalina pulsando, a agonia do "e se". E foi com todos esses "e se" que eu cresci controlando o ambiente ao máximo ou, ao menos, acreditando que eu era capaz de controlar qualquer coisa. Foi com todos os "e se" dos meus pensamentos intrusivos e obsessivos, que eu tive uma infância marcada por pouco espaço para leveza. Para ser honesta, eu sequer sei o que é a leveza e inocência da infância. Porque fui uma criança vigilante, medrosa, que sentia que deveria proteger a sua própria família, porque os seus pais não eram capazes disso. Eu cresci me afirmando esse ser onipotente, que pode prever o caos e impedi-lo. Fui uma criança que carregava um peso que não era dela e, por isso, eu infelizmente, não sinto que fui criança o suficiente. Talvez seja por isso que até hoje, eu me veja um pouco como criança, porque tive uma infância perdida pelo medo, meu maior opositor. Era duro conviver com os "e se" que me amedrontavam e, mais duro ainda, ser pequena o bastante para não ter recursos psíquicos suficientes para lidar com esses pensamentos. Então eu acreditava neles. E para ser sincera, eu ainda sigo acreditando na maior parte do tempo.
Quem tem um pensamento intenso, intrusivo, forte e gigante como um monstro que foi alimentado por anos e anos a fio, saberá do que estou dizendo. "Basta criticar esses pensamentos" e "Basta não se identificar com eles", são aqueles clichês que parecem tão óbvios, tão simples e práticos. Não é bem assim.
Sei que esse capítulo parecerá pessimista demais e desesperançoso, como se eu tivesse praticamente nascido com essa coisa, que já foi chamada de Síndrome do Pânico, de Transtorno Obsessivo Compulsivo e por fim, Borderline. Como se eu estivesse fadada a viver para sempre no mais profundo sofrimento, como uma infeliz sentença.
É, talvez seja uma sentença. Afinal, não há cura. Acontece que, a psicanálise me ensinou a advogar pelo meu desejo. Eu não aceito essa sentença. Não a de me resumir a um diagnóstico. Esse livro é a minha defesa nesse julgamento.