CAPÍTULO 3
Narrativa do autor
Fantasma, depois daquela noite em que se esbarrou com Marília, não conseguiu esquecer seu cheiro, sua beleza. Mas a vida seguiu. Todos os dias tinha um B.O. pra resolver. Às vezes, precisava sair pra cobrança, ia pra tirar as paranoias da cabeça. Na boca, quando estava trampando, sempre aparecia umas marmitas pra aliviar os patentes altas do morro.
Desde o dia em que ele pegou a empregada, ela não deixou mais Fantasma em paz. Todos os dias se oferecia pra ele, mas ele fingia não perceber. Não queria aproximação dela, nem dar nenhuma esperança. Até porque, ele nunca deu motivo pra isso.
Fantasma tomou banho e saiu pro seu turno na boca. Naquela noite, seria seu plantão.
A noite na Rocinha tinha seu próprio ritmo. Não era o barulho do mar lá embaixo, nem o som distante das motos; era um compasso feito de passos apressados nas vielas, conversas cortadas e olhos atentos em cada esquina. Fantasma conhecia esse ritmo como ninguém.
Encostado no parapeito da laje, observava a cidade brilhando ao fundo, enquanto, no morro, a vida corria sob um código que só os de dentro entendiam. A brisa da madrugada trazia maresia misturada ao cheiro de pólvora e maconha. Era assim todas as noites: tensão no ar, mesmo quando nada acontecia.
— Chegou o bagulho, chefe — avisou TH, o braço direito de Fantasma, subindo as escadas com passos firmes.
Fantasma não respondeu de imediato. Apenas o seguiu até o barraco onde sss, o gerente dos pontos, conferia os pacotes recém-chegados. O dinheiro estava empilhado sobre a mesa, e Gato, chefe da segurança, observava tudo de braços cruzados, como uma sombra pronta pra agir.
— Movimento tá bom. Essa semana fechamos alto — comentou sss, sem levantar o olhar das anotações.
Fantasma apenas assentiu, acendendo um cigarro.
Enquanto sss organizava as contas e Gato trocava instruções com os soldados, TH se aproximou, com aquele sorriso de quem ia falar besteira.
— Chefe… tô pensando em dar um pulo na boate hoje. Aquela lá na Zona Sul… onde a gente foi outro dia.
Fantasma manteve o olhar fixo na rua lá embaixo, mas sabia exatamente a qual noite ele se referia. A mesma em que esbarrou numa mulher que não parecia combinar com aquele ambiente. Marília. O perfume doce, os olhos grandes, a boca marcada de batom...
— Vai lá. — Sua voz saiu baixa, quase cortante.
— E tu não vai, não? — insistiu TH.
— Tenho trampo aqui.
Era mentira. Fantasma não tinha nada urgente naquela noite. Poderia ir, mas não queria. Algo naquele encontro mexeu com ele de um jeito estranho. Não era desejo puro, não era curiosidade… era um desconforto, como se tivessem aberto uma porta que ele não queria atravessar.
TH, sss e mais dois soldados saíram rindo, falando da noitada que os esperava. Fantasma ficou, fazendo sua ronda pelo morro. Conferiu as bocas, trocou poucas palavras com os olheiros e verificou se a segurança estava bem posicionada. Tudo tranquilo, mas ele nunca relaxava — no morro, o perigo vinha quando se achava que estava seguro.
Quando o dia estava quase amanhecendo, passos rápidos ecoaram na escada. TH voltou primeiro, com o sorriso largo e a respiração acelerada. Atrás, sss e os outros gargalhavam.
Estavam satisfeitos. Passaram a noite com as prostitutas e viram Marília entrar pro quarto com um sujeito fino, cara de empresário.
— Chefe… tu perdeu, mano! — disse TH, ainda rindo. — Aquela mulher tava lá de novo. A deusa maravilhosa. Ela não tinha tempo de respirar, todos só queriam ela. Até eu, mas não consegui.
— A mesma? — perguntou sss, entrando no papo. — Pqp… se tu visse o vestido dela hoje… coisa de cinema!
Eles começaram a descrever Marília como se fosse uma atração de luxo: o jeito que dançava, os homens babando, as notas de cem sendo jogadas como confete. Fantasma ficou em silêncio, fingindo mexer num rádio velho, mas cada palavra parecia cutucar algo dentro dele.
— Só de chegar perto, dava pra sentir o perfume… — continuou TH. — E ela… cê sabe, chefe… aquela postura… aquela cara de quem sabe que manda na p***a toda. Chegou um empresário, pagou e levou ela pro quarto.
Fantasma não respondeu. Mas, por dentro, sentia um gosto amargo na boca. Não entendia por que se incomodava com a forma como eles falavam dela, mas sabia que não gostava.
---
Enquanto isso, na boate…
A música alta escondia o som dos copos sendo empilhados e das notas trocando de mão. Marília estava sentada na beira do balcão, as pernas cruzadas, o vestido justo marcando cada curva. O sorriso no rosto era falso, treinado, parte do uniforme invisível que toda garota ali vestia.
Desde os 22 anos naquele lugar, ela sabia como funcionava: sorriso pronto, olhar sedutor, paciência infinita. E, mesmo assim, havia noites em que o nojo subia pela garganta. Tinha que se deitar com homens fétidos e não podia rejeitar.
— Vem cá, princesa… — chamou um cliente, um velho de terno amarrotado e hálito de uísque barato.
Marília se aproximou devagar. O cheiro dele era pior de perto: suor, cigarro e um perfume barato que não disfarçava nada.
— Dança pra mim… — disse ele, enfiando dinheiro no decote.
Ela revirou os olhos por dentro, mas manteve a máscara. Se recusasse, sabia o que viria depois.
Ali, recusar era um risco. Dona Leila, a proprietária, não aceitava "não" como resposta. Quando alguma menina enfrentava um cliente, os seguranças agiam. Não deixavam marcas visíveis, mas a dor ficava por dias. Uma vez, Marília tentou se esquivar de um homem que queria levá-la pro quarto e pedir algo a mais do que sexo normal. No dia seguinte, ela acordou com o corpo dolorido e o recado claro: ou joga o jogo, ou tá fora.
Alguns clientes eram piores que outros. Homens velhos, bêbados, babando nela como se fosse mercadoria barata. Ela aprendia a controlar a respiração, sorrir e esperar a hora de ir embora. Mas cada toque indesejado, cada piada suja, cada olhar de posse deixava cicatrizes invisíveis.
E, ainda assim, ela se mantinha ali. Não porque gostasse, mas porque precisava. O dinheiro pagava seu aluguel, as contas e comprava o pouco de liberdade que ainda tinha.
Naquela noite, quando TH e sss entraram na boate, Marília os reconheceu de longe. Não pelo nome, mas pelo jeito de andar: confiantes, como se o lugar fosse deles. Ela fingiu não ver, mas sentiu os olhares pousando nela. Um cliente fino chamou ela pro quarto. Ela foi e ganhou mais do que a semana inteira, mesmo transando com dois clientes por dia.
Quando eles saíram, levou um tempo para o barulho e as luzes perderem força. Mas, em algum canto da cidade, alguém — um certo homem que ela m*l conhecia — pensava nela.
De volta ao morro, Fantasma caminhava sozinho pela laje, olhando a cidade iluminada. Pensou em voltar na boate. Pensou nela. E, por um segundo, quase decidiu ir. Mas engoliu o pensamento. No morro, sentimento demais era fraqueza. E fraqueza custava caro.
Mesmo assim, naquela madrugada, o rosto dela não saiu da sua cabeça.