- Capítulo Cinco "Caçado"

3005 Words
A cabeça de Luiz Felipe latejava de dor. Ele mal sabia onde estava, porém tinha noção de que havia desmaiado por algumas horas, pois a luz solar havia diminuído bastante, e a escuridão começara a tomar conta da floresta. “Como eu...” Luiz balançava pela corda amarrada no seu pé direito e só alguns segundos depois começou a perceber que havia algo de errado. O rapaz logo recuperou a consciência e tomou um baita susto: tudo estava de cabeça para baixo. — O quê? O maior problema era saber se aquela armadilha era antiga ou recente, pois sua vida poderia estar em risco. Mas será que teria alguém ali por perto? Luiz sempre carregava consigo uma faca de combate bem afiada, que encontrou em uma das casas que vasculhou em Tamandaré, e também sua pistola. Por sorte, a faca não havia caído da bainha (o objeto não tinha mais que vinte e cinco centímetros), porém a arma não se encontrava mais na parte de trás de sua calça. Ele pegou a faca e começou a tentar alcançar o pé, sem sucesso. — Eu tenho certeza! Ouvi em alto e bom som um grito! — disse uma voz, provavelmente de alguém que caminhava pela floresta, o que assustou e muito Luiz Felipe. — Faz dias que não comemos nada! Você deve estar alucinando por culpa da fome e não sabe o que escuta ou deixa de escutar! — resmungou outra voz, ali perto também, só que de um homem mais velho. — SHH! Faça silêncio! Ouviu agora? — perguntou a primeira pessoa, parando abruptamente de caminhar. Aquilo atiçou o medo de Luiz. Ele estava sozinho, em uma floresta que escurecia a cada segundo que se passava, amarrado de cabeça para baixo e ouvindo as vozes de duas pessoas provavelmente hostis. Isso foi mais que o suficiente para fazer com que o rapaz se apressasse em cortar a corda. O barulho dos passos foi aumentando até que finalmente os indivíduos se revelaram. Eles saíram do meio da densa floresta e estavam a mais ou menos duzentos metros da armadilha. — ALI! EU NUM DISSE! EU TINHA RAZÃO! VAMOS PEGÁ-LO! — afirmou o menor dos rapazes, que a aparência lembrava a de um rato. Luiz percebeu que a intenção deles não era boa e passou a faca com tudo na grossa corda presa em seu pé, torando-a com violência e cortando sua panturrilha de leve. — AAAAAAAH! Foi uma baita queda. Por estar suspenso a mais de um metro do chão, ao cortar a corda Luiz foi com tudo de encontro ao terreno enlameado. Ele bateu as costas e as pernas no chão repleto de galhos e folhas sujas e sentiu fortes dores em ambos os locais, porém a adrenalina estava tão alta que nem tinha tempo de reclamar. — ELE SE SOLTOU! — afirmou o homem mais alto, que portava uma espingarda velha. Um tiro foi disparado e atingiu o terreno ao lado de Luiz Felipe. O rapaz, ao perceber que os dois homens não estavam para brincadeira, levantou, vestiu o capuz e se pôs a correr, sem nem mesmo procurar a pistola. — COELHINHO! NÃO ADIANTA FUGIR! NÓS VAMOS TE PEGAR! Luiz não queria saber. Ele continuou correndo desesperadamente por entre as árvores e com a faca em punho. O homem menor, de cabelos arrepiados e castanhos, tinha várias cicatrizes na pele esbranquiçada do rosto e de alguma forma perdeu a mão esquerda. Ele era muito feio e aparentava ter algum problema mental. Já o outro, maior, era rude e robusto, com cabelos pretos e curtos, pele negra e uma expressão nada amigável. — NÃO QUEREMOS TE MATAR! — urrou o estranho de estatura menor, correndo de uma maneira bastante esquisita, como se mancasse de uma das pernas. Luiz Felipe passou a mão rapidamente por entre a parte de trás da calça e lembrou de que tinha perdido sua arma, ficando completamente indefeso. Ela caiu em algum local quando ele acionou a armadilha. “MERDA! E AGORA?” pensou o rapaz, correndo feito um louco. Uma das coisas boas que a Lyssadyceps havia feito no corpo de Luiz era ter aumentado sua resistência física. Por incrível que pareça aquela doença não tinha o prejudicado (tirando o fato da aparência, pois manchou metade do seu corpo com veias pretas e saltadas e tingiu seu globo ocular direito totalmente de preto), pelo contrário, acabou por ajudá-lo. Antigamente Luiz não conseguia correr nem cinco quilômetros direito, já agora corria de quinze a vinte com facilidade, além de ganhar um pouco mais de força física. A mutação que a Lyssadyceps fez em seu corpo foi algo extraordinário, digno de um grande estudo científico (caso ainda existissem centros de pesquisa) e talvez ali houvesse uma cura. O problema seria ele sobreviver até que conseguisse entender o porquê que a doença se espalhou diferente em seu corpo do que nos dos outros. Somente isso. — VOCÊ NÃO DESISTE? — perguntou o homem robusto, ficando para trás na corrida a cada instante. Não. Luiz não iria desistir e ser morto por aqueles maníacos. Os tiros disparados pela dupla não eram para acertá-lo, e sim para derrubá-lo. Mas por qual motivo? Na melhor das hipóteses eles eram loucos, na pior poderiam até mesmo ser canibais. Agora o terreno da floresta estava declinando cada vez mais, e do lado esquerdo tinha um desfiladeiro não tão alto, mas perigoso o suficiente para quebrar um pé caso alguém caísse de mal jeito, pois a altura chegava a ser de uns três metros ou mais. — AAAAH! — gritou Luiz ao ser atingido por um dos disparos de raspão, sentindo uma forte dor no antebraço esquerdo. — AGORA SIM EU VI CONVERSA!!! Os dois maníacos queriam pará-lo a qualquer custo, e talvez conseguissem se acertassem o próximo disparo na perna de Luiz. Mas antes mesmo que eles pudessem mirar novamente, Luiz Felipe se jogou do desfiladeiro. — PORRA! — urrou ele, caindo no terreno cheio de folhas e com pedregulhos. No exato momento que o pé direito do rapaz tocou no chão, ele sentiu a dor. A torção foi imediata. — ELE CAIU! VAMOS PEGÁ-LO! HOJE NINGUÉM PASSA FOME! — disse o homem menor que aparentava ter problemas mentais. Luiz começou a se arrastar para o mais longe que podia, enquanto que os dois loucos desciam o pequeno desfiladeiro com cuidado. “EU ESTOU FODIDO...” Os caçadores de carne humana chegaram no fundo do desfiladeiro e a fraca luz do sol ainda possibilitou com que o ferido enxergasse os rostos deles. — Ei cara! Não queremos te matar! É sério! Nós fazemos parte de um grupo com quinze pessoas, todas famintas, e somos péssimos caçadores! Eu juro por Deus que não é nada pessoal! Temos crianças famintas e precisamos... — CALA A BOCA! — ordenou o n***o robusto, dando um tapa na orelha do homem menor, que abaixou a cabeça e se calou. — Então é isso? Vocês simplesmente preferiram o caminho mais fácil? Matando inocentes e praticando canibalismo? — indagou Luiz, escondendo a faca debaixo do sobretudo e sentado no chão molhado. — Não é uma decisão fácil. Passar fome é absurdamente horrível. Eu nunca tinha passado anteriormente, porém as coisas estão indo de mal a pior, e nesse mundo só sobrevivem os que se adaptam. Me desculpe... — falou o grandão, apontando a espingarda para a vítima. — Não tenho medo de vocês, sabe por quê? Porque eu estou infectado. Você é um baita pau no cu mesmo, não viu meu rosto? Aquela armadilha lá foi bem planejada e tudo mais, porém pegaram a presa errada... seus otários! — zombou Luiz, sorrindo maliciosamente e tirando o capuz. — Fred... puta que pariu! Ele tem razão! Olha pra cara desse arrombado! O olho dele é... doente! Essas veias... — comentou surpreso o homem menor, puxando a manga da camisa do mais velho. Fred se aproximou com cautela, olhou no fundo dos olhos de Luiz Felipe e recuou. — O que você é? Que tipo de... infectado? Os dois rapazes começaram a dar alguns passos para trás e Fred, o mais forte, apontou a espingarda para a cabeça de Luiz. — Você está fodido... nós não vamos comer da sua carne e pra piorar, você se tornará um deles em breve, então acho melhor te sacrificar! Os olhos de Luiz Felipe se esbugalharam ao ouvir aquilo. Aqueles dois idiotas iriam matá-lo ali mesmo, e sua vingança não seria concretizada. — Eu sou imune! — Imune?! Que mentira! Eu acho que... que... mas que porra é essa? — indagou Fred, arregalando os olhos e apontando a arma para trás de Luiz. — O quê? Luiz Felipe se virou repentinamente e viu o motivo do medo deles. Um imenso Touro estava hibernando ali perto. O infectado gigante repousava no canto mais escuro do desfiladeiro. Só que com todo aquele barulho ele acordou. E não estava nada satisfeito com isso. Assustado com a situação, Fred puxou o gatilho e a bala atingiu em cheio o ombro da criatura. Mas o Touro sequer recuou. “ROAAAAAAAARGH!!!” urrou o monstro, cerrando os punhos enfurecidamente. Ele tinha sido acordado de seu sono abruptamente e ainda por cima agredido por aquele disparo. A coisa iria ficar feia. — CORRE, FRED! CORRE, c*****o! — gritou o homem menor, escorregando ao tentar virar de costas para voltar de onde veio e caindo no chão. — MEU DEUS! O Touro correu na direção dos dois canibais e acidentalmente pisou com tudo nas costas do rapaz menor, quebrando sua coluna na hora. Luiz Felipe ficou quieto só assistindo aquele pequeno m******e, pois o Touro não mexeria com ele, por conta de sua “imunidade”. — TOMAAAAS! Fred, enlouquecido por ver seu amigo ser pisoteado, desistiu de correr e mirou a espingarda na direção do monstro. Outro disparo foi realizado, atingindo de raspão a bochecha do acinzentado Touro com tufos de cabelo faltando. E mais uma vez isso só serviu para irritá-lo ainda mais. O imenso infectado deu um violento soco de cima para baixo na cabeça de Fred, rasgando seu supercílio e fazendo com que ele caísse com o rosto no chão. Luiz ainda permanecia segurando a faca na mão e horrorizado com a cena. Nunca antes ele viu um Touro tão violento como aquele. Talvez o monstro estivesse assim por que o acordaram de seu sono. — AAAARGH! O infectado se aproveitou que Fred estava no chão ainda zonzo e segurou firme no seu calcanhar esquerdo. O Touro começou a arrastar o canibal até seu covil escuro enquanto ele se debatia. — POR FAVOR! ME AJUDE! POR FAVOR!!! — implorava ele, olhando para Luiz desesperado. O rosto de Fred estava começando a inchar e, além disso, faltavam alguns dentes na sua boca ferida. Luiz Felipe encarou o canibal e sorriu ironicamente. — NÃÃÃÃO! — agonizou o homem, arranhando o terreno com as unhas e se debatendo com violência. Ao perceber que Fred estava inquieto demais, o Touro desistiu de carregá-lo até o canto escuro. Ali mesmo apoiou o pé direito nas costas da presa, segurou firme o calcanhar com as duas mãos e começou a puxar a perna, tentando desmembrá-la do corpo. — AAAAAAAH!!! O sangue espirrou no terreno e a perna descolou da cintura, sendo arrancada violentamente pelo Touro. Fred começou a cuspir sangue e a se tremer por completo. Depois desse esquartejamento, o monstro pisou duas vezes na cabeça do canibal, explodindo-a em vários pedaços. Luiz fechou os olhos após isso. — Meu Deus... O Touro jogou a perna para o lado, caminhou de volta até seu covil, sentou no chão e enterrou a cabeça entre as pernas novamente, voltando a hibernar. Aquela cena foi incrível e macabra ao mesmo tempo. Luiz estava enojado por causa da violência, porém tinha que admitir que a natureza dos Touros era assustadoramente desconhecida. Por que ele esquartejava suas vítimas? Por qual motivo dormia durante o dia e só acordava altas horas da noite? Disso talvez Luiz Felipe nunca soubesse a resposta. Porém de uma coisa ele tinha certeza: precisava arranjar um jeito de sair dali e montar sua cabana. Mesmo com o pé torcido e com um tiro de raspão no antebraço, ele tinha que ter forças para voltar. Não podia permanecer ali. Os infectados não eram mais perigosos para ele, porém Fred avisou que não tinham somente dois canibais, e sim um grupo com vários deles. O que aquela doença tinha feito com o planeta Terra foi algo assustador. Até que ponto os seres humanos chegaram... Mas infelizmente a vida era assim agora. Ou você morria como herói, ou então vivia o suficiente para se tornar o vilão. ... — Bom dia, Lucas! — cumprimentou Sabrina, sorrindo de soslaio. Lucas estava cozinhando arroz com queijo ralado dentro de uma panela. Por sorte o fogão abandonado que tinha no primeiro andar daquela pequena farmácia ainda tinha gás o suficiente para isso. A dupla teve vários problemas ao se mudar para ali, e um deles foi a limpeza do local. A enchente deixou uma grossa camada de lama encrustada no chão e nas coisas do térreo. Foi necessário que jogassem fora diversos objetos e móveis antigos, assim começando a limpar tudo aos pouquinhos. Em uma das torneiras da farmácia ainda saía água (o porquê disso eles não sabiam) e utilizaram-na para encher baldes e lavar todo o piso e as paredes com sabão e detergente. Três dias depois tudo ficou limpo na medida do possível, e com isso eles decidiram morar no primeiro andar provisoriamente, pois a água não tinha alcançado lá direito e a limpeza desse espaço em especial foi bem tranquila. — Bom dia pra você também, Sabrina. Dormiu bem? — indagou o rapaz, mexendo o conteúdo da panela com uma colher de pau. — Tive muito frio, porém isso é o de menos. Como está a janta? Lucas pegou alguns grãos de arroz com a colher de pau e levou até a boca, assustando-se um pouco por estar mais quente do que ele imaginava. — Hm... está ficando bom. Quase pronto. E o nosso estoque de comida? Você crê que ainda estaremos bem por quantos dias? — disse ele, salivando. Sabrina franziu as sobrancelhas e tossiu. — Mais uns quinze dias e teremos que reabastecer. Agora tenho um assunto importante para debater contigo... — afirmou a mulher, pensativa. Lucas deixou a panela sozinha e se aproximou de Sabrina. Ela sentou em cima de uma das estantes de madeira e encarou o rapaz. — Veja só: aqui não tem futuro. Eu quero ser bem direta com você... creio que todos morreram e só sobrou nós dois. Na melhor das hipóteses, eles fugiram. Então não acho que devemos permanecer aqui, tenho medo que a qualquer momento o pessoal do Coronel nos ache e... e faça maldades conosco. Estamos na porra do centro da cidade! Eles moram no nosso condomínio e fazem buscas por perto daqui toda semana! O melhor a se fazer é irmos embora. Nosso armamento se resume a duas pistolas e um rifle. Nem de longe é o suficiente para combater um pequeno grupo de busca deles... o que me diz? — confessou ela, envergonhada por dizer aquilo, porém tentando encarar a verdade sem medo. Era tudo o que Lucas não queria ouvir. O rapaz fixou os olhos no borbulhar da água da panela e permaneceu em silêncio por alguns segundos. — Tudo o que construímos... tudo pelo que batalhamos... meses de trabalho... meses de laços... tudo... nós perdemos. Sabrina sentiu uma pontada de tristeza no coração. Ela imediatamente se arrependeu de ter dito aquilo. Não imaginava o quanto Lucas estava magoado. — Me desculpe ter sido tão direta... mas é a realidade. Você tem que entender que o que aconteceu, passou. Bola pra frente… precisamos sobreviver... Lucas se encostou na parede e começou a olhar para o chão. Ele ainda tinha esperanças de encontrar seus velhos amigos vivos. Isaac, Luiz, Amara, Carla... Todas essas pessoas ele considerava como uma família. E essa era a segunda família que o rapaz perdeu. Seus pais e parentes provavelmente estavam mortos. Agora seus amigos também. — Eu não acredito que perdemos... não acredito que o Coronel venceu... praticamente sem ter baixas! Lucas cerrou os punhos enfurecido, mas antes mesmo que pudesse descontar sua raiva, fechou os olhos. Algumas lágrimas começaram a escorrer. — Não fique assim... — disse Sabrina, descendo do móvel e indo na direção do lutador. Envergonhado, Lucas colocou a mão direita na frente do rosto e continuou chorando baixinho. Ele não queria aceitar a realidade. Perder tudo outra vez... — Lucas... não fique assim. Sabrina se aproximou do rapaz com cautela e repousou a mão em seu ombro direito. Lucas continuou imóvel. — Você ainda tem a mim... — confessou ela, beijando a bochecha do rapaz. Ele não esboçava reação, e se sentia ainda mais envergonhado por chorar. — Vem cá. Sabrina se aproveitou do momento de fraqueza do homem e o puxou para mais perto. A mulher beijou de leve seus lábios e aquilo o surpreendeu. Lucas já estava tão fragilizado emocionalmente que não ligou. Ele precisava disso. Sabrina entrelaçou os braços sobre o pescoço do lutador e o beijou com mais vontade. Os dois se entregaram ao momento e deixaram rolar. No fundo ele se sentia culpado por causa de Luíza, porém tentava tirá-la da mente. A confusão de sentimentos no peito de Lucas era tão absurda que ele não sabia nem o que estava passando dentro de si no momento. Ele só queria beijar Sabrina. A única pessoa que tinha permanecido com ele até o final. — Não diga nada... — cochichou ela no ouvido do rapaz, fazendo-o se arrepiar. O casal continuou se beijando até que foram em direção ao colchonete estirado no chão. Lucas tirou a camisa tanto dele quanto dela e deitou-a. Não importava mais o que tinha acontecido ou deixado de acontecer. Os dois só queriam extravasar e dispersar toda a tensão. Era tudo o que eles precisavam. Um descanso no meio de tanta insanidade.
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