- Capítulo Seis "Os Doze Últimos"

2687 Words
Luiz Felipe estava mancando há horas. Ele tinha se perdido no interior da floresta que ficava perto de Tamandaré. Seu pé doía bastante e a única coisa que podia fazer era continuar caminhando até encontrar o local da armadilha, onde estava sua mochila com todos os seus pertences. No meio do percurso, Luiz deu de cara com vários Touros hibernando. Nenhum deles se incomodou com a presença do rapaz. Isso era incrível, pois pela floresta ser um local calmo, esses infectados especiais preferiam ficar nela até que escurecesse totalmente. Encontrar o caminho de volta tinha se tornado ainda mais difícil por causa do escuro. A noite havia chegado mais rápido do que Luiz pôde perceber e para piorar, tinha um fraco luar. E uma floresta escura era extremamente assustadora. Luiz Felipe não tinha uma lanterna sequer, e se guiava com as mãos erguidas, encostando nas árvores com cautela. Os barulhos dos arredores eram tenebrosos demais. Grilos, sapos, ratos e outros animais zuniam de um lado para o outro, fora o pior de tudo: a muriçoca, que atacava a pele do pobre homem com audácia. Luiz não sabia mais o que fazer: seu pé doía bastante, não conseguia enxergar absolutamente nada, não conseguiria dormir por culpa do ataque frenético de muriçocas e, para piorar, não sabia onde estava. “Puta que pariu, em que merda eu fui me meter?” pensou ele, entrando em desespero aos poucos. Mas se o rapaz se desesperasse as coisas piorariam ainda mais. Chorar, soluçar, gritar ou correr não ajudaria em nada. Mas ele precisava continuar firme. Luiz acreditava que nunca mais encontraria o local da armadilha novamente, até que passou por um compilado de árvores e deu de cara com o pequeno açude perto da cabana velha, com a água reluzindo à fraca luz da lua. “Até que enfim!” pensou ele, apressando-se. A mochila permanecia lá no chão, bem como a sua pistola, toda suja de terra. Luiz pegou o que era seu e montou a barraca perto dali, finalmente descansando. ... Amara Nakamura estava sentada no telhado do segundo andar do hotel “Águas Belas”. A leve chuva batia no seu rosto e mal chegava a formar gotículas. A mulher segurava um binóculo e olhava toda a paisagem destruída ao redor do novo “acampamento”. O grupo de sobreviventes de Amara tinha se mudado para o coração da cidade de Tamandaré/PE (que era litorânea) e fixado moradia em um dos hotéis beira-mar abandonados. Esse hotel era de cor predominantemente branca com traços azuis, tinha dois andares e vinte suítes em cada andar, além de área de lazer e piscina. Ele não era tão seguro, porém certas modificações improvisadas foram feitas pelos novos moradores a fim de melhorar a convivência. Na entrada do hotel (recepção), os sobreviventes fizeram uma imensa barricada com móveis velhos, pedaços de ferro, entulhos e cobriram tudo com uma imensa lona preta (na intenção de tapar a visão de quem olhava do lado de fora e evitar chamar atenção indesejada dos infectados). A única entrada e saída do local era a garagem (que ficava no subsolo alguns metros à direita da recepção e não era muito larga), contando com um portão de aço que corria para o lado, e uma pequena ladeira que guiava os veículos para o subsolo. Exatamente por isso os sobreviventes decidiram utilizar esse local como a passagem de ida e vinda deles, pois seria bem mais fácil defender uma entrada protegida por um portão de aço, do que uma entrada que contava com portas duplas de vidro. A maior fraqueza desse hotel obviamente era a sua parte de trás, que ficava aberta e dava acesso total à praia. Contudo os sobreviventes também conseguiram lidar com isso, criando barricadas de entulhos tanto na direita quanto na esquerda, deixando livre somente o acesso ao mar. Mas se fosse analisar bem, era fácil invadir ali, só pegar um barco e vir pela água, alcançando os fundos do grande hotel. Entretanto, a barricada cumpria seu objetivo, que era o de impedir que os infectados entrassem ali (por serem seres irracionais e abundantes nas redondezas). Os quartos do hotel eram ótimos e os sobreviventes não encontraram nenhum infectado dentro, pois todo o local estava abandonado. A cor das paredes externas, como já mencionado, era branco com traços azuis, e das internas, totalmente branco, contando somente com as portas dos quartos da cor azul-marinho. O porcelanato do chão era bem liso e de cor bege claro. Os móveis dos quartos eram simples e uniformizados: camas de casal, televisores, cômodas, guarda-roupas, estantes, mesas e cadeiras (na varanda) etc. A única diferença que tinha entre os quartos eram dos normais para as suítes de luxo (que realmente valiam a pena, por serem maiores e mais confortáveis, além de contar com banheiras de dar inveja). Demorou algum tempo para que o grupo de sobreviventes de Amara conseguisse fazer uma bela faxina no hotel empoeirado e formar as barricadas, porém eles não tiveram quase nenhum problema (sempre com um ataque de infectados aqui e ali). Para finalizar, no térreo o hotel contava com a recepção, sala de jogos (com mesa de sinuca e videogames), uma pequena academia (com três máquinas somente), uma quadra de futsal do lado de dentro dos muros, sala de estar, uma imensa cozinha e muitas janelas em todos os cantos (que foram vedadas com tábuas de madeira e cobertas com lençóis). Os sobreviventes também estavam indo bem na questão dos suprimentos. Eles se dividiam em pequenos grupos de busca e traziam muitas coisas de supermercados e lojas abandonadas durante o dia. Não chamavam muita atenção e sempre conseguiam voltar bem. Até o momento, pois nunca se sabe o que poderia acontecer. Amara é a atual líder do grupo, sempre tomando as grandes decisões, porém contando com o apoio de Luíza, que tinha amadurecido bastante e se tornado seu braço direito. Já quanto às armas, o grupo estava com muitas dificuldades, pois a delegacia era bem distante dali e eles só podiam contar com o que já tinham, que era seis pistolas, quatro rifles e pouquíssima munição. Mas o pior de tudo não era isso. O clima entre eles era horrível. Bem fúnebre. Depois que perderam a batalha contra os homens do Coronel e tiveram que lidar com a perda de vários amigos e familiares, os sobreviventes não eram mais os mesmos. Sendo doze pessoas, contaram com a adesão de mais quatro integrantes ao grupo, ficando, ao total, formado por: Amara, Pedro, Célia, Alberto (o bebê de Célia), Luíza, Alice (filha de Bruno), Mariana, Sarah, Márcio, Cléber, Renato e Yasmin. Era um grupo pequeno, porém fácil de administrar e com boas pessoas. Os maiores problemas não eram os internos, e sim os externos. Pois ultimamente eles perceberam movimentação do lado de fora. E não foi de infectados. Mas sim de outros seres humanos. Que se não tinham se mostrado até o momento, significava que eram perigosos. Amara sabia disso. E também sabia das limitações de seu pequeno grupo. Ela precisava ficar em alerta o dia inteiro. Não podia dar bobeira. ... — Amara? — chamou Luíza, subindo a escada de madeira que dava acesso ao telhado do segundo andar do hotel. A enfermeira se assustou com a voz da amiga e virou repentinamente, colocando a mão direita na pistola que estava na parte de trás da calça e quase derrubando o binóculo. — Ah... é você. Desculpe por isso... me assustei... Luíza sorriu tranquilamente e caminhou com cautela sob as sujas telhas até sentar ao lado esquerdo de Amara. Elas ficaram alguns segundos admirando a paisagem da cidade-fantasma. Tamandaré estava completamente abandonada. A vegetação tinha começado a tomar conta da área urbana, crescendo pelos buracos da calçada e principalmente nos terraços das casas. As ruas que davam acesso ao hotel eram um grande exemplo disso: vários veículos largados ao relento, o mato começando a tomar conta de tudo e, para piorar, um silêncio assustador que assolava a cidade inteira. Qualquer tiro disparado ou barulho incomum poderia atrair atenção indesejada. — Você ainda tá nessa paranoia de que estamos sendo vigiados? É sério isso? — perguntou Luíza, revirando os olhos. Amara bufou e fingiu não ter ouvido aquilo. — Desculpa... mas veja só: já estamos aqui a quanto tempo? Uns dois meses? Mais? Não faço ideia, só sei que tivemos um trabalho gigantesco para melhorar o hotel. As barricadas, as buscas de suprimentos, a limpeza etc... E nunca encontramos ninguém mais a não ser aquelas quatro pessoas, que aparentemente são tranquilas! Eu acho, com todo o respeito, que você está levando isso muito a sério porque não tem coisa melhor a se fazer no momento! Então relaxe mais... não enlouqueça de preocupações! — pediu Luíza, encostando de leve no ombro da amiga. — Você deve ter razão... eu não aguento mais isso. Todo dia rezo para poder ver Isaac e os demais chegando pelo horizonte, vindo dentro de um carro ou algo assim. Como eu tenho saudades dele... você não faz ideia, Luíza... nem um pouco! — desabafou ela, ficando com os olhos vermelhos e segurando o choro. Luíza também lembrou de sua mãe e de Lucas, as únicas pessoas supostamente vivas que ela amava. — Eu penso no mesmo que você. Oro pedindo para que eles estejam vivos. Luiz, Isaac, Lucas, minha mãe, Sabrina, Luciano... todos! Sem exceção! O que aconteceu foi muito drástico, e nós nunca teremos nossa vingança, é praticamente impossível! Éramos um grupo forte e implacável! Agora nos resumimos a doze pessoas, na sua maioria mulheres e crianças... como foi que as coisas aconteceram tão rápido? Meu Deus! E ela tinha razão. Luíza fixou os olhos no horizonte à procura do sol, mas não conseguia ver nada, pois as nuvens estavam cinzentas e a qualquer momento cairia um temporal naquele fim de tarde. — Na maioria das vezes eu passo horas e horas aqui em cima, olhando os arredores, vendo alguns infectados e lugares abandonados. Só que na verdade fico com esse binóculo procurando sinal de sobreviventes... e até hoje nada. Esse mundo está uma merda, nos tirou tudo de bom... Amara suspirou e ajeitou a franja dos cabelos. Luíza bateu a sujeira de sua calça jeans e abaixou um pouco mais a camisa de regata verde-claro que trajava, para esconder o magro abdômen. — Eu também sinto falta de todos eles. Do jeito sério e decidido de Luiz Felipe, da maneira descontraída e simpática que Isaac era, da bondade de Carla, dos beijos de Lucas e, principalmente, das preocupações de minha mãe. Todo mundo era importante naquele condomínio. Sem exceção. Sabe o pior de tudo? É que no fundo eu acho que nunca mais vou vê-la. Minha mãe era a pessoa mais amável do mundo quando ela queria ser, mas também rude e violenta quando a irritavam. Um exemplo disso foi no dia que ela me viu sentada no colo de Lucas... a mulher enlouqueceu! Quase nos matou! — confidenciou Luíza, sorrindo levemente enquanto que algumas lágrimas caíam. Amara, que também estava chorando baixinho, acabou por soltar uma pequena risada. — Sério que sua mãe fez isso? Ela... ela flagrou vocês fazendo alguma coisa de errado? — perguntou Amara, surpresa. — Não... eu só estava sentada no colo dele, nada demais! Porém aquilo foi o suficiente pra mamãe enlouquecer! Engraçado porque pelo que me lembro uma vez vovó contou que flagrou mamãe e papai transando na rede, e não fez nada demais. Já comigo ela quis me envergonhar... que droga... como eu queria poder voltar no tempo e avisar a todo mundo que ia dar merda! Seria bem melhor se tivéssemos ido embora! Fugido pra cá desde cedo! Mas... mas não adianta chorar pelo leite derramado. O que passou, passou... As duas pararam de rir instantaneamente e permaneceram olhando para as ruas vazias. Já os demais sobreviventes estavam espalhados pelo hotel, cada um em seus quartos (com exceção de Pedro e Márcio, que faziam rondas internas para garantir a segurança do local). Agora elas tinham que conviver com aquilo. Pior que ter a certeza da morte de pessoas que amamos, é ter a dúvida e a (falsa?) esperança de que ainda estão vivas. A dor era inevitável. ... Luiz Felipe finalmente acordou. Ele estava com o corpo todo picado por mosquitos e muito irritado por isso. A noite tinha sido péssima, e agora o rapaz precisava retomar seu rumo, antes que tivesse mais surpresas desagradáveis. Ele se levantou com fortes dores no pé torcido e começou a desmontar sua barraca. “Puta que pariu viu...”. Após arrumar tudo, comeu um pouco de sardinha enlatada com bolachas murchas e andou até a velha cabana em que tinha caído na armadilha. Antes de adentrar no local, Luiz teve certeza de que não estava sendo vigiado e de que não cairia em uma nova armadilha. Ele sorriu ao finalmente ver a caixa de chocolates que tanto desejou anteriormente e, ao abrir e ver seu interior, ficou bastante puto. O conteúdo estava completamente podre. Luiz balançou a cabeça negativamente e, muito irritado, jogou no chão aquele depósito. — Vai tomar no cu! Eu quase me fodi pra NADA! — urrou ele, com raiva. Depois dessa decepção o rapaz decidiu seguir os rastros dos dois canibais para se ter uma noção do tamanho do grupo de onde eles vinham, ou se realmente faziam parte de algum grupo. O pé machucado já não aguentava mais tanto andar, e inchava a cada minuto que passava. Depois de mais de quarenta minutos de caminhada, Luiz começou a escutar vozes que aumentavam de volume cada vez mais, então decidiu ser cauteloso. “Quem são esses caras?” pensou ele, preocupado com aquela situação. Após passar por algumas grossas árvores, o ex-líder da Colina dos Perdidos deu de cara com um pequeno desfiladeiro, que deveria estar a mais ou menos uns três a quatro quilômetros de onde ele acampou. Luiz finalmente encontrou o grupo dos canibais. E o que viu não foi nada legal. Aquele pessoal tinha se instalado na parte baixa da floresta, e moravam em cabanas. Ao redor do acampamento deles tinham vários fios com latas amarradas, provavelmente na intenção de fazer barulho quando algum infectado ou intruso encostar, alertando-os. Luiz pôde contar algo em torno de vinte pessoas, todos aparentemente magros e predominantemente do sexo masculino. Uma notícia ruim era que com eles não tinham crianças, ao menos Luiz não conseguiu ver nenhuma. Algo que chamou atenção foram as fogueiras discretas e as armações de madeira, onde tinha algo esticado nelas, parecido com couro. Luiz precisou de alguns segundos para entender a finalidade daquilo, até que se assustou: o que estava estirado ali não era couro animal, mas sim humano. “Meu Deus do céu… que porra é essa!” Alguns homens riam ao redor de fogueiras e compartilhavam alimentos de procedência duvidosa. Além disso, outros transavam com mulheres completamente despidas na frente de todo mundo, como se fosse algo completamente normal e sem pudor. Luiz também percebeu a presença de algumas jaulas artesanais de madeira, algumas com cadáveres, e outras com pessoas vivas dentro. “Preciso marcar isso aqui...” pensou ele, puxando seu mapa da mochila e marcando exatamente onde ficava o acampamento canibal com uma caneta. Após isso, Luiz Felipe saiu com cautela, na direção contrária daquele local. Ele achava que tinha visto de tudo, mas aquele mundo destroçado sempre o surpreendia. As pessoas eram capazes de coisas surpreendentes quando se tratava de fazer o mal. Em vez de caçar, procurar suprimentos ou até mesmo plantar, aqueles homens preferiram emboscar seres humanos e comer a carne daqueles inocentes. Aquilo era realmente o apocalipse. Luiz, ao sair daquele local em direção à cidade prometeu a si mesmo voltar ali um dia. Ele não conseguiria dormir em paz se não destruísse aqueles monstros. Definitivamente esse pessoal era pior que o grupo do Coronel. Mas agora o que interessava para Luiz era tentar encontrar seu antigo pessoal, só assim ele poderia sentar e planejar um possível ataque àqueles canibais de merda. Caso não conseguisse encontrar seu grupo, ele pensaria em um “Plano B”. 
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