Lyandra
Olhei no relógio: 18h30. O tic-tac parecia debochar da minha cara. Eu estava na recepção do hospital, a mão suando frio, a cabeça latejando, e a Bruna do meu lado tentando puxar assunto qualquer pra eu não desabar ali mesmo.
A médica apareceu na porta com uma prancheta e um olhar sério.
Médica: Mãe da Alice?
Lyandra: Sou eu.
Médica: Ela estabilizou, mas o quadro ainda é delicado. Vou liberar uma visita rapidinha, tá? Precisa descansar.
Assenti e segui pelo corredor gelado. Quando entrei no quarto, vi a minha pequena deitada naquela cama gigante, o soro pingando, o som do monitor marcando presença. Cheguei perto bem devagar, encostei a mão no cabelo dela.
Lyandra: Mamãe tá aqui, meu amor.
Ela abriu os olhinhos devagar, cansada.
Alice: Você vai ficar?
Engoli o choro.
Lyandra: A mamãe precisa resolver umas coisas, mas a tia Bianca vai ficar com você, tá? Ela é um anjo, vai cuidar de você direitinho. Eu volto logo, prometo.
Alice: Tá…
Beijei a testa dela. A febre ainda queimava. Saí do quarto respirando fundo pra não desmontar no corredor. A Bruna já estava no celular.
Bruna: Mãe, a médica liberou visita curta. A Alice tá estável, mas precisa de alguém aqui o tempo todo. Você consegue vir agora?… Aham… Tá. Tô te esperando na recepção.
Desligou e me abraçou forte.
Bruna: A minha mãe já tá vindo. Você sabe como ela é: resolve tudo.
Ficamos esperando. Eu encarava a porta automática abrindo e fechando, abrindo e fechando, como se a vida fosse isso: uma sequência de entradas e saídas que a gente não controla. Uns dez minutos depois, a Bianca surgiu com uma bolsa grande no ombro e a expressão de quem já chega sabendo o que fazer.
Bianca: Cadê minha netinha postiça?
Bruna deu um sorriso cansado.
Bruna: Mãe, ela tá na pediatria, quarto 12. A visita é curta, mas depois a senhora fica como acompanhante.
Bianca: — Ótimo. — Virou pra mim. — Filha, vai com Deus. Vão resolver o que precisam. Deixa a pequena comigo. Eu fico aqui a noite toda, amanhã, o tempo que precisar.
Lyandra: Obrigada, de verdade.
Bianca segurou minhas mãos.
Bianca: Mãe faz o que precisa. Você vai fazer o que precisa também. Sem culpas. Vai.
Ela foi andando. Eu e a Bruna ficamos alguns segundos em silêncio.
Bruna: Vem, Ly. Vamos pra casa se arrumar você. O cara vai passar na boate pra selecionar as meninas. A gente precisa chegar cedo.
No carro, o mundo passava pela janela e eu só repetia na cabeça: é pela Alice. Chegamos na casa da Bruna. Ela não perdeu tempo: abriu o guarda-roupa, puxou uma caixa, espalhou vestido, salto, brilho.
Bruna: Banho primeiro. Demorado. Usa o sabonete de baunilha e o hidratante. Hoje você vai entrar cheirando dinheiro.
Lyandra: Eu tô tremendo por dentro.
Bruna: Tremer é normal. Fugir é opcional.
Entrei no banho. Deixei a água bater no rosto até parar de arder. Passei o sabonete, lavei o cabelo, tentei esfregar a culpa, o medo, a vergonha. Nada saiu, mas eu saí mais firme. Enrolei a toalha e voltei pro quarto. A Bruna já tinha armado a bancada de guerra: base, pó, contorno, iluminador, batom.
Bruna: Senta. Fecha o olho.
Ela trabalhou no meu rosto com a precisão de quem já salvou muitas mulheres de si mesmas. Iluminou minhas maçãs, levantou minha sobrancelha, afinou meu nariz na maquiagem. O batom vermelho me encarou de volta no espelho como se dissesse: “Vai, porra.”
Bruna ergueu um vestido preto curto, justo nas curvas, decote certo, costas nuas.
Bruna: Esse aqui. Sem erro.
Lyandra: É… ousado.
Bruna: Ousado paga conta.
Vesti. O tecido abraçou meu corpo como se tivesse sido feito pra mim. Ela me deu uma calcinha nova, sutiã que levantava o que não precisava, um salto que me deixou mais alta e um spray de perfume nas clavículas.
Bruna: Olha pra mim. — Esperei. — Regras: você só faz o que quiser. Se o cara vier com papo torto, você me dá o sinal.
Lyandra: Qual sinal?
Bruna: Mão no cabelo duas vezes. Eu apareço. Se precisar sair, você sai. Ninguém te obriga a nada. A gente tá indo pra ser escolhida, não pra ser pisada.
Assenti. Ela me entregou uma clutch pequena.
Bruna: Documento, um trocado, batom, absorvente (porque vida é isso), e meu número em cima. O resto você deixa aqui.
Lyandra: E a Alice?
Bruna: Minha mãe manda notícia. Relaxa. Se der r**m, a gente volta.
O celular vibrou. Mensagem da Bianca: “Ela dormiu. Febre baixando. Vão com Deus.” Eu respirei um pouco melhor.
Descemos. O motorista do amigo da Bruna já esperava. Dentro do carro, o cheiro de couro, ar-condicionado frio, e a rua do Vidigal se espalhando pela janela. O morro sempre lindo, sempre duro. Olhei pro céu escurecendo, pedi em silêncio pra qualquer santo que me ouvisse: só hoje, me ajuda hoje.
Bruna percebeu minha reza muda e apertou minha mão.
Bruna: Você não está sozinha, Ly.
Chegamos na boate. Fachada iluminada, fila de gente bonita e segurança de braço cruzado na porta. O motorista nos deixou na lateral, onde as “convidadas” entravam. Um produtor com prancheta olhou a Bruna, reconheceu na hora.
Produtor: Bruna, beleza. E essa é?
Bruna: Lyandra. Primeira vez.
Produtor: — Documento. — Conferiu, marcou algo. — Subam. Camarote dois. O homem chega às 21h30.
Subimos a escada, luz roxa no piso, som batendo baixinho, ainda era cedo. No camarote, outras meninas arrumadas, conversando baixo, passando brilho na perna, ajeitando decote. Umas eu reconheci de vista, outras eu sabia que eram da pista de fora. Todas com o mesmo olhar: foco.
Bruna me sentou no sofá, pediu duas águas com gás.
Bruna: Postura. Ombro pra trás. Queixo alto. Quando chamar, você levanta devagar. Não morde o lábio (fica vulgar), não ri alto (fica forçado). E quando ele olhar, você sustenta o olhar. Sem baixar, sem desafiar demais. Meio-termo.
Lyandra: E se eu travar?
Bruna: Eu destravo você. — sorriu. — Confia.
Eu tentei. Cruzei as pernas, arrumei o vestido, testei o sorriso no reflexo do vidro. O coração fazia maratona no peito. O celular vibrou de novo: “Sem novidades. Ela dorme. Tô aqui.” A Bianca era um farol.
O relógio marcou 21h32. A música ficou um pouco mais alta. O produtor surgiu na porta do camarote.
Produtor: Ele chegou.
As meninas endireitaram a postura. Eu senti um frio percorrer a coluna. Bruna tocou meu joelho, firme, presente.
Bruna: Lembra por quem.
Lyandra: Pela Alice.
A cortina abriu só um pouco e eu vi primeiro os seguranças: dois, três, quatro. Depois, ele. Terno escuro, corrente fina no pescoço, olhar que varria o ambiente como quem escolhe coisa cara. Não tinha pressa. Encostou no corrimão do camarote em frente, conversou com alguém que parecia gerente, apontou, voltou a olhar pra gente.
O produtor começou a chamar uma por uma. As meninas levantavam, davam um giro sutil, diziam o nome. Eu suava nas mãos. Bruna foi antes de mim segura, bonita, experiente. Ele assentiu pra ela com um gesto quase imperceptível. Meu nome ecoou.
Produtor: Lyandra.
Levantei. Senti o salto cravar no carpete macio. Ombro pra trás, queixo alto, sem tremer na perna. Olhei. Ele me encarou por um segundo longo demais. Não piscou. Eu também não.
O silêncio tinha gosto de metal. Ele ergueu o queixo um centímetro e fez um sinal com dois dedos, curto.
Gerente: Camarote do chefe. As duas.
Bruna me puxou de leve pela mão.
Bruna: Vem, amor. - É agora.
Desci os degraus como quem atravessa uma ponte que não tem volta. E, pela primeira vez em muito tempo, eu não senti só medo. Senti raiva organizada. Senti propósito. Senti a Alice segurando meu dedo com aquela mãozinha quente. E vim.