Capítulo 9 — Entre Becos e Segredos

1602 Words
Isadora A máscara ajuda, mas não faz milagre. A laje inteira lateja como um coração grande demais, e eu sinto na pele a alternância entre luz e sombra que mantém o baile vivo. Dora dança, Isadora observa — e é ela quem ouve primeiro a advertência de Tainá, soprada sem alarme, como quem encosta um aviso no meu ombro. — Tem playboy te olhando como se fosse dono. Rio, porque rir me salva do reflexo de correr. O riso também confunde quem acha que me leu inteira. — Relaxa, capitã — digo, mexendo o quadril com maldade mansa. — Aqui ninguém me compra. — Não é sobre preço — ela rebate, firme. — É sobre convite. E você sabe o que teu pai diz. A frase vem inteira, como se Sombra tivesse prendido no teto da minha boca: “Olhar é convite. E convite custa caro.” A lembrança corta fundo. Quantas vezes eu quis ser apenas menina num sábado e virei herdeira do silêncio numa segunda? Eu guardo o aviso. Mudo de posição. Saio da beira da roda, cruzo para o lado contrário, peço licença com a mão aberta, ofereço um sorriso curto como moeda honesta. Perto do bar, o cheiro de gelo molhado e perfume doce me dá abrigo momentâneo. Tainá segue colada na minha lateral, radar ligado. — É aquele, lá — ela aponta com o queixo, sem teatralidade. — Boné virado, camisa clara, sorriso de quem se segura para não chegar. O amigo de preto tem cara de mapa. Não são desrespeitosos. São curiosos. Olho só de canto; aprendi cedo a não fixar, a não dar recibo. O tal boné vira de leve quando a luz passa, como se testasse meu contorno na retina. O outro — o de preto — tem postura de quem lê o lugar antes de falar. E, por um instante, algo estranho me conforta: eles não procuram cena; procuram sentido. Isso é perigoso de outro jeito. — Troca — digo, baixinho. Tainá entende: giramos de posição, como dupla afinada. Quando os olhos deles procuram, encontram outra luz, outro corpo, outra fumaça. Eu reaprendo minha tática de infância: estar no quadro sem estar na foto. A batida cai num recorte de voz antiga. O morro responde com palmas e gargalhadas. Uma menina me pede glitter emprestado, eu passo com o dedo e ela me chama de “fada secreta”. Sorrio, porque Dora cabe em adjetivos pequenos. Isadora não. O celular — ainda em modo avião — pesa no bolso como pedra. “Te vejo.” A mensagem não apaga da memória. O cuidado de Sombra tem olhos compridos; às vezes, mesmo quando não olha, olha. Penso no terço de Dona Nilda, escondido contra a pele. Penso na minha mãe girando com a colher de p*u, roubando dor do dia como quem rouba açúcar da despensa. — Fica aqui mais duas músicas — Tainá decide, meu anjo da guarda com crachá informal. — Depois a gente respira na lateral e volta pela Viela da Pipa Azul. É corredor de respiro. Se o playboy tiver juízo, ele aprende a te perder. — E se não tiver? — A gente ensina. Obedeço. Danço um pouco, não muito. Dora se permite menos ousadia; Isadora mede saídas. O olhar do boné vem e vai com disciplina. Não é cerco, é aposta. O de preto — o tal mapa — pisa com cuidado de quem sabe que lugar tem gramática. Isso me inquieta mais do que me ofende. — Água — Tainá pede a um vendedor, sem tirar os olhos do entorno. Bebo um gole, passo outro pelo pulso. É hora do deslocamento. Deslizamos pela lateral do bar, onde o som troca de textura: a voz fica mais presente, o grave menos bruto, a conversa se torna possível na faixa entre música e trepidação. Passo por uma moça ajustando a alça do top, por um menino equilibrando três copos numa mão, por um casal que faz as pazes em língua própria. n**o Célio surge no corredor, conversando no rádio. Ele me reconhece sem me expor: um aceno de queixo vale um corredor limpo. Gratidão silenciosa também é regra. — Respira — Tainá orienta. Sinto o ar frio bater na máscara e aliviar a pele quente. O suor baixa. A adrenalina também. A vontade de sumir disputa espaço com a vontade de ser vista do jeito certo. Eu sou híbrida nisso: metade fuga, metade farol. A memória puxa de novo: Sombra me ensinou os nomes das ruas como quem ensina orações. “Rua 1, Rua 2, Estrada da Gávea; ladeira tal, travessa tal. Se ouvir grito, abaixa. Se ouvir silêncio demais, abaixa também.” Amo e odeio que ele esteja certo. — Vamos pela pipa, agora — Tainá indica, e eu sigo. A viela faz um L tímido, paredes pintadas de azul que já perderam o primeiro brilho, um desenho de pipa no alto como assinatura do lugar. Cheiro de pastel, risada de criança em versão eco, duas cadeiras de plástico encostadas. É um respiro. A música chega filtrada, educada por tijolo. — Tá escutando? — Tainá pergunta. — O quê? — O teu corpo dizendo que existe sem pedir desculpa. Deixo o peso escorrer pelos calcanhares. Existe, sim. E não pede desculpa. Só que existir tem risco. E eu sou treinada para sumir antes de ser pega — por desconhecidos ou pelo meu pai. — Voltamos por onde? — pergunto. — Corredor do bar. É jogo curto. Sem gracinha, sem “deixa eu ver aquilo de perto”. A gente entra, dança duas, te devolvo pra Rua 1. Se teu pai olhar, a gente já não tá. Assinto. Ajusto a máscara, confiro o elástico, passo o dedo na linha do batom como quem sela um acordo comigo mesma. Dora volta à pista. Isadora segura a rédea. Entramos no corredor. É o mesmo de antes, mas a vida movida pela batida o embaralhou um centímetro para cada pessoa que passou. A lâmpada fria treme mais; a fumaça desenha arabescos; o gelo no balcão virou lago quebrado. O bartender me reconhece com um levantar de sobrancelha. Tainá passa à frente para abrir caminho com gentileza assertiva. E então acontece. Não há aviso. Um toque de mão sem querer — a palma de alguém roçando o meu antebraço no exato ponto em que a pele aprende a guardar calor. Choque elétrico. Quente, não agressivo. Reflexo, não captura. A corrente sobe rápida, encosta no terço, espalha uma lembrança que não sei nomear. Meu corpo responde antes de mim: o coração tropeça, os pulmões erram a batida, o joelho considera fraquejar e desiste. Tainá vira o rosto na hora, pronta para o “agora” que significa sair. — Desculpa — a voz do toque vem limpa, próxima do ouvido, baixa o suficiente para respeitar e alta o bastante para existir. Não é voz de assalto, nem de atrevimento. É voz de quem pede passagem e me oferece, por um segundo, a chance de olhar. Eu não olho. Eu puxo o braço. Não por medo dele — por medo de mim. O choque acendeu um lugar que eu mantenho guardado a sete chaves: o lugar onde alguém me toca sem exigir nada e, ainda assim, mexe em tudo. — Bora — Tainá sussurra, âncora na palavra. A mão dela encontra a minha, sela aliança, puxa com firmeza de irmã mais velha. Escapo. O corredor gira um pouco. A música volta a ocupar o espaço que ameaçou ceder. Passo por detrás de dois rapazes, contorno um poste, quase esbarro numa bandeira pendurada. Não corro; desapareço. É técnica e é instinto. Célio nos vê pelo r**o de olho e não pergunta. Guardiões experientes reconhecem quando a noite exige sumir. — Respira comigo — Tainá pede, já nos devolvendo à parte mais cheia, onde anonimato é massa. — Um, dois, três… Isso. Olha pro chão. A música te guarda. Agora a saída. Eu obedeço com o corpo e desobedeco com o coração. Ele quer entender quem foi a voz, quem foi a mão, quem sou eu quando alguém me toca sem me reduzir a sobrenome. Só que a regra vence: entra certo, sai certo. O morro permite romance, mas não perdoa distração. — Você está bem? — Tainá pergunta. — Estou — respondo, e a verdade vem com pressa. — Estou e não estou. Quero e não posso. — Então guarda o que quer — ela aconselha. — Vontade não é confissão, é direção. A gente escolhe hora de seguir. No alto, o set do Caio acende como aurora particular. A laje responde, mãos sobem, um canto coletivo explode. Eu pisco dentro da máscara e sinto duas lágrimas teimosas ameaçarem. Empurro de volta. Não agora. Ainda falta atravessar a Rua 1 e deixar Dora na porta de casa, sem que Isadora seja flagrada. — Vamos — digo, com a voz de quem aprendeu a sair antes de virar história. Descemos a escada da banca vermelha, pegamos o fluxo, viramos na Viela da Pipa Azul e, por um segundo, eu dou meia-volta por dentro, como se uma parte de mim ficasse. O toque parece gravado na pele, uma marca sem marca. Sombra diria que convite tem preço. Eu digo que existência também. Ao atravessar a esquina, olho sem querer para trás — reflexo t**o —, mas a massa engole tudo o que é nítido. O corredor volta a ser corredor, o bar volta a ser bar, a mão volta a ser mão de alguém. Só eu sei que uma eletricidade ficou. Eu puxei o braço e escapei. Do mundo ou de mim, ainda não sei.
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