4. Capitulo – A Geometria do Invisível

1718 Words
E o dia m*l tinha começado. Era o primeiro dia útil do mês, e, para Kiara, isso significava recomeçar uma dança perfeitamente coreografada — invisível para todos, exceto ela. Sentada à mesa longa da sala de reuniões ainda vazia, com o tablet equilibrado no colo, ela deslizava os dedos com a precisão de quem já conhecia cada passo. Iniciou um novo check-list, como fazia religiosamente a cada início de ciclo. Havia algo de reconfortante naquele ritual: repetir, revisar, prever. O mundo de Nicolas era um caos elegante — e ela era a única capaz de mantê-lo girando sem desmoronar. Primeiro item: roupa sob medida para o jantar diplomático. Clara, a estilista de confiança de Nicolas, já havia enviado imagens e sugestões. Kiara digitou uma resposta rápida, agendando a prova do terno para sexta-feira, às 9h. Sabia que ele chegaria atrasado, então marcou 8h30 no calendário dele. Uma meia mentira a serviço da eficiência. Segundo item: reposição da adega. O inventário enviado por Sabrina estava atualizado. Kiara conferiu cada rótulo, cada garrafa que Nicolas jamais pediria — mas sempre esperava encontrar. Adicionou duas do Pinot noir favorito dele. Não por necessidade, mas por cuidado. Um detalhe silencioso. Quase íntimo. Terceiro item: itens pessoais a revisar. A parte que sempre a fazia pausar por um segundo. No aplicativo interno de organização, ela revisava tudo: lembretes médicos, datas de renovação de passaportes, aniversários esquecidos de amigos importantes, notificações de clubes exclusivos que ele jamais lia. Era quase como viver a vida dele — por ele. Ao final da lista, como sempre, digitou para si mesma: “Isso é só mais um dia.…” Suspirou. E só então percebeu que ele estava ali. Nicolas. Encostado à porta de vidro, observando-a. Como se estivesse vendo algo que ainda não compreendia completamente. — Como consegue fazer tudo isso sem enlouquecer? Ele perguntou, entrando com um café em mãos. O café que ela havia mandado preparar exatamente como ele gostava. — Eu já enlouqueci. Respondeu, sem tirar os olhos da tela. — Só faço parecer que não. — E faz isso muito bem. Ele se sentou, os olhos ainda fixos nela. — Sabe o que é realmente assustador? — Você? Retrucou, no tempo exato, como quem já conhecia o ritmo de cada provocação. — O quanto você conhece minha vida. Tudo. Meus gostos, minhas senhas, meus caprichos... até meus padrões de autossabotagem. Ela ergueu os olhos por um instante, séria, mas com um resquício de humor. — Eu sou paga para isso. — Não. Você é paga para ser eficiente. Mas você ultrapassa isso. Você... conhece até os meus silêncios. Kiara hesitou. Aquele tipo de frase era perigoso. Tinha peso. Tinha cheiro de fronteira cruzada. Então ela puxou o ar e disse: — É por isso que, todos os dias, eu tento me lembrar: isso aqui é só um trabalho. Nicolas não respondeu de imediato. Olhou para o café, depois para ela. E sorriu. Aquele sorriso que usava quando queria evitar dizer algo verdadeiro demais. — Um trabalho que você faz melhor do que qualquer pessoa já fez. Ela desviou o olhar. Fingiu que o elogio não a atingia. Mas suas mãos desaceleraram no teclado. — Você tem uma reunião com o Sheik às 15h. Disse, retomando o tom profissional. — Vai querer levar presente? Ele se levantou, caminhando de volta à porta. — Surpreenda-me. Você sempre surpreende. Kiara apenas assentiu, voltando ao tablet. Mas havia um leve tremor nos dedos. Como se algo, dentro dela, tivesse se deslocado. ** Quase quatro meses. Ela sabia o número exato de dias, mas preferia arredondar — como quem tenta enganar o próprio coração. O calendário digital no tablet exibia colunas perfeitas, como se o tempo pudesse mesmo ser domado. A rotina agora seguia um ritmo quase litúrgico: cada compromisso previsto, cada almoço ignorado, cada madrugada reorganizando os restos do caos discreto que era a vida de Nicolas. Mas havia algo que continuava a incomodá-la. Pequeno. Repetitivo. Irritante como uma pedra no salto alto. Flores. Mais especificamente: comprar flores para mulheres com quem ele dormia. — Seja criativa. Talvez eu saia com ela de novo. Ele dizia, com aquele meio sorriso indecente, como se pedisse um favor banal. Como quem pede mais gelo no uísque ou para reagendar um voo. Kiara revirava os olhos. Sempre. Com gosto. Naquele dia, a solicitação chegou por mensagem curta. Apenas um nome — Ludmila — seguido de três palavras: Flores. Agradeça. Sutil. Ela apoiou o tablet sobre a mesa, respirou fundo e, só por um segundo, considerou mandar um buquê de cactos. Com um bilhete: “Com você, ele nem precisou se espetar. Já foi suficiente. ” Mas não. Isso seria antiético. E pessoal. Muito pessoal. Em vez disso, enviou uma solicitação à florista que já sabia exatamente o tipo de arranjo necessário: algo delicado, elegante, sem ser sentimental. Um presente pós-noite, não pós-amor. Eram essas nuances que a incomodavam. Não as mulheres. Não o fato de Nicolas ser absurdamente bonito, charmoso, e impossível de se prender a qualquer coisa — exceto, talvez, à própria liberdade. O que a incomodava era o quanto tudo aquilo se tornara normal. O quanto ela conhecia o padrão. Sabia quando ele ligaria. Sabia quantos dias após o “encontro” ele lembraria de agradecer. Sabia até que tipo de flor funcionava para cada tipo de mulher. Peônias para as sensíveis, orquídeas para as sofisticadas, tulipas para as que fingiam não se importar. E, por mais que repetisse a si mesma que era só um trabalho, apenas mais uma tarefa a ser executada com elegância e precisão, algo dentro dela estremecia sempre que digitava o nome de uma flor. Nicolas não sabia disso. Ou talvez soubesse. E fingisse não saber, como fingia que aquela vida era suficiente. Naquela manhã, ao aprovar o envio do arranjo, ela escreveu no cartão: “Foi uma noite encantadora. Espero que você saiba a raridade disso. ” Ou, mais seco: “Encantadora. Cuide-se.” Depois, pensou no que gostaria de escrever — e esse pensamento não dito a corroeu. Fez o pedido, apagou a notificação da tela e voltou ao trabalho como se nada tivesse acontecido. Mas à noite, quando entrou no carro para voltar para casa, demorou mais do que o habitual para ligar o motor. E agora, a sensação incômoda de que talvez, aos poucos, estivesse se tornando uma das flores. Cuidada. Escolhida. Mas jamais colhida de verdade. ** O Sheik Cristhian foi surpreendentemente compreensivo com a mudança de planos. Quando Kiara ligou para ele, pontualmente às nove, sua voz soou tranquila — quase como se já esperasse por aquilo. — Claro, Kiara. Chegarei ao escritório às dezesseis. Nesse meio tempo... você poderia acompanhar Amanda às compras? — Com prazer. Respondeu ela, tão polida quanto eficiente. Desligou a chamada e, sem hesitar, trocou o blazer corporativo por um vestido azul-marinho simples, sapato baixo, e seguiu rumo ao apartamento de Nicolas. Precisava verificar se o presente diplomático já havia sido entregue — uma peça de madeira talhada à mão, encomendada de um artesão italiano. O tipo de coisa que Nicolas só lembraria no momento exato de entregar. O apartamento ocupava um andar inteiro de um edifício em frente ao rio, uma fortaleza silenciosa de vidro, mármore e aço escovado. Kiara conhecia cada metro quadrado. Estivera ali tantas vezes, sempre por razões práticas: preparar malas, aprovar reformas de última hora, substituir objetos decorativos com os quais Nicolas subitamente perdera a paciência. Ela cuidava dos detalhes invisíveis que mantinham sua vida em constante e confortável movimento. Fora que o apartamento dele ficava exatamente de frente para o que ela ocupava. Foi recebida por Elisa, a funcionária que trocava as flores nos vasos de cristal com precisão quase cirúrgica. — Bom dia, dona Kiara. — Bom dia, Elisa. Está tudo ótimo, como sempre. Seguiu direto para o escritório. O ambiente era uma extensão da personalidade dele — funcional, sofisticado, sóbrio até a exaustão. Abriu gavetas com o cuidado de quem conhecia cada alça, cada pequena resistência da madeira. Nada da caixa de madeira polida. Sobre a escrivaninha, apenas papéis organizados, uma caneta Montblanc... e um pequeno carro de madeira. Aquilo chamou a sua atenção. Pegou-o com cuidado. Era rudimentar, quase infantil. Imperfeito, feito por mãos inexperientes — ou muito jovens. O contraste com o restante do ambiente era gritante. Não harmonizava com nada ali. E talvez por isso permanecesse invisível até aquele momento. Kiara girou o carro entre os dedos. Era leve. Frágil. Havia algo de íntimo ali. De pessoal. Sem conseguir explicar o desconforto, devolveu o objeto exatamente como estava e deixou o escritório. Decidiu passar no quarto antes de sair. Separaria algumas camisas limpas para ele — um gesto prático. Nada além disso. Ou assim queria acreditar. O quarto de Nicolas era o único espaço do apartamento que sempre a desconcertava. Talvez porque havia ali uma espécie de honestidade silenciosa. A porta era de mogno do lado de fora, mas de ébano por dentro — uma alteração caprichosa feita por Nicolas num impulso estético que, segundo ele, “fazia mais sentido ao acordar”. O mesmo tom escuro se repetia nos móveis: a cama imensa, as poltronas, o criado-mudo. Uma harmonia de sombras e formas definidas, como ele mesmo. Outra funcionária trocava a roupa de cama com discrição e eficiência. Kiara apenas assentiu e foi até o armário embutido. Separou quatro camisas — três brancas, uma azul clara — dobrando-as com cuidado meticuloso. A vista pela janela era absurda. A cidade ali embaixo, os barcos no rio, o céu de fim de manhã clareando aos poucos. As cortinas longas e pesadas misturavam tons de marfim e preto, com um discreto toque de verde pistache — a única ousadia cromática do ambiente. Exceto, claro, pela própria vista. Era tudo tão perfeitamente calculado que parecia um cenário montado. Ainda assim, naquele espaço onde tudo era intencional, havia algo que exalava vulnerabilidade. Como se a ausência dele deixasse marcas. Como se, de algum modo, Nicolas estivesse ali — mesmo quando não estava. Talvez fosse o perfume ainda pairando no ar. Ou que, em todos os lugares por onde ela passava, deixava um pouco de si — e recolhia um pouco dele, sem querer. Saiu com as camisas cuidadosamente empilhadas nos braços — e os pensamentos mais desordenados do que gostaria de admitir.
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