POV IAN
Se você acha que um flash da câmera pode capturar a alma de alguém, está enganado.
Eu tentei. Por anos.
Capturei olhos tristes, sorrisos falsos, mãos tremendo, sangue no canto dos lábios… mas a alma? Essa sempre escapa.
Acho que, no fundo, estou mais interessado em congelar o que dói. Paralisar a queda antes de tocar o fundo. Quem sabe, se você olhar para a imagem o tempo suficiente, ela congele a dor de verdade.
Spoiler: não funciona.
Estava no meu estúdio, um loft com paredes cruas de concreto, cheiro de café vencido e um leve resquício de fumaça de cigarro de menta. Meus dedos tremiam levemente quando limpei a lente da câmera. Não era pela droga da noite anterior — quer dizer, talvez um pouco — mas principalmente porque o telefone não parava de tocar desde que os corpos começaram a aparecer.
DreamFire.
A palavra girava na minha cabeça como uma maldição. Era suja, nova, brilhante. O tipo de coisa que os jovens pensavam ser rebelde e os velhos sabiam ser suicida.
Levantei e me aproximei da janela. A vista dava para o centro do distrito oeste. Os Laurent sempre foram os mais “sofisticados” das quatro facções — ou pelo menos gostavam de pensar assim. Vestiam bem, usavam relógios caros e usavam drogas como se fosse vinho francês.
Mas alguém estava sujando o vinil de nossas festas.
O telefone tocou de novo. Atendi.
— Fala.
— Ian. — Era Elisa, minha superior direta, e uma das únicas pessoas que ainda me tratava como um ser funcional. — Dois clubes nossos foram fechados por overdose de DreamFire. Mais três usuários mortos. A imprensa já tá no encalço. Precisamos de um nome. Uma origem. Agora.
— Tô em cima. — menti.
— E limpa sua merda, Ian. Todo mundo sabe que você anda usando outra vez.
Clique.
Joguei o telefone no sofá. A verdade é que eu estava limpo havia três semanas. Um recorde. Mas ninguém acreditava mais em mim. Nem eu mesmo.
O problema era que DreamFire estava surgindo em locais seletos, locais que nós controlávamos. Mas ninguém dos Laurent seria e******o a ponto de vender isso aqui. Pelo menos, não sem aprovação de cima. E se alguém aprovou... eu precisava saber quem.
Fui até a prateleira onde guardava meus arquivos. Caixas com negativos, fotos descartadas, dossiês particulares. Peguei uma pasta marcada com um símbolo pintado à mão: duas serpentes entrelaçadas.
Os Serpentes.
Era tudo que eu tinha sobre eles. E no fundo da pasta, uma foto amarelada que eu sempre evitava. Nela, um homem sorria para a câmera. Cabelo castanho, rosto esculpido, olhos dourados. Um charme nojento, típico dos filhos da p**a que sabem que podem tudo.
O pai da garota que eu nunca tive coragem de conhecer pessoalmente, mas que assombra meu sono desde que ouvi seu nome pela primeira vez: Ray.
A única assassina dos Filhos de Lilith que já matou alguém antes mesmo de completar 14 anos.
Cruzei com ela uma única vez, de longe. Ela não me viu. Mas eu a vi. E vi o que ela fez. Frio. Rápido. Cirúrgico.
Não era por prazer. Era por necessidade. E isso é muito, muito pior.
Fechei a pasta e vesti o casaco preto. Tinha uma reunião marcada com um dos contatos dos clubes fechados. Talvez ele falasse algo. Talvez me mandasse tomar no cu. A cidade não se importava. Ela continuaria girando, jogando luz e lixo na mesma intensidade.
Mas hoje… eu precisava encontrar algo.
Desci os andares da torre Laurent, cumprimentando rapidamente alguns membros da segurança. Nenhum deles confiava em mim. E eu não confiava neles. Ótimo acordo silencioso.
O contato me esperava em um café decadente do centro-oeste, onde os mafiosos e artistas quebrados dividiam mesas e ressacas.
— Você é o Laurent? — perguntou um garoto de vinte e poucos anos, cabelo raspado, suando mais que um porco num açougue.
— Eu sou o cara que vai te encher de porrada se você mentir pra mim.
— c*****o, velho. Tá bom, calma. Eu sei de onde veio o DreamFire. Pelo menos, parte dele.
Me sentei. Estava calmo por fora. Por dentro? Um terremoto.
— Fala.
— Eu ouvi que ele vem do leste, mas não da facção. De um desgraçado que saiu de lá faz uns anos. Um tal de…
— Corvo. — completei, sentindo um arrepio descer pela coluna.
Ele assentiu.
— É. Esse mesmo. E disseram que ele tem proteção. Tipo, pesada. Alguém que quer jogar todos contra todos. Bagunçar o tabuleiro. Começar uma guerra pra depois vender segurança.
Suspirei e encostei o corpo na cadeira.
Corvo. Os boatos estavam certos. E ele tinha um plano maior. Muito maior.
— Você vai sumir por um tempo — falei ao garoto, já me levantando. — E se abrir essa boca de novo, vai desejar ter morrido com os outros viciados.
— Eu… entendi.
Saí do café com a cabeça a mil.
A droga circulava em três territórios. O nome Corvo era comum nas três investigações. E o nome Ray estava cada vez mais perto da superfície dos meus pensamentos.
No celular, uma notificação nova:
📩 Mensagem de Elisa:
“Reunião de emergência. Um m****o de cada facção. Ailin está organizando. Vai.”
Ah, ótimo.
Um Laurent, um Lycan, uma Filha de Lilith.
Só podia dar merda.
Ou... talvez... fosse o início de algo diferente.
Algo que eu nunca soube nomear.