O Choro do Bebê

1117 Words
O som dele foi o mais bonito que já ouvi. Fraco. Tremido. Mas vivo. Era o choro de um bebê que ainda aprendia a respirar, mas que já sabia, por instinto, o que significava lutar. Três dias tinham se passado desde o parto. E ainda assim, toda vez que aquele pequeno som ecoava do outro lado do vidro, o coração dentro do meu peito batia junto. Eu continuava internada, por precaução. O corpo ainda doía, a alma ainda tentava entender tudo o que aconteceu. O bebê — meu bebê — estava na incubadora, pequeno demais, envolto em tubos e fios que me cortavam só de olhar. Leonardo passava as noites ali. Não dormia. Não falava. Apenas observava o filho, as mãos apoiadas no vidro, como se o simples toque pudesse protegê-lo. Naquela manhã, acordei e o encontrei do mesmo jeito. Sentado na cadeira do corredor, os olhos vermelhos, o terno amassado, as olheiras fundas. — Você não dormiu de novo. — disse, com a voz fraca. Ele virou pra mim, um pequeno sorriso cansado nos lábios. — Não consigo. Tenho medo de fechar os olhos e ele precisar de mim. — Os médicos disseram que ele tá reagindo bem. — tentei confortar. — Eu sei. — ele assentiu. — Mas ainda é pequeno demais. Me apoiei na beira da maca, sentindo o corpo pesar. Leonardo se levantou rápido. — Ei, calma. Eu te ajudo. — Eu quero vê-lo. — murmurei. Entramos na UTI neonatal. O ar tinha um cheiro diferente — mistura de álcool e esperança. As luzes brancas refletiam nos pequenos berços. E ali, em meio a tantos bebês, estava o meu. Tão pequeno que parecia feito de vidro. A respiração curta, o peito subindo e descendo com esforço. Mas o coração dele batia. E isso bastava. Toquei o vidro e sussurrei: — Oi, meu amor… a mamãe tá aqui. Do outro lado, Leonardo ficou imóvel. O olhar fixo no filho, como se o mundo inteiro coubesse ali. — Ele é tão… — ele começou, mas a voz falhou. — Tão frágil. — É. — respondi. — E mesmo assim, mais forte do que nós dois juntos. Ele sorriu de leve, os olhos marejados. — Eu não sabia que era possível amar tanto alguém tão pequeno. — O amor é assim. — murmurei. — Cresce em silêncio. Ficamos ali, em silêncio, observando. O som dos monitores, o bip ritmado, o ar-condicionado constante. Leonardo apoiou a testa no vidro. — Eu não vou sair daqui enquanto ele não estiver pronto pra ir pra casa. — Você devia descansar. — Eu descansei a vida inteira. — respondeu. — Agora é hora de ficar. As horas passavam lentas. O tempo parecia se medir em batimentos cardíacos. Cada respiração do bebê era uma vitória. Eu tentava ser forte, mas às vezes o medo me vencia. O medo de perdê-lo. De o destino cobrar caro demais por tudo que vivi. Certa tarde, o médico entrou. — Ele tá reagindo muito bem. Logo vai poder sair da incubadora. As lágrimas vieram sem aviso. Leonardo segurou minha mão e a apertou. — Ouviu isso? — sussurrou. — Ele é forte. Igual à mãe. — Não. — sorri, fraca. — Igual ao pai. Naquela noite, fiquei sozinha por alguns minutos. Leonardo tinha ido buscar café. O quarto estava silencioso, o som das máquinas preenchendo o vazio. Olhei pela janela de vidro e o vi lá, na incubadora. O bebê se mexeu. E, de repente, o choro ecoou. Um som fino, fraco, mas cheio de vida. Meu coração parou por um instante. As lágrimas vieram, descontroladas. Era o som da vida gritando de volta. O som do meu filho dizendo: “eu venci”. Leonardo apareceu correndo. — Ele chorou! — disse, ofegante. — Você ouviu? Assenti, sorrindo entre lágrimas. — Ouvi. — Foi a coisa mais linda do mundo. — ele sussurrou, olhando pro vidro. — Eu nunca mais vou esquecer esse som. Mais tarde, o choro cessou, e o bebê adormeceu. O quarto ficou em paz. Leonardo se aproximou de mim, os olhos marejados. — Você sabe o que é estranho? — perguntou. — Eu nunca acreditei em Deus de verdade. Mas quando ele chorou, eu senti alguma coisa aqui. — colocou a mão no peito. — Como se alguém tivesse me perdoado. Olhei pra ele, emocionada. — Talvez tenha sido ele. — toquei o vidro, observando o bebê. — Ele perdoou a gente por tudo. Leonardo se ajoelhou ao meu lado. — Isabella, eu… — a voz dele falhou. — Eu não sei o que fazer pra merecer vocês. — Não precisa fazer. — respondi, calma. — Só precisa ser. Ele engoliu o choro. — Eu quero aprender a ser pai. E se um dia você deixar… quero aprender a ser marido também. As palavras dele ficaram no ar, leves e verdadeiras. Não prometiam perfeição, só vontade. — Vamos começar do começo, então. — sussurrei. — Ele precisa de nós dois. Na manhã seguinte, o médico liberou a primeira visita sem o vidro. Com luvas e máscara, pude tocá-lo. O corpo minúsculo, a pele macia, o calor frágil. Quando segurei o dedinho dele, senti algo que não sentia há muito tempo: paz. Leonardo estava atrás de mim, observando, em silêncio. Quando o bebê mexeu a mãozinha e agarrou o dedo dele, o tempo parou. As lágrimas caíram. Ele riu e chorou ao mesmo tempo. — Ele tem a minha força… — murmurou. — E o meu coração. — completei. Depois de dias de medo, veio o primeiro sorriso. Pequeno, quase imperceptível, mas suficiente pra acender o quarto inteiro. O médico disse que logo ele poderia ir pra casa. E pela primeira vez, o hospital não parecia um lugar de dor, mas de recomeço. Leonardo ficou ao meu lado, os olhos fixos no bebê. — Eu passei a vida controlando tudo, Isabella. Mas esse menino me mostrou que nada mais importa. Olhei pra ele, emocionada. — Bem-vindo ao amor de verdade. Ele sorriu. — E ao medo também. — O medo só existe porque o amor é grande demais. — respondi. No fim da tarde, o bebê acordou de novo. Os olhos ainda semicerrados, a respiração calma. E então, como se soubesse que estávamos ali, chorou de novo. Dessa vez, o choro não doeu. Foi música. Um som que dizia: “estou aqui, e vocês também.” Leonardo segurou minha mão e, com a outra, tocou o vidro. — Ele tem o seu coração, Isabella. Firme, pequeno… mas teimoso o bastante pra continuar batendo. Fechei os olhos e sorri. Porque, naquele instante, tudo o que fomos — dor, culpa, raiva — se transformou em uma única coisa: amor. E era o suficiente.
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