O som dele foi o mais bonito que já ouvi.
Fraco. Tremido. Mas vivo.
Era o choro de um bebê que ainda aprendia a respirar, mas que já sabia, por instinto, o que significava lutar.
Três dias tinham se passado desde o parto.
E ainda assim, toda vez que aquele pequeno som ecoava do outro lado do vidro, o coração dentro do meu peito batia junto.
Eu continuava internada, por precaução.
O corpo ainda doía, a alma ainda tentava entender tudo o que aconteceu.
O bebê — meu bebê — estava na incubadora, pequeno demais, envolto em tubos e fios que me cortavam só de olhar.
Leonardo passava as noites ali.
Não dormia.
Não falava.
Apenas observava o filho, as mãos apoiadas no vidro, como se o simples toque pudesse protegê-lo.
Naquela manhã, acordei e o encontrei do mesmo jeito.
Sentado na cadeira do corredor, os olhos vermelhos, o terno amassado, as olheiras fundas.
— Você não dormiu de novo. — disse, com a voz fraca.
Ele virou pra mim, um pequeno sorriso cansado nos lábios.
— Não consigo. Tenho medo de fechar os olhos e ele precisar de mim.
— Os médicos disseram que ele tá reagindo bem. — tentei confortar.
— Eu sei. — ele assentiu. — Mas ainda é pequeno demais.
Me apoiei na beira da maca, sentindo o corpo pesar.
Leonardo se levantou rápido.
— Ei, calma. Eu te ajudo.
— Eu quero vê-lo. — murmurei.
Entramos na UTI neonatal.
O ar tinha um cheiro diferente — mistura de álcool e esperança.
As luzes brancas refletiam nos pequenos berços.
E ali, em meio a tantos bebês, estava o meu.
Tão pequeno que parecia feito de vidro.
A respiração curta, o peito subindo e descendo com esforço.
Mas o coração dele batia.
E isso bastava.
Toquei o vidro e sussurrei:
— Oi, meu amor… a mamãe tá aqui.
Do outro lado, Leonardo ficou imóvel.
O olhar fixo no filho, como se o mundo inteiro coubesse ali.
— Ele é tão… — ele começou, mas a voz falhou. — Tão frágil.
— É. — respondi. — E mesmo assim, mais forte do que nós dois juntos.
Ele sorriu de leve, os olhos marejados.
— Eu não sabia que era possível amar tanto alguém tão pequeno.
— O amor é assim. — murmurei. — Cresce em silêncio.
Ficamos ali, em silêncio, observando.
O som dos monitores, o bip ritmado, o ar-condicionado constante.
Leonardo apoiou a testa no vidro.
— Eu não vou sair daqui enquanto ele não estiver pronto pra ir pra casa.
— Você devia descansar.
— Eu descansei a vida inteira. — respondeu. — Agora é hora de ficar.
As horas passavam lentas.
O tempo parecia se medir em batimentos cardíacos.
Cada respiração do bebê era uma vitória.
Eu tentava ser forte, mas às vezes o medo me vencia.
O medo de perdê-lo.
De o destino cobrar caro demais por tudo que vivi.
Certa tarde, o médico entrou.
— Ele tá reagindo muito bem. Logo vai poder sair da incubadora.
As lágrimas vieram sem aviso.
Leonardo segurou minha mão e a apertou.
— Ouviu isso? — sussurrou. — Ele é forte. Igual à mãe.
— Não. — sorri, fraca. — Igual ao pai.
Naquela noite, fiquei sozinha por alguns minutos.
Leonardo tinha ido buscar café.
O quarto estava silencioso, o som das máquinas preenchendo o vazio.
Olhei pela janela de vidro e o vi lá, na incubadora.
O bebê se mexeu.
E, de repente, o choro ecoou.
Um som fino, fraco, mas cheio de vida.
Meu coração parou por um instante.
As lágrimas vieram, descontroladas.
Era o som da vida gritando de volta.
O som do meu filho dizendo: “eu venci”.
Leonardo apareceu correndo.
— Ele chorou! — disse, ofegante. — Você ouviu?
Assenti, sorrindo entre lágrimas.
— Ouvi.
— Foi a coisa mais linda do mundo. — ele sussurrou, olhando pro vidro. — Eu nunca mais vou esquecer esse som.
Mais tarde, o choro cessou, e o bebê adormeceu.
O quarto ficou em paz.
Leonardo se aproximou de mim, os olhos marejados.
— Você sabe o que é estranho? — perguntou. — Eu nunca acreditei em Deus de verdade.
Mas quando ele chorou, eu senti alguma coisa aqui. — colocou a mão no peito. — Como se alguém tivesse me perdoado.
Olhei pra ele, emocionada.
— Talvez tenha sido ele. — toquei o vidro, observando o bebê. — Ele perdoou a gente por tudo.
Leonardo se ajoelhou ao meu lado.
— Isabella, eu… — a voz dele falhou. — Eu não sei o que fazer pra merecer vocês.
— Não precisa fazer. — respondi, calma. — Só precisa ser.
Ele engoliu o choro. — Eu quero aprender a ser pai. E se um dia você deixar… quero aprender a ser marido também.
As palavras dele ficaram no ar, leves e verdadeiras.
Não prometiam perfeição, só vontade.
— Vamos começar do começo, então. — sussurrei. — Ele precisa de nós dois.
Na manhã seguinte, o médico liberou a primeira visita sem o vidro.
Com luvas e máscara, pude tocá-lo.
O corpo minúsculo, a pele macia, o calor frágil.
Quando segurei o dedinho dele, senti algo que não sentia há muito tempo: paz.
Leonardo estava atrás de mim, observando, em silêncio.
Quando o bebê mexeu a mãozinha e agarrou o dedo dele, o tempo parou.
As lágrimas caíram.
Ele riu e chorou ao mesmo tempo.
— Ele tem a minha força… — murmurou.
— E o meu coração. — completei.
Depois de dias de medo, veio o primeiro sorriso.
Pequeno, quase imperceptível, mas suficiente pra acender o quarto inteiro.
O médico disse que logo ele poderia ir pra casa.
E pela primeira vez, o hospital não parecia um lugar de dor, mas de recomeço.
Leonardo ficou ao meu lado, os olhos fixos no bebê.
— Eu passei a vida controlando tudo, Isabella. Mas esse menino me mostrou que nada mais importa.
Olhei pra ele, emocionada.
— Bem-vindo ao amor de verdade.
Ele sorriu. — E ao medo também.
— O medo só existe porque o amor é grande demais. — respondi.
No fim da tarde, o bebê acordou de novo.
Os olhos ainda semicerrados, a respiração calma.
E então, como se soubesse que estávamos ali, chorou de novo.
Dessa vez, o choro não doeu.
Foi música.
Um som que dizia: “estou aqui, e vocês também.”
Leonardo segurou minha mão e, com a outra, tocou o vidro.
— Ele tem o seu coração, Isabella.
Firme, pequeno… mas teimoso o bastante pra continuar batendo.
Fechei os olhos e sorri.
Porque, naquele instante, tudo o que fomos — dor, culpa, raiva — se transformou em uma única coisa: amor.
E era o suficiente.