Juliana narrando
A manhã chegou e meu pai ainda não tinha dado sinal de vida. A preocupação corroía por dentro, mas não era mais só medo... era angústia. Será que ele tinha mesmo ido embora de vez?
Peguei minha bolsa, contei o dinheiro do aluguel e escondi bem no fundo do meu guarda-roupa. Enrolei num pano velho, enfiei dentro de uma caixa de sapato antiga, e coloquei embaixo de uma pilha de roupas. Não podia correr o risco de perder o único dinheiro que tinha. Aquilo era minha salvação.
Saí de casa e fui até a Rafaela, queria conversar, clarear a mente. Mas ela não estava. Virei a esquina e dei de cara com Yuri, Filipe e o Fael trocando ideia na frente da boca. Olhei reto, cabeça erguida, como quem não viu. Mas senti os olhos deles me acompanhando enquanto passava.
Cresci aqui no morro. A vida toda evitei esse pedaço — a boca, os chefes, os vapores, tudo. E mesmo assim, naquela manhã, o destino me jogava bem ali. Posso contar nos dedos quantas vezes vi Fael na minha vida. Ele e o pai dele sempre foram uma presença distante, perigosa, e agora estavam a poucos passos de mim.
— Juliana — escuto Yuri me chamar. Virei devagar.
— Tudo certo? — perguntei, tentando manter o controle, sentindo Fael me observar em silêncio.
— O aluguel. Teu prazo termina hoje.
— Eu tô com o dinheiro em casa — disse, firme.
— Passo lá mais tarde pra receber — ele falou e voltou pra junto dos outros.
Continuei meu caminho em silêncio, com o coração apertado.
Quando cheguei em casa, levei um susto.
A porta estava encostada. A sala, completamente revirada. Chamei por meu pai.
— Pai! — gritei, andando pela casa. Nenhuma resposta. Fui até o quarto dele. Gavetas abertas, armário esvaziado. Quase não sobrou uma peça de roupa. Um vazio estranho tomou conta de mim.
Ele tinha ido embora. E dessa vez... talvez fosse definitivo.
Comecei a arrumar a bagunça devagar, tentando não entrar em pânico. Mas estava tudo virado. Quando terminei, já era noite.
Fui até a cozinha procurar algo para comer. Abri o armário. Nada. Nem arroz, nem miojo, nem um pacote de bolacha. Até isso ele tinha levado. Meu estômago embrulhou.
Voltei pro meu quarto correndo. Abri o guarda-roupa com o coração acelerado. As minhas roupas estavam jogadas, tudo mexido. Fui direto na caixa onde escondi o dinheiro. Vazia.
Comecei a vasculhar tudo, desesperada. Revirei a cama, procurei na bolsa, abri carteira por carteira, cada canto... nada. Nem uma nota. Nem uma moeda.
— Não... não, não, não — murmurei, sentando na cama, os olhos marejando.
— Meu Deus... — levei as mãos à cabeça. — Meu próprio pai me roubou...
Não era só o dinheiro. Era a confiança. A última esperança que eu ainda tinha nele.
Fiquei ali, sentada na beira da cama, tentando entender como tudo desmoronou assim. O aluguel. A comida. O emprego. A dívida dele. Tudo sobre minhas costas agora.
E pra piorar, Yuri ia bater aqui em breve pra cobrar o aluguel.
O que eu ia fazer? O que eu ia dizer?
Fael narrando
— Fael — a voz de Yuri soou no rádio. — Tô com um problema aqui na entrada. Tentei falar com o Filipe, mas ele sumiu.
— Tô descendo — respondi, desligando.
Enfiei a pistola na cintura, peguei o rádio e saí da boca com o passo firme. Quando virei a esquina, vi a Juliana subindo as escadas correndo, a cara dela era puro desespero.
Lá embaixo, a entrada do morro estava movimentada. Uma cena que me incomodava.
— Que p***a é essa aqui? — gritei, chegando. — Que bagunça é essa?
— Esses caras aí tão querendo subir pra cobrar uma dívida de um morador — explicou Yuri, tenso.
— Que morador? — perguntei, já desconfiando.
— Thiago, da rua 7... o pai da Juliana — ele respondeu, me encarando.
Fiquei em silêncio por um segundo. O nome do velho não era estranho.
— Ele deve pra gente também — Filipe falou, aparecendo finalmente.
— Ah, agora tu dá as caras, né? — soltei, olhando feio pra ele.
— Mas tô dizendo, Fael. O cara sumiu. Não tá no morro, já rodamos tudo.
O cara que cobrava se intrometeu.
— Ele tem uma filha. Se ele não pagar, ela que vai pagar o preço.
Fitei o sujeito. Alto, barbudo, com cara de quem não pensa duas vezes.
— Qual teu nome? — perguntei.
— Teco.
— Tua dívida é com o pai dela. Vai achar ele fora do meu morro. Aqui, tu não resolve nada. Agora dá o fora.
— Isso não vai ficar assim — ele ameaçou. — Vou voltar com meus homens. Vou subir esse morro nem que seja na bala.
— Tenta, o****o — respondi, rindo com desdém. — Eu vou estar na laje, fumando e vendo tua derrota.
Ele foi embora, ainda rosnando.
— Quanto esse verme deve pra gente? — perguntei pro Filipe.
— Uns oito mil.
— Oito mil e isso nem tava no caderno que me mostraram? Vocês tão de s*******m. Quero essa p***a desse dinheiro hoje.
— Mas era dívida de droga, Fael. Caderno diferente — Filipe explicou.
— Então ele vazou. Hoje à noite vamos bater na casa desse desgraçado. Quero o dinheiro na minha mão.
— Mas só vai estar a filha — Filipe disse.
— Ela ainda tá devendo o aluguel — Yuri completou. — Ela disse que deu o dinheiro pro pai quando cobrei.
— O aluguel tá vencido, né? — perguntei, seco.
— Sim.
— Então ela assume a dívida toda. Não quero saber. Tá morando aqui sem pagar? Vai me pagar com juros. Se não tiver o dinheiro, rua. Se insistir... morre.
Filipe me olhou, meio desconcertado.
— Vai colocar a menina pra fora mesmo?
— Ela paga o mês atrasado e vaza. Se não pagar... já sabe. Aqui é assim. Eu não tô atrás de dó, tô atrás de respeito. Quero meu dinheiro, e quero que essa p***a de morro me respeite.
Ele apenas assentiu, calado. Ficou fumando o baseado dele, pensativo.
— Vai, manda cobrar a filha da p**a agora — falei, virando de costas.