Debora narrando - continuação
Eu fiquei um pouco dividida na hora de sair de casa. A Mariana já tava toda animada, pegando a chave da moto, colocando o batom pela terceira vez no espelho da sala, falando alto com minha mãe, mas eu… eu parei. Fiquei ali, parada na porta, olhando pros três meninos sentados no tapete, comendo bolo e assistindo desenho como se o mundo estivesse perfeitamente em paz. Eles cagaram pra mim. Nem olharam quando eu disse que ia sair. Mas aquilo mexeu comigo. Um sentimento de culpa apertou meu peito de um jeito quase insuportável.
Mesmo sabendo que eles estavam com a melhor pessoa do mundo, a minha mãe, que sempre foi minha fortaleza, minha base, meu chão, mesmo sabendo que não havia ninguém mais capacitada pra cuidar deles, eu senti como se estivesse fazendo algo errado. Como se sair pra me divertir, depois de tudo, fosse um tipo de abandono.
Só que bastou um olhar da minha mãe e da Mariana pra que elas entendessem tudo que estava passando dentro de mim naquele segundo.
— Minha filha, você é nova, linda, cheia de vida. Aproveita. Vai curtir, vai aliviar essa mente, vai tomar uma, dançar, rir. Vai viver. — minha mãe falou com aquele tom firme e doce que só ela tem. — Não se preocupa com as crianças. Nenhuma das duas precisa se preocupar com eles hoje. A vovó dá conta. E a vovó vai estragar esses meninos hoje à noite só pra devolver eles podres pra vocês amanhã — ela completou, sorrindo enquanto batia a cobertura de um bolinho de chocolate.
Meus olhos encheram d’água. Eu abracei ela apertado, sentindo o cheiro da pele dela, o cheiro que me fazia lembrar que, por mais que o mundo desabasse, eu tinha lar.
— Obrigada por tudo, mãe… muito obrigada. Se não fosse a senhora, eu não conseguiria. — sussurrei, com a voz embargada.
Ela negou com a cabeça, me deu um beijo demorado na testa e fez o mesmo com a Mariana.
Montamos na moto e descemos pro pagode. A Mari dirigia com o mesmo sangue nos olhos de sempre. Eu, ali na garupa, com o vento batendo no rosto, o cabelo solto, as luzes da favela passando borradas… parecia que meu coração ia sair pela boca. Aquela adrenalina de andar pelo morro sem capacete, moto subindo e descendo o tempo inteiro, os moleques armados falando no radinho, p*****a gritando na porta de fiel, fiel gritando na porta de p*****a. Aquele caos… aquele som… aquele cheiro. Tudo fazia as minhas mãos tremerem, como se eu nunca tivesse vivido ali. Mas ao mesmo tempo, era como se cada célula do meu corpo estivesse se reenergizando.
Assim que a gente chegou na praça, onde já rolava o pagode, senti os olhares se voltarem pra gente. Eu não entendi nada de primeira. Mas foi só questão de segundos até um grupo de homens armados nos cercar. Um deles se aproximou e foi direto na Mariana.
— Qual é, Mari? O patrão mandou vocês ir lá pro reservado dele. — ele falou seco, firme.
Eu olhei pra ela confusa, como quem diz: sério mesmo isso?. Mas ela respondeu com a marra de quem já sabia exatamente o que ia acontecer.
— Fala pro teu patrão que primeiro nós vamos curtir na pista. Depois eu vou lá no reservado dele. Pode avisar que eu já tô na visão do que ele quer.
Eu encarei ela, balançando a cabeça, já na visão da maldade dela, mas eu tô fora.
A gente se sentou num bistrôzinho que pegamos na lateral do bar, e logo quem aparece? Seu Osvaldo. Nosso eterno amigo de infância, o mesmo que ameaçava botar fogo na nossa tropa quando a gente fazia bagunça pelas ruas.
— Olha só, se não é a pequena Débora?! — ele abriu um sorrisão e veio me abraçar apertado.
— Oi, seu Osvaldo! Tudo bem com o senhor? — eu disse sorrindo sincera.
— Tudo certo, minha filha. Tá de visita?
— Não, não… Vim pra morar. — eu respondi firme.
Ele olhou pra Mariana, rindo daquele jeito meio irônico de quem sabe mais do que diz.
— Ainda bem que vocês cresceram, né? Não vão mais aterrorizar a vida de ninguém… Ou vão? Porque esses mavambos aí não param de olhar pra vocês. Vocês são minhas protegidas, viu? São minhas desde pequenas. Por mais que às vezes eu quisesse matar vocês, eu tô velho, mas ainda protejo as minhas crias.
A gente riu junto, abraçou ele com carinho, e eu me senti acolhida.
— Vou trazer um balde de cerveja pra vocês por conta da casa. Pelo seu retorno, Débora. — ele falou com um brilho sincero nos olhos.
A Mariana já fez cara de ofendida, como sempre.
— Ah, e eu não mereço não, seu Osvaldo?
— Garota, eu te dou pirulito de graça até hoje. Toda vez que tu fica bêbada, deixa de ser sonsa! — ele respondeu, fazendo todos ao redor rirem.
A gente tava ali, se soltando aos poucos, bebendo uma cerveja gelada, e o celular da Mariana começou a vibrar na mesa. Várias chamadas perdidas. O nome? Caveira.
Eu fingi que não vi. Mas meu corpo entregava tudo. Meus ombros estavam tensos. A pele quente. A nuca arrepiada. Eu sentia, eu sabia que tinha alguém nos observando. E não precisava olhar pra saber quem era. Era ele.
O problema é que eu ainda não tinha tido coragem de olhar pro camarote dele. Me recusava. Tinha algo entre nós dois que não dava nome. Uma tensão gritante, grotesca, quase animalesca. E por mais que eu quisesse negar, ela estava ali. Viva. Pulsando.
O que me assustava era o quanto isso ainda existia depois de tantos anos. Depois de tanta distância. Depois de caminhos tão diferentes. Mas uma coisa era certa… o olhar do Caveira, mesmo de longe, queimava na minha pele. E eu não sabia o que fazer com isso. Porque parecia que eu estava pegando fogo
— caveira daqui a pouco voa dentro do teu decote, e se a gente não for pra lá, ele vem aqui e para o pagode, vai chamar mais atenção ainda…— a Mariana solta e eu encaro ela sentindo o meu rosto pegar fogo ainda mais
— tu tá me jogando pro teu ex, tá doida mesmo cara…— eu falo e ela n**a
— meu ex não, pai do meu filho só, e eu jogo mesmo, eu lembro que nas brincadeiras de verdade ou desafio ele ficava puto se alguém tentasse ficar contigo e ele mesmo nunca conseguiu, por que não agora ? Ele é bandido mas não é má pessoa não…— ela fala e eu olho pra ela que dá risada — eu avisei…— ela fala e não demorou um segundo começou uma movimentação bizarra pela praça e eu nunca engoli tão seco na minha vida que eu parecia uma adolescente
Mas p***a, não tem 12 horas que eu tô no morro de volta, não é possível isso…