Justiça ou Vingança

1157 Words
A noite caiu pesada sobre o morro, como se a escuridão carregasse consigo o peso das verdades recém-reveladas. As vielas, sempre barulhentas, agora estavam silenciosas. Medo. Luto. E uma raiva que crescia, silenciosa e c***l, no peito de Danilo. Ivan havia traído. Não restavam dúvidas. Os olhos de Danilo não precisavam de mais provas — o sumiço, a mochila com dinheiro, o ataque coordenado. Era tudo claro como sangue na calçada. — Já espalhei os recados, patrão — disse Neguinho, um dos homens de confiança. — Se ele ainda estiver no Rio, a gente acha. Danilo assentiu, mas não falou. Estava parado em sua varanda, com a vista do alto do morro diante dele — a cidade grande lá embaixo brilhando, indiferente ao caos que se espalhava nas comunidades. Cecília apareceu atrás dele, envolta numa camiseta larga. Os cabelos ainda úmidos do banho. Danilo virou o rosto, a expressão endurecida. — Você devia estar dormindo. — Eu não consigo dormir sabendo que você tá remoendo tudo isso sozinho. Ele soltou um suspiro longo, cansado. — Eu confiei naquele desgraçado. Quando meu pai morreu, foi ele quem ficou do meu lado. E agora... agora ele vira as costas por dinheiro? Por poder? — Talvez ele quisesse mais do que você podia dar. Ou talvez nunca tenha sido leal de verdade. Danilo a olhou com os olhos escuros e carregados. — E o pior é que eu quero matar ele. Mas parte de mim ainda... parte de mim ainda sente como se estivesse perdendo um irmão. — É porque você ainda é humano, Danilo. Ele passou a mão pelo rosto, como quem tenta afastar o peso de mil noites m*l dormidas. — E ser humano nesse lugar é uma fraqueza. Cecília se aproximou, tocou o peito dele com a palma da mão. — Então deixa eu ser tua força, se tua humanidade for demais pra carregar sozinho. Ele a puxou para si, envolveu-a num abraço forte. Por um momento, a guerra cessou. --- Do outro lado da cidade, Ivan se escondia num antigo cortiço abandonado. Ao lado dele, dois homens armados e nervosos. Ramon havia oferecido abrigo — e proteção. Mas Ivan sabia que o preço seria alto. Talvez até sua vida. — Tu acha que ele já sabe? — perguntou um dos capangas. — Danilo sabe tudo antes da notícia chegar. Ele vai vir atrás de mim. — E aí? Ivan tragou o cigarro com violência. — Aí a gente mata ele. Ele ou eu. Simples assim. Mas ele sabia que não era simples. Crescer com Danilo, dividir comida, dividir dor... não se apagava do dia pra noite. Só que agora não havia mais volta. --- No morro, Danilo recebia uma nova informação. — Encontramos um dos olheiros que ajudou o Ivan a fugir — disse Neguinho. — Já tá com o Lucas. Quer que traga aqui? Danilo hesitou. O tempo todo, tentava manter o controle. Mas a cada traição, a cada sangue derramado, sentia-se mais próximo do limite. — Traz. Mas sem porrada. Eu mesmo vou interrogar. Pouco tempo depois, o garoto foi levado até ele. Tinha uns 17 anos, o rosto suado de medo. — Qual seu nome? — Tico, patrão. — O que o Ivan te prometeu? — Nada, juro... ele só pediu pra eu distrair os homens da laje. Disse que era coisa pequena, que não ia afetar ninguém... — E você acreditou? O menino encolheu os ombros, trêmulo. Danilo abaixou, ficando na altura dele. — Eu não vou te matar, moleque. Mas se mentir, se inventar... aí não vai ter perdão. Me diz onde ele tá. Tico hesitou, então sussurrou o endereço do cortiço. Danilo se levantou, os olhos estreitos. — Prepara os homens. A gente vai caçar um fantasma. --- Enquanto Danilo armava a ofensiva, Cecília caminhava pelo morro com Lívia. Queria entender mais, conhecer as pessoas, ver de perto o que os números das manchetes não mostravam. Mas ao virar uma viela, uma voz baixa chamou por ela. — Cecília. Ela se virou. Era uma mulher magra, olhos fundos, carregando um bebê nos braços. Aproximou-se devagar. — Cuidado com quem te cerca. Você tá virando o ponto fraco do Danilo. — Como assim? — Tem gente que já tá comentando... que se quiserem atingir ele, agora sabem onde mirar. Cecília sentiu um arrepio subir pela espinha. — Quem falou isso? A mulher só balançou a cabeça e se afastou. Lívia se aproximou, os olhos atentos. — O que foi? — Eu... acho que tão me usando como ameaça. Como fraqueza. — Você achou que o amor por um homem como o Danilo vinha sem preço? --- À noite, Danilo saiu com cinco homens. Cecília pediu para ir junto. Ele negou com firmeza. — Eu vou resolver isso. E você vai ficar viva. — E se eles vierem atrás de mim? — Eu deixei o Lucas com você. E tem mais dois homens rodando tua casa. Se alguém piscar errado, eles agem. — Você acha que isso me acalma? — Não. Mas é o que eu posso fazer agora. O beijo foi tenso. Como se o destino pairasse entre os lábios. E então ele partiu. --- O cortiço era um labirinto. Um prédio abandonado e semi-destruído, onde o concreto rachado se misturava ao cheiro de mofo e pólvora. Danilo e seus homens cercaram o local. — Ele tá no terceiro andar — murmurou Neguinho. — Com dois homens. Danilo fez sinal. Os homens se espalharam. Subiram em silêncio, armas apontadas. Quando chegaram à porta, ele bateu com o coturno. — Ivan! Avisa que é tua última chance de sair vivo! Silêncio. Depois, a voz conhecida, carregada de rancor: — Tu não vai me matar, Danilo. Porque, no fundo, tu ainda me vê como irmão. — E irmãos não se apunhalam pelas costas. — A gente só sobrevive, Danilo. Eu cansei de ser tua sombra. Cansei de viver à margem do teu poder! Danilo respirou fundo. — Abre a porta. Me encara. Segundos de silêncio. Depois, um estalo. A porta rangeu. Ivan estava ali, desarmado, mas com os olhos como chamas. — Vai fazer o quê agora? Me matar? Danilo ergueu a arma. O dedo no gatilho. Tremendo. — Me dá um motivo — sussurrou. Ivan sorriu. — Você não tem coragem. O tempo parou. Danilo fechou os olhos. Quando os abriu, abaixou a arma. — Leva ele. Vai pagar por tudo que fez. Mas eu não vou ser como meu pai. Eu não vou virar um monstro. --- De volta ao morro, Cecília ouviu o barulho dos passos na escada. Correu até a porta. Danilo entrou com Ivan algemado, sangue no rosto, mas vivo. — Você... — Eu deixei ele viver. Porque quero justiça, não vingança. Ela o abraçou, chorando de alívio. Mas o alívio duraria pouco. No dia seguinte, um bilhete foi deixado no portão da casa de Danilo. Sem assinatura. Apenas quatro palavras: “Sua rainha será o alvo.”
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