Capítulo 7 – Orgulho e Sobrevivência

1019 Words
A pequena casa nos fundos do bairro periférico de Boa Vista não era mais do que dois cômodos com reboco rachado e um telhado que pingava em dias de chuva. Mas para Rayca, aquele cantinho era um avanço. Um lar. Um espaço onde ela podia acordar ao lado da filha sem medo das regras do abrigo ou das outras vozes ao redor. Nina ocupava o colchão de solteiro encostado à parede, com seus cadernos coloridos, bonecas ganhadas em doações e o uniforme escolar meio surrado. Rayca improvisava um espaço para dormir no sofá, quando o sono conseguia vencer as preocupações. As contas, no entanto, batiam à porta com mais rigor do que o próprio tempo. A faxina na academia de box cobria o básico: arroz, feijão, gás, sabão. Mas o aluguel... O aluguel andava atrasado há dois meses, e o senhor Divino, dono do imóvel, já não era mais o velhinho simpático que a recebera de braços abertos. Na terceira cobrança, ele bateu na porta sem cerimônia. — Dona Rayca, boa tarde — disse ele, com um sorriso cínico, o boné velho apertado na cabeça e a camisa aberta no peito suado. — Vim saber se a senhora tem alguma novidade pra mim. Rayca segurou firme na maçaneta, tentando manter a educação. — Ainda não consegui, seu Divino. Mas estou correndo atrás. Só mais uns dias e... — Dias que viram semanas — interrompeu, dando um passo à frente. — E eu também tenho contas pra pagar, moça. Tô sendo bonzinho demais. — Eu sei. E agradeço. Mas eu juro que vou pagar tudo. Ele inclinou a cabeça, olhando por cima do ombro dela, observando o interior simples da casa. — Sabe o que é, Rayca? A senhora é bonita. Forte. Tem um corpinho que ainda dá caldo. Tá aí se matando de limpar privada quando podia resolver isso de outro jeito... Ela congelou. — Como assim? O velho sorriu torto, nojento. — Eu poderia esquecer essa dívida. Uma ajudinha mútua, entende? Rayca sentiu o estômago virar. — Saia da minha porta. — Eu tô tentando ajudar — insistiu ele. — A vida é dura. A senhora sabe disso. — Eu disse pra sair! — gritou, e bateu a porta com força. Nina apareceu no cômodo, assustada. — Mamãe? Rayca correu até ela e a abraçou. — Tá tudo bem, meu amor. Só um chato na porta. Mas o coração dela tremia. A casa, que antes parecia um lar, agora era uma armadilha. E ela, presa novamente entre o orgulho e a necessidade. No dia seguinte, na academia, Nico percebeu que algo estava errado. Rayca limpava o mesmo canto há mais de dez minutos, os olhos perdidos, as mãos tremendo levemente. Nina brincava no banco ao lado, desenhando com giz de cera. Ele se aproximou com cuidado. — Tá tudo bem? — Tá sim. Só um pouco cansada — respondeu, sem encará-lo. — Rayca... eu conheço você, o que está acontecendo? Ela hesitou. Depois respirou fundo. — É só coisa da vida. Nada com que você deva se preocupar. — Se diz respeito a você, eu me preocupo sim. Ela parou e o encarou, os olhos firmes. — Eu tô atrasada com o aluguel. E o dono da casa tentou me... pressionar. Com insinuações. Ameaças veladas. Nico cerrou os punhos. — Ele fez alguma coisa com você? — Não. Mas deixou claro que tá disposto a fazer isso se eu continuar devendo. — Me dá o endereço. Eu resolvo isso agora. — Não! Ela ergueu a mão, firme. — Eu não preciso que você brigue por mim. Eu só precisava desabafar, não de um salvador. — Rayca, me deixa te ajudar. Eu tenho dinheiro. Posso pagar esse aluguel por um ano se você quiser. Ela recuou um passo. — É exatamente por isso que eu não aceito. — Por quê? — Porque eu vi o mundo em que você vive, Nico. Aquele da Fabiana, das câmeras, das aparências. E eu não quero ser só mais uma mulher que você “resolve” com dinheiro. Ele deu um passo à frente, a voz baixa. — Você não é “mais uma”. Você é a única que eu quis proteger de verdade. — Eu já confiei demais em homens que prometia o mundo e me deixava com os pedaços. Eu tô tentando construir minha vida com dignidade, Nico. Se eu aceitar sua ajuda, vou sentir que tô me vendendo de novo. — Não é venda. É cuidado. — Não fale assim, Nico. Você nem sabe o que estamos sentido. Tudo que você faz é pra manter a imagem perfeita. E eu não sou perfeita. Eu não quero ser um problema pra você. O silêncio entre eles foi como um golpe seco no peito. Nina se aproximou, abraçando a perna da mãe. — Mamãe... eu tô com fome. Rayca olhou para a filha, depois para Nico. — Eu vou dar um jeito. Sempre dou. Ela pegou Nina pela mão e foi embora, deixando Nico ali, sozinho, sem saber se havia feito certo ou errado. Naquela noite, Rayca preparou um arroz com ovo e repartiu entre ela e a filha. Depois que Nina dormiu, ela ficou sentada no escuro, encarando a parede. As lágrimas vieram, teimosas. Ela sabia que estava recusando mais do que dinheiro. Estava recusando a chance de baixar a guarda, de confiar, de ser cuidada. Mas o medo era maior. O orgulho, mais pesado que o estômago vazio. E ainda assim... no fundo do peito, uma parte dela queria ter aceitado. Do outro lado da cidade, Nico encarava a sacada do apartamento luxuoso onde morava temporariamente. Fabiana tinha ido embora depois de entender que o show não continuava quando a câmera desligava E tudo que ele conseguia pensar era: Rayca me vê como eu realmente sou. E eu tô perdendo ela. Ele precisava fazer mais do que oferecer ajuda. Precisava provar que estava disposto a sair do topo — se fosse pra ficar ao lado de quem realmente importava. E no fundo, sabia que aquela luta não era contra um adversário no ringue. Era contra os próprios fantasmas.
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