A noite caiu sobre a mansão Cavalcante com o mesmo peso de sempre.
Os corredores silenciosos, o som distante do vento batendo nas janelas e o relógio antigo marcando as horas pareciam ritmar o poder e a frieza daquela casa.
Estefano estava em seu quarto, sentado diante da lareira apagada, a mente longe dali talvez na praça, talvez no olhar de Amélie Pérez.
Mas a porta se abriu lentamente, sem que ele tivesse tempo de esconder o que sentia.
Francesca entrou sem bater.
Usava um vestido escuro, o colar de pérolas refletindo a luz fraca do candelabro.
A expressão era severa, fria, calculada.
— Seu pai está furioso, — disse ela, fechando a porta atrás de si. — E, sinceramente, eu também estou.
Estefano suspirou, cansado.
— Imagino o motivo.
Francesca se aproximou com passos lentos.
— Você envergonhou sua família diante da cidade inteira. Diante de comerciantes, criados, famílias que o respeitam há décadas. Tudo por causa de uma moça sem nome, sem dote, filha de um homem que ele deveria ter matado há muito tempo.
Ele se levantou.
— Basta, mãe.
— Não, Estefano. — A voz dela era cortante. — Agora você vai me ouvir.
O silêncio se instalou, pesado.
Francesca manteve o olhar firme, o rosto sereno — mas os olhos, duros como vidro.
— Eu sei o que está acontecendo — continuou. — Você acha que engana alguém, mas eu vi o modo como olhou para ela. Vi a forma como ela respondeu ao seu olhar.
Ela se aproximou da poltrona diante da lareira apagada e sentou-se com elegância.
— Você está… deslumbrado pela beleza dela.Há muito tempo não via tanta obstinação no seu olhar.
— E isso a preocupa, não é?
— Penso que podemos usar isso a nosso favor.
Estefano cruzou os braços.
— Fale claramente comigo, mamãe.
Francesca o observou por um momento, estudando-lhe o rosto como quem mede o valor de uma aposta.
— Seu pai e eu discutimos a situação do senhor Pérez. Ele deve uma quantia considerável à nossa família e você sabe disso, sabemos que ele não tem meios de pagá-la. Mas… há algo que pode ser feito.
Estefano manteve o olhar firme.
— Está falando sobre o acordo que sugeri ?
— Não, estou falando do meu. — disse ela, levantando-se. — Se você realmente deseja essa moça e não adianta negar, porque eu vi o modo como a olhou, então talvez, eu possa resolver isso sem tanta humilhação para com a nossa família.
Ele a fitou, surpreso. Francesca prosseguiu, a voz baixa e calculada:
— O senhor Pérez poderá quitar a dívida entregando-nos o serviço da filha por dois anos. Dois anos em nossa casa, como serva, sob minhas ordens. Nenhum direito, nenhuma interferência sua, Ela pertencerá à casa a mim até o último dia do acordo.
Estefano respirou fundo, a expressão endurecendo.
— Está falando de transformar senhorita Pérez em escrava?
— Estou falando de pagar o que se deve. — rebateu Francesca friamente. — A lei permite compensação por dívida, e será um favor, considerando o que o pai dela nos deve.
— Um favor? — ele quase riu, incrédulo. — É humilhação.
— É oportunidade. — retrucou ela, aproximando-se. — Pense, Estefano. Se ela cumprir os dois anos, estará livre. Livre de dívidas, livre de obrigações… e então, se você ainda quiser casar-se com ela, o que eu espero que não, terá a minha palavra e a de seu pai.
Ele a olhou longamente.
— A palavra de vocês?
Francesca assentiu.
— Sim. Nenhum de nós se oporá ao casamento, desde que ela cumpra o acordo.
Houve um silêncio denso. O crepitar distante da lenha queimada no andar inferior parecia preencher o ar entre eles.
Estefano desviou o olhar para o jardim. A ideia era c***l e ainda assim, uma parte dele sentia o peso da escolha. Amélie estaria sob o mesmo teto. Próxima. Protegida dele, mas também exposta à dureza de sua mãe.
— E se eu recusar? — perguntou, por fim.
— Então o senhor Pérez perderá suas terras, e você perderá a chance de te-la como deseja. — respondeu Francesca, sem hesitar. — Não podemos perdoar dívidas, Estefano. Somos Cavalcante.
Ele respirou fundo, o coração dividido entre o orgulho e a dor.
— Eu preciso pensar.
Francesca sorriu, satisfeita. — Pense, meu filho. Mas não demore. As decisões certas exigem frieza… e tempo é um luxo que os Pérez não têm.
Ela se afastou, o som suave de seus passos ecoando pelo corredor de mármore. Quando a porta se fechou, Estefano se deixou cair na cadeira, o olhar perdido na luz dourada que entrava pela janela.
Ele sabia que o “acordo” era uma armadilha disfarçada de generosidade.
Mas também sabia que, se recusasse, a ruína cairia sobre a família de Amélie ou pior, ele nunca a teria.
E, pela primeira vez na vida, Estefano Cavalcante sentiu-se verdadeiramente preso não por dever, mas por algo que ele não entendia.