Ela falava.
Com o corpo nu, olhos cheios de perguntas que eu não sabia ou não queria responder.
Cada palavra que ela dizia entrava feito espinho.
E eu sangrava em silêncio.
Até que não deu mais.
Eu explodi.
- Você quer saber o que eu sinto, Bruna? Sério?
- Você quer mesmo ouvir essa merda?
A voz saiu firme, carregada, como quem joga gasolina na própria ferida.
- Eu penso em você todo maldito dia.
E odeio isso.
Penso quando acordo, quando tomo banho, quando encosto a cabeça no travesseiro e minha mente se enche de imagens suas gemendo no meu colo.
Ela congelou. Mas eu fui até o fim.
Não tinha mais volta.
- Você me enlouquece. Me tira do meu eixo.
Eu sou um homem treinado pra segurar um revólver com o mundo desabando, mas você me desmonta com um olhar atravessado.
Dei mais um passo. Ela recuou um pouco, mas não fugiu.
- E quer saber o que mais dói?
É saber que mesmo com esse fogo, com esse desejo que me consome até os ossos...
você é o tipo de mulher que eu nunca vou poder amar.
O silêncio entre nós ficou ensurdecedor.
Mas eu ainda não tinha acabado.
- Você é passado perigoso, tatuagem marcada com nome de traficante.
Você é relatório, é histórico.
E eu sou delegado.
Eu sou a poŕra da lei.
E mesmo assim, tudo que eu quero é quebrar todas as regras por você.
Parei.
Ofegante.
Com a garganta ardendo e o peito despedaçado.
- Você é a poŕra do meu castigo.
E mesmo assim... é tudo que eu quero de verdade.
A dor virou fúria.
E a fúria virou impulso.
A puxei.
Beijei como quem quer punir, como quem quer sumir dentro da pele do outro.
Um beijo cheio de desespero, raiva, loucura.
As mãos apertaram sua cintura com força.
E antes que ela pudesse reagir, eu fui.
Bati a porta atrás de mim com força.
Fugindo dela.
Fugindo de mim.
Mas no fundo, sabendo que já era tarde demais.
Desci as escadas como se tivesse fogo nos calcanhares.
Nem olhei pro elevador.
Queria distância. Ar. Fuga.
A camisa amassada estava embolada na minha mão, e o peito…
o peito doía.
Um grito entalado na garganta. Um choro que eu nunca aprendi a liberar.
Quando virei o último lance, quase esbarrei nele.
Sr. Osvaldo.
Ficou parado na portaria, olhos arregalados, como quem vê alguém sangrando por dentro.
Boa noite, doutor? - ele disse, quase num sussurro.
Mas eu só encarei.
Por um segundo.
Um segundo suficiente pra ver o susto nos olhos dele.
Suficiente pra ele entender que o que quer que tivesse acontecido lá em cima... não era bom.
Empurrei o portão. Nem respondi.
Não dava.
Entrei no carro.
Bati a porta com força.
Liguei o motor.
E saí feito um maldito louco.
Faróis cortando o asfalto, pneus gritando nas curvas, buzinas no fundo.
Mas nada fazia mais barulho do que o que tava dentro de mim.
O volante tremia nas minhas mãos suadas.
O vidro embaçado da minha respiração quente.
O corpo dela ainda grudado na minha pele.
A boca dela ainda na minha.
O olhar.
Aquela maldita dor nos olhos dela.
Tudo era pra ter sido simples.
Trepar. g**o. Esquecer.
Mas não.
Virou inferno.
Porque Bruna não era só sexo.
Não era só uma fuga.
Ela era tudo o que eu não podia sentir.
Tudo o que eu prometi pra mim mesmo que nunca mais ia deixar acontecer.
Mas agora…
Agora já era tarde.
E enquanto o carro rasgava a cidade como se isso pudesse apagar o que aconteceu, eu só conseguia repetir uma frase dentro da cabeça, como um mantra doído:
"Você é a poŕra do meu castigo".
As ruas pareciam vazias, mas dentro de mim…
era multidão.
Pensamentos, lembranças, vozes misturadas.
O rosto dela. A pele dela.
O que eu disse. O que eu fiz.
O que eu não deveria ter feito.
Parei numa adega qualquer. Nem olhei o nome.
Porta enferrujada, luz fluorescente estalando no teto, o tipo de lugar que você só entra quando tá precisando fugir de si.
- Duas. - falei pro atendente, jogando as notas no balcão.
Whisky.
Barato.
Do tipo que queima rápido e apaga devagar.
Voltei pro carro sem nem olhar pros lados.
As mãos tremiam.
O volante agora era meu travesseiro.
E aquela garrafa, meu consolo barato.
Desrosqueei a tampa e virei.
A garganta ardeu.
Mas doeu menos que o peito.
Fechei os olhos e me afundei no banco, com a cabeça tombada pro lado.
A madrugada lá fora era fria.
Mas por dentro…
tava tudo pegando fogo.
E eu, mais uma vez, estava ali.
Sozinho.
Destruído.
Cheio de tudo e sem nada.
A outra garrafa ficou no banco do passageiro.
Como se tivesse alguém comigo.
Mas não tinha.
Nunca teve.
Eu nasci pra ser isso.
O cara que protege. Que prende. Que resolve.
Mas amar?
Isso nunca foi parte do meu fardo.
E agora...
tava apaixonado por uma mulher que o mundo inteiro mandava eu manter distância.
Então bebi.
Pra calar a cabeça.
Pra tentar matar o que me matava.
E pra terminar aquela noite do único jeito que eu sabia:
Desgraçadamente só.
A cabeça latejava como se alguém estivesse socando o lado de dentro do meu crânio.
O gosto amargo na boca, o peito apertado.
O banco do carro era duro, desconfortável.
Mas eu nem lembrava quando tinha adormecido.
Tudo parecia distante…
Até os toques no vidro me puxarem de volta.
*Toque. Toque. Toque.*
- Ô, Marcelo... cäralho, mano... - uma voz abafada, do lado de fora.
Abri os olhos devagar.
A claridade da manhã me cegou.
O rosto colado no banco, a camisa ainda embolada no colo, uma garrafa vazia entre as pernas e a outra pela metade no banco.
*Toque. Toque.*
- Abre essa merda dessa porta, poŕra.
**Rafael.**
Respirei fundo, tentando entender onde eu estava ou melhor, o que eu ainda tava fazendo ali.
Destravei a porta com esforço. O trinco fez um estalo seco.
Ele abriu e me encarou com aquela cara de quem já viu coisa demais na vida, mas ainda assim se espanta quando a gente se autodestrói.
- Tá de s*******m comigo, né, Ávila?
Tava dormindo num carro com duas garrafas de whisky no banco e a cara de quem viu o inferno pela janela.
Tentei sentar direito, mas o corpo doía.
Mais do que o corpo… era o resto todo.
- Tô bem. - murmurei, sem convicção nenhuma.
- Tá uma merda, é o que tá. - ele respondeu.
Se encostou no carro, cruzou os braços.
Ficou me olhando como quem esperava que eu dissesse alguma coisa… mas não o que ele queria ouvir.
O que ele sabia que doía.
- É ela, né?
Demorei, mas confirmei com um simples mover de cabeça.
- Bruna.
Ele bufou. Passou a mão no rosto.
- Marcelo, você tá mexendo com coisa que vai te quebrar por dentro. E não tô falando do histórico dela. Tô falando de você.
Permaneci calado.
O silêncio era a única defesa que me restava.
- Quer saber? Föda-se se ela é ex do Canário, föda-se o sistema, föda-se a hierarquia… o problema é que ela te desmonta. Você sempre foi meu parceiro frio, calculista, um filho da putä com sangue de gelo. Mas agora… tá aí, todo fodido, cheirando álcool e culpa.
Não aguentei.
Abaixei a cabeça.
Não por vergonha.
Mas porque doía demais encarar alguém que via tudo tão claro.
- Eu só queria que tivesse sido simples. - confessei.
Rafael ficou em silêncio por alguns segundos. Depois disse, mais calmo:
- Com ela nunca vai ser simples, irmão. Mas talvez… simples nunca tenha sido o que você precisa.
Fiquei olhando pra rua movimentada à frente.
Não respondi.
Não tinha resposta.
Só sabia que algo em mim… já não era mais o mesmo.
Rafael deu a volta no carro e estendeu a mão, firme, com aquele jeito que ele tem quando não está pedindo está decidindo.
- Passa a chave, vai. Você não tem nem condição de virar a seta hoje.
Sem força pra discutir, joguei as chaves na mão dele e me afundei no banco do passageiro.
A cabeça latejava.
O estômago revirava.
E o peito…
tava pesado.
O motor roncou e saímos da calçada com o mesmo silêncio incômodo que carregava desde a madrugada.
Ele respeitava isso.
Sabia que às vezes, meu silêncio dizia mais do que qualquer grito.
Mas mesmo assim, falou do jeito dele:
- Vai pra casa, toma um banho, engole esse orgulho e lembra de quem você é.
Assenti com um movimento fraco de cabeça.
Eu sabia quem eu era.
O problema era lembrar de quem eu estava tentando não ser.
- Tenho que passar na delegacia depois. Arnaldo pediu relatório das operações pendentes.
Rafael deu um meio sorriso.
- O bom e velho ‘dever acima de tudo’. Você vai mesmo meter farda com ressaca e coração destruído?
- Você já me viu fugir de algo?
Ele me olhou de soslaio.
- Já vi você fugir de si mesmo, todos os dias.
Aquilo bateu.
E bateu fundo.
O resto do caminho foi em silêncio.
Mas não aquele silêncio de quem ignora era o de quem entende.
Eu precisava sair dali.
Da rua. Do banco daquele carro.
Dela.
Precisava de um banho que limpasse mais que o corpo que lavasse o rastro que ela tinha deixado na minha pele.
Mas mais do que isso…
o dia me esperava.
E o dia ia ser longo.
Daqueles em que cada minuto pesa.
Em que o relógio parece debochar.
Mas talvez fosse melhor assim.
Porque à noite… tudo doía mais.
E eu, Marcelo Ávila,
delegado da civil,
homem sem tempo pra amor,
tava começando a entender o que era sentir falta de alguém.
E isso…
era mais perigoso do que qualquer quadrilha armada.